Neste verão, a senhora Blaha, esposa, de um pequeno funcionário
da ferrovia de Turnan, Venceslau Blaha, foi passar algumas semanas a sua terra
natal. Era um vilarejo muito pobre e banal, situado na planície pantanosa
da Boemia, na região de Nimburgo. Quando a senhora Blaha, que, apesar de
tudo, se sentia em certa medida uma pessoa da cidade, tornou a ver todas aquelas
casinhas miseráveis, considerou-se capaz de uma ação caridosa.
Entrou em casa de uma camponesa que conhecia e que tinha uma filha e propôs-lhe
levar a moça para a sua casa da cidade, tomando-a ao seu serviço.
Pagar-lhe-ia um ordenado modesto e a mocinha gozaria da vantagem de estar na cidade
e aprender lá muitas coisas. (A senhora Blaha não se apercebia bem
do que a moça lá poderia aprender). A camponesa discutiu a proposta
com o marido, que carregava muito o sobrecenho e se limitou, como resposta, a
cuspir para o lado e, por fim, perguntou:
- Ora diz lá, a senhora sabe que a Ana é um pouco...?
E dizendo isto, agitou em frente da testa a mão queimada e enrugada como
uma folha de castanheiro.
- Imbecil! - respondeu a camponesa. - Não somos nós que devemos...
E assim foi Ana para casa dos Blaha. A maior parte das vezes ficava sozinha durante
o dia inteiro. O patrão estava no escritório e a senhora trabalhava
em costura fora de casa; não tinham filhos.
Ana passava o tempo sentada na pequena cozinha sombria, uma das janelas da qual
dava para o pátio, e esperava a chegada da caixa de música. Vinha
todas as tardes, antes do pôr do sol. Inclinava-se então o mais que
podia para fora da janela e, enquanto o vento lhe agitava os cabelos claros, dançava
interiormente até à vertigem e até que as paredes altas e
sujas parecessem balançar-se uma em frente da outra. Quando a dominava
o medo da solidão, percorria toda a casa, descia a escada sombria até
ao saguão, onde um homem cantava, meio embriagado. Encontrava sempre no
seu caminho crianças, que vagabundeavam durante horas sem fim no pátio,
sem que os pais notassem a ausência de nenhuma delas, e, coisa estranha,
os pequenos pediam-lhe sempre que lhes contasse histórias. Por vezes seguiam-na
mesmo até à cozinha. Ana sentava-se então ao lado do forno,
escondia o rosto pálido nas mãos e dizia: "Refletir".
As crianças esperavam durante algum tempo. Mas quando Anuska continuava
a refletir e o silêncio na cozinha sombria as intimidava, as crianças
fugiam, sem verem que a pobre moça se punha a chorar com lamentosa meiguice
e que a saudade da terra a torturava. De que tinha ela saudades? Ninguém
poderia dize-lo. Talvez até das pancadas que lá lhe davam. A maior
parte das vezes não sabia o que era que a fazia sofrer de saudades; talvez
alguma coisa que um dia existira, a menos que tivesse sido apenas sonho. À
força de refletir sempre que tinha as crianças junto de si, foi-se,
pouco a pouco, recordando. A princípio era vermelho, vermelho, depois aparecia
uma grande multidão. Ouvia-se então o pesado som de um sino e, em
seguida, surgiam um rei, um camponês e uma torre. "Meu senhor rei",
disse o campônio... "Sim", respondeu o rei em voz altiva, "Já
sei". E, com efeito, como é que um rei poderia ignorar tudo aquilo
que um camponês pode ter para lhe dizer?
Algum tempo depois, a patroa levou a mocinha a fazer compras. Como o Natal se
aproximava e era à tardinha, as vitrines estavam já iluminadas e
providas de uma porção de coisas. Numa loja de brinquedos, Ana viu,
de repente, aquilo que era objeto da sua recordação: o rei, o campônio
e a torre. Oh! E o coração bateu-lhe com mais força do que
os seus passos no lajedo. Mas depressa desviou os olhos e, sem se deter, continuou
a seguir a senhora Blaha. Dominava-a o sentimento de que não deveria revelar
nada do seu segredo, e o teatro das bonecas ficou atrás delas, como se
não o tivessem notado. Com efeito, a senhora Blaha, não tendo filhos,
nem sequer tinha feito reparo.
Um pouco mais tarde, Ana teve o seu dia de saída. Não voltou à
noite. Um homem, que encontrara à porta de um café, fez-lhe companhia,
e não se lembrava com exatidão do lugar aonde ele a conduzira. Afigurava-se
ter estado ausente durante um ano inteiro. E quando, fatigada, voltou, na segunda
de manhã, para a pequena cozinha, esta pareceu-lhe ainda mais fria e mais
sombria do que habitualmente. Nesse dia, partiu uma terrina, o que lhe valeu uma
violenta descompostura. A patroa nem sequer notara a sua ausência durante
uma noite inteira. Depois, pelo começo do ano, dormiu fora mais três
noites. E, de repente, deixou de passear através da casa, fechou, receosamente,
a janela e nunca mais apareceu, nem mesmo quando a caixa de música surgia.
Assim passou o Inverno, e uma pálida e tímida Primavera começou.
É uma estação com um aspecto muito particular nos pátios
interiores. As casas são negras e úmidas, mas a atmosfera aparece,
ali, luminosa e comparável ao linho mais branco. As janelas, mal lavadas,
lançam reflexos saltitantes e leves flocos de poeira dançam ao vento,
descendo ao longo dos andares. Ouvem-se os ruídos da casa inteira, as caçarolas
tilintam com um barulho muito diferente do habitual, com um som mais claro, mais
agudo, e até as facas e as colheres têm som diferente.
Nesse tempo, Anuska teve um filho. Foi para ela uma grande surpresa. Depois de
se sentir, durante longas semanas, volumosa e pesada, aquilo escapou-lhe, uma
bela manhã, de dentro, e surgiu neste mundo, vindo sabe Deus donde. Era
domingo e toda a gente dormia ainda em casa. Olhou durante um instante a criança,
sem o rosto se lhe alterar o mínimo que fosse. Mal se mexia! De repente,
porém, uma vozinha aguda saiu do pequenino peito. No mesmo instante, a
senhora Blaha chamou e as molas da cama estalaram no quarto de dormir. Anuska
agarrou então no avental azul que estava em cima da cama, apertou as fitas
em volta do pescocinho delgado e pôs aquilo, como um embrulho, no fundo
da mala. Passou depois à cozinha, entreabriu as cortinas e começou
a preparar o café.
Num dos dias seguintes, Anuska deitou contas aos salários que até
então recebera: eram quinze florins. Fechou depois a porta, abriu a mala
e pousou o avental azul, com o que continha, em cima da mesa. Abriu-o, lentamente,
olhou a criança, mediu-a dos pés à cabeça com a ajuda
de um metro. Depois, pôs, de novo, tudo em ordem e foi à cidade.
Que pena! O rei, o camponês e a torre eram muito mais pequenos. Trouxe-os,
contudo, e, com eles, outras bonecas ainda, a saber: uma princesa com manchas
vermelhas e redondas nas faces, um velhote com uma cruz ao peito e que se parecia
com São Nicolau por causa da barba comprida e mais duas ou três outras
menos belas e imponentes. Além disso, um teatro cujo pano subia e descia,
mostrando ou escondendo o jardim que formava o cenário.
Anuska tinha, finalmente, com que se ocupar durante as suas horas de solidão
e de nostalgia. Instalou aquele magnífico teatro (custara doze florins)
e colocou-se por detrás dele como convém. Mas, por vezes, quando
o pano subia, corria pela frente do teatro, olhava para aquele jardim, e toda
a cozinha, pardacenta, desaparecia, então, por detrás das grandes
árvores magníficas. Depois recuava alguns passos, pegava em duas
ou três bonecas e punha-as a falar. Não era uma verdadeira peça;
as bonecas falavam e respondiam umas às outras; também, por vezes,
acontecia que duas bonecas, como que aterrorizadas, se inclinavam, subitamente,
uma diante da outra, ou faziam um cumprimento ao velhote que não podia
curvar-se, por ser todo de madeira. Por isso, a emoção fazia-o em
todos esses casos cair para trás.
O boato dessa brincadeira correu entre as crianças, e, em breve, os pequenos
da vizinhança, a princípio prudentes e depois cada vez mais atrevidos,
apareceram na cozinha dos Blaha, de pé, pelos cantos, quando a noite começava
a cair, sem perderem de vista as belas bonecas que repetiam sempre as mesmas coisas.
Um dia, Anuska, com as faces em fogo, disse:
- Tenho ainda uma muito maior!
As crianças tremiam de impaciência. Mas Anuska parecia esquecida
do que acabara de dizer. Dispôs todas as personagens no jardim, apoiando
contra o cenário as que não podiam ter-se em pé. Nesta ocasião
apareceu uma espécie de Arlequim, de grande cara redonda, que as crianças
não se lembravam de ter visto. A curiosidade ainda ficou mais excitada
com todo aquele esplendor, e os pequenos suplicaram que lhes mostrasse a "maior
de todas". Só uma vez, a "maior de todas"! Por um instante
só, a "maior de todas"!
Anuska caminhou para a mala. A noite caía. As crianças e as bonecas
estavam de pé, umas em frente das outras, silenciosas e quase iguais. Mas,
dos grandes olhos abertos do Arlequim, que pareciam esperar qualquer espetáculo
terrível, espalhou-se, de súbito, um tal pavor pelas crianças
que soltando agudos gritos, fugiram sem exceção. Um grande objeto
azulado se destacava nas mãos de Anuska que, de repente, tinham começado
a tremer. A cozinha, abandonada pelas crianças, ficara estranhamente vazia
e silenciosa. Anuska não sentia medo. Riu docemente, derrubou o teatro
com um pontapé, depois espezinhou as travessazinhas de madeira que tinham
figurado o jardim, e, quando a cozinha ficou mergulhada na noite, andou à
volta dela, a machucar o crânio a todas as bonecas, incluindo a azul, a
maior.
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