A Garganta da Serpente
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Do amor e de outras tristezas

(Rodrigo Novaes de Almeida)

Dizem que Mário é um jovem de boa família, culto e rico. Que não é bonito, apesar de gozar de algum charme, o que o faz ser disputado pelas moças da sociedade. Até o dia em que conhecerá Mariana. Neste dia, a deusa Fortuna exibirá para ele seu sorriso de Gioconda. Mariana é prima de segundo grau de um amigo dos tempos de escola. Estarão todos em uma cobertura em Copacabana. Festa de réveillon. A noite será clara, iluminada por uma lua cheia ligeiramente amarelada e pelos holofotes do calçadão. Mariana gostará de Mário. Mário gostará de Mariana. Eles se beijarão no primeiro minuto do novo ano e passarão aquele verão inteiro juntos. No entanto, depois das festas carnavalescas, para surpresa e desespero de Mário, Mariana o trocará por Roberto. Dizem que Roberto é mais rico e mais culto do que Mário. E que também é mais maduro e de família mais bem conceituada. Além disso, é bonito. Mário ficará arrasado. Perceberá que, para Mariana, ele terá sido amor de verão, enquanto ela, para ele, será o amor de toda uma vida. Mário escreverá cartas para Mariana e ela mandará devolver todas, para que ele saiba que não foram abertas. "Quem manda cartas nos dias de hoje?" Mariana fará a si mesma esta pergunta e pensará no inconveniente de recebê-las e ter de devolvê-las. "Se pelo menos mandasse e-mails, eu marcaria como spam." Mário começará a beber muito, a virar garrafas inteiras de uísque dezoito anos. E certa feita, embriagado, colocará uma dessas cartas dentro da garrafa vazia e a jogará ao mar. Não fará sentido. Nada, porém, fará mais sentido para Mário-sem-Mariana. Embora na literatura a regra determine que um fato precisa ser verossímil, por mais absurdo que ele possa parecer, na vida as coisas não funcionam assim. Esqueçamos, portanto, a regra. As cartas dentro de garrafas vazias e jogadas ao mar pelo nosso personagem se tornarão hábito. Logo Mário esvaziará outra garrafa enquanto escreverá outra de suas cartas para Mariana, e dirá para si mesmo que esta será a última, depois colocará a carta dentro da garrafa e entregará ambas e parte de sua tristeza às ondas infatigáveis do mar. Mário já não será disputado por moça alguma. A própria família desistirá dele. Seu charme, o pouco de que ainda gozará, se perderá, consumido também, como o uísque dezoito anos de todo dia. Não receberá resposta de Mariana nem de ninfas efidríades que — dizem poetas e trapaceiros — habitam o mar. Mário, o alcoólatra. Somente treze anos depois, ajudado por amigos compadecidos, Mário largará os vícios de álcool e de Mariana, frequentará reuniões de AA e a encontrará em outra festa de réveillon na mesma cobertura em Copacabana, casada com Roberto, dois filhos pequenos, esperando o terceiro e não dará a mínima bola para ela. Mário ignorará a agulhada fina, completa e glacial transpassada em seu peito por rever Mariana mesmo depois de mais de uma década. Mas neste mesmo dia, quando descer para a praia lotada de gente, depois dos fogos de artifício, conhecerá Beatriz.

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