A Garganta da Serpente
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Sabedoria de viver

(Regina Martins)

(Conto vencedor do prêmio CRIATIVIDADE no Concurso Literário "Mulher, Memória e Sociedade", de âmbito estadual, em 1988)

Ao dizer sim, Tiê não se dava conta do tamanho da viagem. Era novembro de 1922. Quando embarcou no México Maru, em lua-de-mel, não pensava que alguns meses depois, rasgaria uma camisa surrada do marido para fazer uma fralda. A única. A criança estava para chegar e os sonhos de seus dezoito anos, não existiam mais. Perderam-se na miséria da casa de sapé. No meio do mato denso e na saudade. Do outro lado do mundo, Tiê estava só. Sem falar português, sem amigos.

Sozinha, cortou o cordão umbilical da menina frágil, que acabava de nascer. Nunca tinha imaginado um parto. E terminava de fazer o seu! O marido, em busca de ajuda, não voltara a tempo.

Quando se está só, aprende-se tudo. O jeito era mastigar o arroz até transformá-lo em papa. Depois levá-lo, cheio de enzimas, à boca do bebê! Com esse ritual, Tiê superava as necessidades porque passava! Era preciso reconstruir o sonho e o tempo era pouco. O dinheiro, escasso. A exploração humana - que ela não conhecera em seu país - era uma constante em sua vida. Das injustiças, perdeu a conta. Mas era preciso calar e consentir. Senão, o alimento não vinha.

Tiê se sentia uma semente e lutava para germinar. Deixava viva a chama do amor à terra, por onde passava. Suas mãos calejadas colheram lírios e palmas. Rosas. Uvas e pêssegos.

Depois de percorrer muitas dificuldades, Tiê, o marido e os filhos fizeram de Campinas o seu porto seguro. Definitivo.

Humilde e submissa. Contraditória, às vezes. Cheia de garra e vontade. Enquanto falava da perseverança e da coragem - conquistas diárias para vencer - ela cozia o fubá e servia aos filhos famintos.

Com asas sempre abertas para o voo, esqueceu de contar os anos. Quando quis fazê-lo, não dava mais tempo de ver o que acontecera no mundo. Oito, os filhos. Adultos, cada um escolhia o caminho que Tiê ensinara a percorrer. Ela olhava o futuro sem saber. O marido, viajou para o infinito. A família, na pátria distante, as cinzas de Hiroshima haviam coberto para sempre.

Hoje, seus cabelos estão brancos de paz. As mãos tremem ao segurar a longevidade do crisântemo. Vive trancada em sua sabedoria, enquanto a morte não vem. Me diz que aceita a condição de voltar a ser pó. Anônima e cansada, veste seus dias de lembranças que os netos não querem ouvir. É fantasia, acham. Do alto dos seus oitenta e cinco anos, ela me conta sua história com uma lucidez divina. Mesmo se sentindo um pássaro em extinção, ela ainda acredita na vida. Com um sorriso amargo e o olhar perdido, lamenta não ter voltado à terra natal. Sente suas forças exaurindo-se a cada dia. Mas persiste!

Nunca imaginou ser transformada em nome de rua um dia. Digo-lhe que bem merecia, mas ela fica silenciosa. Emocionada, me diz que as lágrimas eram gotas, que regavam a terra, em dia de sofrimento.

(20 de outubro de 1988)

Em abril de 1990, o pássaro, enfim, extinguiu-se - silenciosamente - após recusar-se, durante vários dias, a se alimentar.

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