A Garganta da Serpente
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A sereia e o catador de caramujos

(Roberto Márcio Pimenta)

Ele passara a noite catando caramujos africanos enquanto aguardava o despertar do bem-te-vi que fizera um ninho no vaso de flor debaixo da sua janela.

Amanhecia e os pescadores puxavam suas redes trazendo peixes. Na areia algas, crustáceos, filamentos de sangue de peixes e cordames são espalhados e puxados pelas mãos carcomidas pelo árduo trabalho da pesca, quando alguma coisa mais pesada exigiu esforço maior. Entre as malhas da rede e os vestígios do mar, um corpo. Arrastaram-mo para a praia.

Os homens fizeram uma roda em volta daquele ser inerte, coberto por plantas, resíduos do mar, areia.

Retiram, com as mãos calosas, todo o plâncton que revestia aquele rosto e, então, perceberam que era tão puro e tão belo que não acreditaram na realidade do momento.

Chegaram mais perto e alguém tocou levemente no corpo sentindo o contato da pele macia. Os músculos, em resposta ao estímulo, se contraíram. Assustaram-se , armaram o arpão e continuaram buscando detalhes . Estava ali, segundo perceberam, uma espécie em mutação: possuía escamas na parte inferior do corpo e rabo tal como os peixes.

No ar ficaram indagações: o que seria aquele corpo? O que procurava ali? Teria vindo com a tempestade do dia anterior?

Ante a ameaça , tropeçaram na dúvida das palavras: disparar ou não o arpão? Enquanto meditavam, uma voz máscula irrompeu o silêncio:

"- Chega! Não se apaga a realidade destruindo o sonho" e ele pousou a mão sobre o ombro do pescador que apontava a arma.

Ele observou o corpo e teve dificuldade de conciliar suas sensações imaginárias e incoerentes com a certeza de estar no mundo real naquele momento.

Novamente o corpo contraiu os músculos, os olhos abriram-se, girou a cabeça em sua direção e sorriu, como se já o conhecesse. Ele, maravilhado, quanto mais observava, mais possuído ficava do fascínio daquele ser mutante.

Os pescadores estreitaram a roda em sua volta e um deles, o mais ousado, tocou-lhe no rosto e disse:

"- É mais bonita do que minha mulher" e o outro retrucou:

"- É muito mais bonita do que todas as mulheres da ilha." E o moço dos caramujos moveu a cabeça fazendo um sim.

Então choraram pela pouca beleza de suas mulheres. E, assim, ele percebeu que o feitiço tornara-se tão absorvente que seria impossível amansar, na tormenta da paixão, o barco do amor, onde o ciúme naufragara abraçado à tristeza.

Ela estava ali, totalmente nua, e, talvez, tivesse se perdido no caminho, mas eles, bêbados do álcool da inveja e da paixão, cuspiram-lhe sobre a pele macia. A sujeira cobriu os seus seios fartos. E não chorou porque não o sabia fazer. Mais ainda: beliscaram seus braços, tatuaram-na com cigarro e riram até cair no chão porque ela não sabia falar e ele nada fez. Seus olhos eram da cor do amor triste e distante que os homens não percebem.

Sem que pudessem prever, ela soltou-se da rede e retornou ao mar.

Ele ficou, ali, perplexo e perdido no silêncio, a olhar para o mar como quem quisesse escrever nas ondas o seu pedido de amor.

Dias depois os pescadores arrastam algo pesado: era um corpo de homem com as mãos repletas de caramujos, uma flor e um bem-te-vi.

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