Ele passara a noite catando caramujos africanos enquanto aguardava o despertar
do bem-te-vi que fizera um ninho no vaso de flor debaixo da sua janela.
Amanhecia e os pescadores puxavam suas redes trazendo peixes. Na areia algas,
crustáceos, filamentos de sangue de peixes e cordames são espalhados
e puxados pelas mãos carcomidas pelo árduo trabalho da pesca,
quando alguma coisa mais pesada exigiu esforço maior. Entre as malhas
da rede e os vestígios do mar, um corpo. Arrastaram-mo para a praia.
Os homens fizeram uma roda em volta daquele ser inerte, coberto por plantas,
resíduos do mar, areia.
Retiram, com as mãos calosas, todo o plâncton que revestia aquele
rosto e, então, perceberam que era tão puro e tão belo
que não acreditaram na realidade do momento.
Chegaram mais perto e alguém tocou levemente no corpo sentindo o contato
da pele macia. Os músculos, em resposta ao estímulo, se contraíram.
Assustaram-se , armaram o arpão e continuaram buscando detalhes . Estava
ali, segundo perceberam, uma espécie em mutação: possuía
escamas na parte inferior do corpo e rabo tal como os peixes.
No ar ficaram indagações: o que seria aquele corpo? O que procurava
ali? Teria vindo com a tempestade do dia anterior?
Ante a ameaça , tropeçaram na dúvida das palavras: disparar
ou não o arpão? Enquanto meditavam, uma voz máscula irrompeu
o silêncio:
"- Chega! Não se apaga a realidade destruindo o sonho" e ele
pousou a mão sobre o ombro do pescador que apontava a arma.
Ele observou o corpo e teve dificuldade de conciliar suas sensações
imaginárias e incoerentes com a certeza de estar no mundo real naquele
momento.
Novamente o corpo contraiu os músculos, os olhos abriram-se, girou a
cabeça em sua direção e sorriu, como se já o conhecesse.
Ele, maravilhado, quanto mais observava, mais possuído ficava do fascínio
daquele ser mutante.
Os pescadores estreitaram a roda em sua volta e um deles, o mais ousado, tocou-lhe
no rosto e disse:
"- É mais bonita do que minha mulher" e o outro retrucou:
"- É muito mais bonita do que todas as mulheres da ilha." E
o moço dos caramujos moveu a cabeça fazendo um sim.
Então choraram pela pouca beleza de suas mulheres. E, assim, ele percebeu
que o feitiço tornara-se tão absorvente que seria impossível
amansar, na tormenta da paixão, o barco do amor, onde o ciúme
naufragara abraçado à tristeza.
Ela estava ali, totalmente nua, e, talvez, tivesse se perdido no caminho, mas
eles, bêbados do álcool da inveja e da paixão, cuspiram-lhe
sobre a pele macia. A sujeira cobriu os seus seios fartos. E não chorou
porque não o sabia fazer. Mais ainda: beliscaram seus braços,
tatuaram-na com cigarro e riram até cair no chão porque ela não
sabia falar e ele nada fez. Seus olhos eram da cor do amor triste e distante
que os homens não percebem.
Sem que pudessem prever, ela soltou-se da rede e retornou ao mar.
Ele ficou, ali, perplexo e perdido no silêncio, a olhar para o mar como
quem quisesse escrever nas ondas o seu pedido de amor.
Dias depois os pescadores arrastam algo pesado: era um corpo de homem com as
mãos repletas de caramujos, uma flor e um bem-te-vi.