Pouco tempo depois da revolução francesa, a duquesa de Villerose
apareceu, subitamente, na Boêmia. Contava-se que o duque de Friedland
lhe oferecera um dos seus castelos. E, com efeito, viram chegar a Demin duas
grandes berlindas de viagem. Nessa época movimentada contentavam-se com
uma escolta reduzida ao indispensável. Contudo, o castelo estava longe
de se encontrar deserto. Verificou-se - coisa inesperada - que vivia naquela
região um grande número de nobres, emigrados e outros. Havia,
principalmente, muitos polacos.
As primeiras recepções da duquesa determinaram algumas situações
embaraçosas. Sob o alto pórtico, vivamente iluminado, diante do
qual se detinham as carruagens, em fila, interrogavam-se alguns homens com olhos
de espanto, cheios de sombrias recordações, enquanto as mulheres
se cumprimentavam umas às outras com um sorriso irônico. Pronunciavam-se
alguns nomes em voz alta, mas muito depressa: a condessa Polonska, a princesa
de Liegnitz e outros, ainda mais brilhantes. Havia entre esses visitantes alguns
que pareciam não se recordar do seu nome e hierarquia senão no
último minuto, na antecâmara, ao abotoarem as luvas.
Mas a duquesa de Villerose, com as suas maneiras livres e naturais, sabia suavizar
essas pequenas contrariedades. Todos os que ela recebia, todos aqueles cujos
lábios lhe afloravam a mão fina e fresca, eram verdadeiramente
o que pareciam ser. A duquesa fixava aqueles nomes estranhos, repetia-os com
bonomia e facilidade, como se espalhasse pérolas em volta de si; e todos
os visitantes os apanhavam no ar.
Ao lado da duquesa - delicada loira com aquela idade transparente em que as
mulheres parecem concentrar em si a beleza de múltiplas gerações
- os visitantes encontravam ainda em Demin: a princesa Sylva-Valtara, viúva
e irmã da duquesa, com quem, aliás, nada se parecia; o conde Alma,
homem indiferente às mulheres, as quais o admiravam ainda mais por isso,
camareiro sempre vestido de preto e, segundo se dizia, discípulo de Swedenborg;
além destes, o abade Lucas, quase sempre de pé no vão de
alguma janela, taciturno, sombrio, com um sorriso morto nos lábios finos.
Havia ainda uma moça que andava de cá para lá no meio daquela
brilhante sociedade, silenciosa e solitária como se encontrasse em plena
floresta: era Helena, a filha da duquesa, sempre vestida de branco. A duquesa
parecia amá-la muito; mal a jovem princesa se mostrava no salão,
a dona da casa abandonava os interlocutores para ir beijar a moça na
fronte.
Esse gesto de ternura encantava toda a gente. - "Que mulher!", exclamava
o gordo conde Ballim na sua voz forte. E uma magra e velha solteirona, que se
limitara a estar uma vez noiva, retificava: - "Que mãe, sim, que
mãe aquela, meu querido conde!"
Esta cena inspirou a um jovem os seus primeiros versos. Recitou-os na mesma
noite em que os fez, num canto do salão, ruborizando-se muito, e as damas
aplaudiram-no com calor. Mas havia também em Demin verdadeiros poetas.
Viam-se por vezes deslizar algumas silhuetas silenciosas nas aléas mais
profundas do parque, e, quando se aproximavam, via-se um rosto iluminado pela
solidão e olhos animados por estranhas imagens longínquas.
Acorriam às festas de Demin alguns homens capazes de improvisar, num
canto tranquilo, uma melodia que, na mesma noite, era dançada no
salão. Num abrir e fechar de olhos foi composto um pequeno drama, desempenhado
duas horas mais tarde com trajes estranhos e multicores. Já nos fogões
ardiam manuscritos.
Para quê poupar, se havia tantos? Todos os dias surgia uma nova dança
ou um jogo. Formou-se urna espécie de corte. Era o reino da duquesa,
de que Demin constituía o centro.
O pessoal da casa tornava-se, gradualmente, mais numeroso com os convidados
que chegavam. Acorriam de todos os lados e aceitavam no castelo a maior parte
deles. Havia lugar para todos. Surgiram mordomos que tinham sob as suas ordens
mais de cem criados e criadas. A sua fisionomia severa formava estranho contraste
com as mãos humildes e servis.
O conde Alma disse um dia para a duquesa:
- Despeça o mordomo.
- Porquê? - perguntou a duquesa, espantada. - Estou satisfeita com ele.
O conde encolheu os ombros e o mordomo ficou. Entendia-se admiravelmente, com
o governo da casa: era sensível a sua influencia nos banquetes ou nas
festas. Os próprios artistas não desdenhavam por vezes ouvir-lhe
os conselhos. Uma senhora chegou mesmo a dizer um dia acerca dele: - "É
uma pessoa de gosto". O mordomo encontrava-se por acaso perto dela e inclinou-se
silencioso com tanta distinção na sua modéstia, que a senhora
involuntariamente sorriu.
Nesta época, os festivais tornavam-se cada vez mais ricos e suntuosos.
Tanto mais que um hóspede de sangue real surgira de improviso, um príncipe
jovem e atraente, que se dizia ser irmão daquele duque de Enghien que
devia morrer, um pouco mais tarde, em tão cruéis circunstâncias.
Foi como uma moeda de ouro lançada à multidão: toda a gente
o disputou; ele tinha bastante espírito para se servir dessa atração
que sentiam por ele como um direito sobre os mesmos que o cortejavam. Distinguia
as figuras que o cercavam, talhando-as como blocos de mármore, segundo
a matéria que se lhe oferecia: figuras belas e faustosas umas, outras
que aspiravam à beleza, outras ainda enternecedoras. Era uma rica atividade,
pois inventava a maior parte das figuras mal esboçadas ainda. Um ser
apenas lhe parecia possuir acabada perfeição: a Helena dos grandes
olhos tristes. Nela descansava do seu perpétuo esforço de criação.
Poucas palavras lhe dirigia, falando-lhe, então, principalmente do país
natal, daquele vasto país situado à beira do mar calmo. E gostava
de falar como se fosse apenas filho de um humilde pescador ou de qualquer homem
de modesta origem. Nunca um castelo ou um parque serviam de fundo a essa conversação.
A voz não se elevava e o príncipe nunca pronunciava nome que pudesse
ligar as suas evocações a um lugar ou a uma época definidas.
Logo que conseguia animar o mundo que o cercava, logo que todos começavam
a viver da sua vida e que as vagas do seu sangue se produziam, grandes e visíveis,
em mil gestos, o príncipe batia, discretamente, em retirada e voltava
a encontrar a discreta moça, disposta para os secretos encontros.
Uma noite, estava ela de pé no vão da alta porta do salão
que dava para o terraço, ele aproximou-se e ficaram juntos a olhar para
fora: por cima das copas das árvores, a Lua, muito alta, vogava. E a
moça, silenciosa, sentindo-o a seu lado, disse como se respondesse a
uma pergunta:
- Olho aquelas nuvens... Como elas se formam e transformam e alteram todos os
seus contornos, sempre prontas a mudar. Julgamo-nos tentados a imaginar que
cada uma delas podia durar uma vida inteira com esta ou aquela forma... Se não
fosse assim, para que servia tomar forma?
De repente, os dois jovens olharam-se nos olhos e tiveram o mesmo pensamento.
Durante algum tempo ainda permaneceram lado a lado, em frente à noite.
Mas sob a influência de não sabia que constrangimento, o príncipe
voltou-se, de súbito, e viu que estava sob o olhar do padre, ereto na
sombra.
O príncipe misturou-se aos outros grupos, adotou um ar descuidado, esforçando-se,
no entanto, por se aproximar do vão da janela próxima. Esboçando
um sorriso, disse:
- Na sua opinião, senhor prior, que lhe parece que devemos fazer agora?
Exprimia-se num tom hesitante, sentindo a dificuldade de encontrar a sua segurança
habitual.
- Haverá acaso festa bastante ruidosa ou bela para lhe impressionar os
sentidos? O senhor mantém-se sempre à margem de toda a alegria,
segundo parece.
O padre inclinou-se de leve.
- Engana-se, príncipe. Os meus sentidos são agudos. Podemos admitir
que formam uma ilha, uma ilha cheia de sombra neste mar que o senhor, como uma
manhã, ilumina.
- A sua linguagem revela-me a causa da sua solidão. Enganar-me-ei supondo-o
um poeta... ou um pensador?
- Nada disso, príncipe. Se é absolutamente necessário atribuírem-me
uma função, neste lugar em que apenas se encontram pessoas de
alta jerarquia, chame-me muito simplesmente espectador. É pouca coisa
isso, dirá? Depende. O espectador cresce de algum modo com o espetáculo.
Os homens que assistiram a uma batalha são muito diferentes daqueles
que se limitaram a ser espectadores de qualquer tumulto.
- E deve-se julgar segundo o espetáculo?
- Assim mesmo, príncipe. Repare que me lisonjeei a mim próprio.
Eu queria dizer-lhe que, com este espetáculo de riqueza, beleza e poder
perante os olhos, me tornei um homem superior... Desculpe-me: um espectador
superior. Mas agora, peço-lhe, imagine por um instante o que aconteceria
se o próprio espectador interviesse, de repente, na ação.
Perturbaria, sem dúvida, o jogo, interrompendo-o subitamente. Outros
rostos apareceriam debaixo das pinturas; outros vestuários debaixo dos
vestuários, outras vozes por debaixo das vozes habituais...
O abade falava com palavras breves, e o seu tom de voz tornara-se, de súbito,
mais áspero.
- Esta duquesa, repare, é ainda a melhor pessoa de todos nós.
É filha de um barão, não propriamente de um barão
francês, mas não importa... é, em todo o caso, filha de
um barão. Nem toda a gente que por aqui anda poderia dizer o mesmo! A
mãe era, era... Perdoe-me, a memória escapa-me diante destas possibilidades
infinitas. Sim, era dançarina. Vê-a? Está neste momento
a sorrir, com o seu sorriso encantador. E por não ter necessidade de
o mostrar na cena de um teatro que esse sorriso tem tão pouco o ar de
ser uma herança da mãe! Apesar de tudo, é dotada para o
papel de duquesa. Vê junto dela a Sylva-Valtara? Espanhola? Que ideia!
Julgo que foi criada no tempo em que era ainda elegante e graciosa. Agora, que
engordou, prefere fazer-se passar por viúva de um príncipe que
afinal nunca morreu. E aqui está o que são as nossas grandes damas.
Agrada-lhe que lhe dê agora a conhecer quem são os cavalheiros?
O príncipe levara a mão à espada. Tremia tanto que os anéis
lhe bateram contra os copos.
O padre, esse não abandonou a sua atitude independente.
- Ora vê, príncipe, como também eu tenho a minha alegria?
Censurar-me-á ainda o não tomar parte nas festas? Foi mesmo o
senhor que me sugeriu estas ironias...
Com um movimento brusco, o príncipe afastou-se do eclesiástico.
Quase no mesmo instante, estalou um tumulto na outra extremidade do salão.
O mordomo, um pouco embriagado, certamente, agarrara o conde Ballim pelo braço
e dirigira-lhe qualquer insolência. Teria sido fácil disfarçar
o incidente, mas, no momento em que iam empurrar o mordomo para fora da sala,
o conde, furioso, atirara-se a ele, de maneira que se travou, subitamente, um
conflito sob os olhos das senhoras. O mordomo não estava embriagado e
viu-se logo que era muito forte. Empurrou o conde para um canto do salão,
e depois, em farrapos e coberto de sangue, saltou para o meio do compartimento
gritando com uma vez formidável:
- Sois uns cães, uns cães, todos! Esta duquesa não é
uma duquesa. Não passais de...
Houve uma desordem diabólica. Brilharam no ar as espadas e as mulheres
fugiram com as caudas dos vestidos rasgadas. De repente, a esses clamores gerais,
sucedeu silêncio profundo. A duquesa estava de pé junto do mordomo,
tendo ao lado a filha. Ouviram-se em toda a sala as palavras que ela pronunciou
em voz firme, vencendo uma leve hesitação inicial:
- Atrever-te-ás, Simeão, a repetir ainda uma vez diante desta
criança aquilo que acabas de dizer?
O olhar de Helena descansava, calmo e triste, na fronte perturbada do homem.
Todos guardavam silêncio. Ouviu-se em seguida a voz de Helena dirigindo-se
à duquesa:
- Manda-o embora!
Mudo e dócil, o mordomo saiu do salão.
No dia seguinte, deixou Demin.
A duquesa, por seu turno, também exprimiu desejo de partir para a Polônia,
a fim de se instalar num castelo de pessoas amigas. Todos aprovaram a decisão.
Mas os passaportes pedidos para Viena demoravam, e o conde Alma começou
a inquietar-se. À mesa não travava nenhuma conversa alegre, tão
sombrio tinha o rosto e tais sinais de preocupação na fronte.
A duquesa censurou-o. Respondeu:
- Peço-lhe que partamos hoje mesmo.
A duquesa sorriu.
- Mas, Alma, não podemos viajar sem passaportes!
- Vamo-nos embora daqui. Vamos pelo menos até à fronteira.
- E onde havemos de pernoitar? Ao relento? Que maus pressentimentos tem? Teve,
acaso, maus sonhos?
O conde respondeu evasivamente:
- Durmo mal. E por isso tenho sonhos agitados e dolorosos.
No dia seguinte chegaram os passaportes e começaram os preparativos da
partida. O conde mostrava pressa e ninguém o contrariava. Os criados
arrancaram tudo das paredes e armários, e as malas e os cofres encheram-se
como tonéis expostos à violenta chuva.
Todos os quartos estavam abertos e o vento soprava atrás das portas escancaradas.
Pelos salões, curiosa, a multidão dos criados estrangeiros. Dir-se-ia
uma cena de pilhagem. Viam-se lacaios adormecer nas poltronas de veludo que
tinham o encargo de transportar, e algumas criadas, segurando nas mãos
pesados espelhos, contemplar neles a imagem dos rostos vermelhuscos e sardentos,
levando-os estendidos como pratos e a rirem com ar estúpido para o cristal.
Nenhum dos criados moderava a voz; todos riam e faziam barulho como se estivessem
embriagados. Mas a mais bulhenta de todos era uma jovem de beleza provocante
e impudica. Chamavam-lhe Aurora e parecia ser amante de todos os homens. Mas
só o abade Lucas sabia que ela era, na realidade, mulher do antigo mordomo,
que a deixara no meio do pessoal encarregada de uma certa missão.
Aurora não dizia aos outros que a duquesa e os restantes habitantes do
castelo tinham usurpado os títulos que usavam. Pelo contrário,
tentava fazer sentir a todos quanto era ridículo o acaso dos nascimentos
que favorecia mais a uns do que a outros. E os homens, os homens principalmente
- que acerca do caso deviam estar mais bem informados - admitiam de boa vontade
que ao colo e às ancas de Aurora faltavam apenas as pedras preciosas
e os vestidos de seda da duquesa para lhe dar ares não menos altivos
e principescos. O sacerdote, contudo, que continuava as suas observações,
apercebia-se, ao ver a crescente audácia de Aurora, de que algum grande
acontecimento se preparava. Corria também o boato de que Simeão
reaparecera há pouco no castelo durante uma noite, para desaparecer de
novo na manhã seguinte.
Na véspera da partida, Helena estava sentada com o príncipe numa
saleta que não tinha sido ainda despojada do mobiliário. De vez
em quando, ouviam-se ao longe os preparativos da partida. Mas a tempestade de
Outono, silvando nas velhas árvores do parque, lá fora, era mais
forte, e todos os rumores se perdiam nela. Uma pequenina chama saltitava no
fogão aberto sem conseguir formar braseiro. As sombras da noite, que
se avizinhava, pareciam inquietá-la, e era como se os dois seres fizessem
parte do crepúsculo.
O príncipe perguntou:
- Ama sua mãe?
Silêncio.
- Amo-a porque não é minha mãe - respondeu a moça
com simplicidade.
Havia qualquer coisa de tocante na confidência.
- A sua mãe já morreu?
Helena inclinou a cabeça.
Silêncio.
De repente, o jovem perguntou:
- Pode perdoar-me, Helena?
Helena abanou lentamente a cabeça com ar pensativo.
- Responde que sim. Mas sabe o que tem de me perdoar?
- Não. Mas respondo com segurança à sua pergunta, pois
posso perdoar-lhe tudo, seja o que for.
O jovem levantou-se com um movimento rápido e fez um gesto impaciente
para ela, lançando a cabeça para trás.
- Não sou... não sou... príncipe, nem mesmo nobre... Sou...
sou... pobre.. muito pobre - disse, concluindo com ar brusco e duro, incapaz
de dizer o seu nome.
A jovem princesa não pareceu espantada, nem atemorizada. Respondeu como
quem fala a uma criança:
- Para que se agita assim? Sente-se. Fale-me da sua terra, que certamente lhe
pertence. Tantas coisas nos pertencem!
Ele beijou de leve a mão da moça, que durante alguns instantes
se lhe abandonou, beijou-a com os lábios que a confissão fazia
ainda tremer, e afigurou-se que aquele contato lhe conferia uma nova nobreza.
Quando a duquesa entrou e se aproximou deles, foi para exclamar:
- Desta vez, na verdade, partimos. Amanhã, pela alvorada, pomo-nos a
caminho. Temos de despedir-nos. Aonde se dirige, príncipe?
O príncipe ergueu-se:
- Acabo de pedir à princesa Helena que me permita viajar convosco...
- E eu vejo que já obteve essa autorização - replicou sorrindo
a duquesa, beijando a filha na fronte.
Um pouco mais tarde, a princesa Sylva-Valtara entrou por sua vez. Uma surda
angústia a perseguia por toda a parte e a fazia passar constantemente
de um compartimento para o outro. Também a saleta lhe pareceu inquietante.
Mandaram trazer luz; mas fizeram-nos esperar.
Todos se sobressaltaram quando o conde Alma apareceu, subitamente, vestido de
ponto em branco. Quando os outros começaram a rir, ele disse numa voz
rouca:
- Já estou pronto para a viagem.
Ouviram-se, finalmente, passos num compartimento próximo. O príncipe
dirigiu-se para a porta para a abrir aos criados que deviam trazer os candeeiros.
Distinguiu-se um múltiplo ruído de passos. A porta abriu-se. A
luz agitada das tochas deslumbrou o príncipe que sentiu, ao mesmo tempo,
uma pancada e uma dor no ombro esquerdo. Cambaleou. Mas um momento depois, de
espada desembainhada, afrontou os assaltantes. O conde Alma estava de pé
ao lado dele. Sentia-se estranhamente lúcido. Os seus nomes e os seus
vestuários exaltavam-nos. Bateram-se com fúria. A nobreza dum
reino antigo não poderia ter caído mais valorosamente. Mas os
adversários, que tinham por si a força do número, levaram
a melhor. O conde foi o primeiro a baquear. O príncipe perdia o sangue
por muitas feridas. Os seus olhos moribundos procuravam Helena, mas ela já
não se encontrava no salão. Também as outras mulheres tinham
fugido. A horda invadiu o compartimento uivando. À frente dela, Simeão.
Julgava ele não ter resistência a temer. Num corredor sombrio e
estreito tropeçou num monte de vestidos. Era a princesa Sylva-Valtara,
que de passagem degolou.
Entretanto, a duquesa procurava Helena no salão. Quando a multidão
o invadiu, Simeão precipitou-se para ela, mas, de repente, suspendeu-se
hesitante.
- Entregue-nos a princesa Helena, exclamou a duquesa ameaçando-o com
uma espada em forma de crescente, que o feriu na mão.
Simeão soltou um uivo.
- És acaso um homem?
Ele abateu-a com uma coronhada. Levantou-a depois - era tão leve como
uma criança - e atirou-a pela janela escancarada para o vazio do pátio.
Quase a seguir, a grande berlinda de viagem aproximou-se da escadaria de entrada.
Dentro do castelo, a horda lançara-se sobre os caixotes e fazia pilhagem.
Um descobrira até vinho na adega. Simeão tudo previra. Vestia
por baixo dum grande capote a farda negra de camareiro do conde Alma. Tinha
os passaportes nos bolsos da casaca. Aurora subiu antes dele para a carruagem,
velada com cuidado, com as mãos sem luvas cobertas de anéis. No
banco em frente, um criado pousou a forma branca e velada de uma mulher adormecida.
Ia a carruagem a pôr-se em marcha quando alguém saltou e veio ocupar
o assento de trás. Simeão não reconheceu logo o companheiro
suplementar. Mas, no mesmo instante, o rosto emergiu da sombra e uma voz proferiu,
nítida e fria:
- Senhora duquesa...
Era o abade.
Ficaram em silêncio. Sentia-se frio naquela estranha carruagem. Surgiam
luzes não se sabia de onde, cujos reflexos perpassavam nas fisionomias
como pensamentos em desvario. Aurora estremecia. De repente, perguntou num murmúrio:
- Quem é?
E com o dedo apontava a forma branca e velada.
Simeão disse:
- E agora a tua filha, querida duquesa.
O abade ergueu o véu, e o rosto de Helena, como que iluminado por uma
luz branca e baça, surgiu profundamente adormecido. Um pouco mais tarde,
a moça despertou do seu desmaio; depois de baterem um pouco, as pálpebras
ergueram-se-lhe e os olhos, a que já nada podia causar espanto, apareceram,
com sua altivez estranha e triste.
Sob esse olhar, Simeão e a mulher enovelaram-se como cães a quem
oferecem pancada. E sentiram, de repente, isto: "Esta, sim, esta é,
apesar de tudo, verdadeiramente uma princesa".
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