I
  Estava aberta a exposição.
  O bonito frontispício da Academia de Belas-Artes arregalava as janelas, 
  como grandes olhos satisfeitos, e, com fome pantagruélica, ia devorando 
  a multidão que se lhe enfiava pelo pórtico. A fachada despia-se 
  de sua melancolia de pedra, e parecia abrir-se num vasto sorriso. E as flâmulas 
  e bandeiras fincadas nas cornijas, com que atiravam das suas dobras multicores 
  punhados de alegria sobre os que entravam.
  Na área semicircular que existe diante do edifício apertava-se 
  o povo, arquejando aos calores da mais límpida soalheira. Ali suava a 
  impaciência, debatendo-se aos empurrões.
  Acabava de ser franqueado ao público o ingresso no edifício.
  O imperador, que assistira à abertura da exposição acompanhado 
  dos visitantes de convite especial, tinha já ido embora, feita a sua 
  visita às salas de trabalhos. Chegara a vez de todos. Todos queriam entrar.
  Um homem, entretanto, se conservava à distância, e estava parado 
  junto de uma das paredes do conservatório, olhando para o povo.
  Era notável pela alvura dos cabelos e das longas barbas, que um sol das 
  três horas varava de cintilações de cascata. Trajava de 
  preto, calça e sobrecasaca, numa correção excepcional. 
  Apesar de encanecido, este homem tinha a pele fresca e pouco enrugada. Não 
  podia ser muito velho. Era simpático e de uma elegância esquisita. 
  A cabeleira ia-lhe aos ombros em duas ondulações reluzentes; as 
  barbas caíam-lhe abandonadas artisticamente à natureza. Tinha 
  uma das mãos no peito, em atitude napoleônica, e a outra segurando 
  ao longo do corpo uma bengala de junco, castoada de prata. Semeava olhares por 
  aquela multidão sufocando-se para entrar no templo das artes. Um sorriso 
  vago passeava-lhe nos lábios:
  - Que entusiasmo! murmurou, não me é possível entrar hoje...
  Estas palavras, ditas distraidamente, foram ouvidas pelas pessoas mais próximas, 
  que viram-no depois retirar-se andando compassadamente, e desaparecer no Rocio.
  O interessante personagem encaminhou-se para a rua do Ouvidor. No adro de S. 
  Francisco de Paula um moço que passava, saudou-o, tirando o chapéu:
  - Sr. comendador!...
  Pouco mais adiante um homem parou-lhe em frente.
  Era Vítor Meireles.
  O nosso comendador fez um gracioso cumprimento ao pintor, que, sem preâmbulos, 
  perguntou-lhe:
  - Então, caro mio, como vai a sua Visão?
  - Apenas desenhada...
  - Olhe, Giacometo, afianço-lhe que vai ficar um quadro sublime... Já 
  se pode ver pelo croquis... Aquele pequenino túmulo coberto de 
  rosas, meio na sombra!... O jorro de luz celeste que cai da direita, vai dar 
  ao quadro um brilho encantador... As roupinhas transparentes da menina e a túnica 
  abundante e leve do anjo que arrebata a criança através da luz, 
  prestam-se para um ensamble majestoso, não falando nas lindas 
  combinações de reflexos que virão por .... Oh! eu imagino!.. 
  O seu quadro vai fazer barulho... Vamos ver aqui no Rio um painel religioso 
  digno da Renascença...
  - Ora, Vítor!...
  Qual ora!... Eu não o conheço e você não me conhece?... 
  Quer ouvir o que eu digo?... Entusiasmo e perseverança, que você 
  terá um sucesso...
  - Qual! Não espero grande cousa..
  - Verá... E depois mande-o à Itália, para experimentar...
  - Que homem para dizer cousas bonitas!... Verdade é que você me 
  está animando... Eu hei de trabalhar com gosto, fique certo... Olhe... 
  além do croquis do schizzo que você viu... já 
  executei estudos especiais das figuras... já fiz na tela o desenho do 
  conjunto... Encontrei, porém, uma dificuldade. Falta-me um modelo... 
  Quero dar ao meu anjo um rosto que seja ao mesmo tempo um reflexo deste mundo 
  e do outro; um meio termo entre o idealismo do sobrenatural e a realidade terrena, 
  que faça sentir que o anjo é do céu, mas acha-se na terra; 
  em suma, a fusão da beleza etérea com a beleza que se apalpa. 
  Quero um rosto que preste para receber os toques do meu ideal, uma carinha própria...
  - Uma carinha de matar a gente, observou, rindo, Vítor Meireles...
  - E não encontro...
  - Não é fácil... não é fácil...
  - Bem o vejo... Na Itália fora menos difícil. Há muita 
  mocinha para modelo... Aqui está-se como num deserto... muita moça 
  bonita... modelo... nenhum! Ninguém quer ser...
  - Eu tenho um... talvez...
  - Bonita?
  - Admirável... da cabeça aos pés...
  - Que idade?
  - Vinte e três anos.
  - É muito velha... Em todo o caso, se ela quiser...
  - Pagando-se bem, ela quer.
  - Se quiser e servir... Onde mora ela?
  - Rua... número...
  - Hei de vê-la... Preciso ver tudo... Ando sequioso como um conquistador...
  - Tem motivos.
  Algumas palavras mais trocaram os pintores; depois, cada um foi para sua banda.
  O comendador, ou Giacometo, como o chamara Vítor Meireles, entrou na 
  rua do Ouvidor e desceu até à dos Ourives, examinando com interesse 
  o semblante das jovens transeuntes.
  Pela rua dos Ourives dirigiu-se à da Ajuda, e lá entrou em um 
  corredor do lado esquerdo.
  II
  Entremos. Tem-se primeiro que subir uma escada. No alto da escada há 
  uma pequena sala de recepção, forrada de azul, bem arranjada, 
  que dá para uma outra sala muito clara, muito arejada, com janelas para 
  a rua e fisionomia de atelier. Grande mesa ao centro, coberta de pincéis, 
  palhetas, tintas, rolos de tela, frascos de óleo e aguarrás, em 
  ativa confusão. Por volta, as paredes encobertas sob uma nuvem de quadros 
  bem acabados, mas sem moldura. Nos cantos, diversos cavaletes com pinturas por 
  concluir, dos quais destacava-se um maior sobre o qual se via uma grande tela 
  já riscada e com algumas pinceladas a esmo... Era a casa de Carlo Giacometo, 
  um valente pintor, educado em Roma e Milão, que vira o dia na cidade 
  do paganismo formidável e do catolicismo dos Papas, à sombra inspiradora 
  do zimbório de S. Pedro.
  Estava no Brasil, havia dois anos somente. O seu coração de artista 
  o trouxera. Haviam-lhe falado de um grande país, onde o homem se compreende 
  pequeno ante a grandeza esmagadora de tudo o que o cerca. Nesse país 
  não se sonha o ideal, porque o ideal palpita no céu profundo e 
  azul, nas matas ínvias, na rocha esfolada pelas cachoeiras e no sol que 
  dá fulgurações a tudo. Ele quisera ver.
  Sim, que Giacometo era um artista.
  Tinha maneiras de olhar e movimentos que pareciam estudados à vista de 
  um ensaiador. Estava sempre como que apertado num círculo de conveniências 
  artísticas com que se dava perfeitamente. As próprias dobras do 
  vestuário amarrotavam-se-lhe graciosas, tal qual se fossem corrigidas 
  a dedo. Um artista, da periferia até o âmago.
  Não admira, pois, que ele houvesse feito viagem para o Brasil por amor 
  do belo.
  Graças aos auxílios de Júlio Mill, um notável paisagista 
  francês, que aqui viveu obscuramente e na obscuridade morreu, Giacometo 
  estabeleceu-se. Fez relações com os artistas mais distintos da 
  nossa roda de pintores; arranjou discípulos e encomendas, que davam-lhe 
  bastante para levar a vida sem tocar na pequena fortuna que possuía na 
  Itália..
  Até à época da nossa narrativa, Giacometo não tinha 
  executado senão pequenos quadros e retratos, muito apreciados pelos conhecedores, 
  mas impróprios para fazer sensação. O seu sucesso devia 
  ser a Visão, o belo projeto que conhecemos.
  Era encomenda de um rico visconde, que queria ter no seu gabinete a lembrança 
  viva de uma filhinha que perdera havia tempo. O visconde tomava imenso interesse 
  pelo quadro, e não apertava os cordões da sua generosidade para 
  recompensar o artista.
  O motivo do quadro era delicadamente arrebatador, para uma alma como a de Cario 
  Giacometo.
  A recompensa era deslumbrante. Tudo convidava.
  Carlo atirou-se à empresa com toda a vontade, com todo o fervor, com 
  toda a consciência.
  Não era para menos. Tratava-se da sua reputação em país 
  estrangeiro, da sua glorificação talvez. Away!
  Em pouco tempo estavam feitas as despesas urgentes: tintas, tela, pincéis 
  novos. E Carlo preparava croquis, ensaiando-se para a grande execução. 
  O fogo do seu entusiasmo foi vivamente atiçado pelo aplauso dos artistas 
  de nota que examinaram os croquis. Houve até um pintor que lhe pediu 
  antecipadamente o pincel que rematasse o trabalho.
  Giacometo começou. Traçou o desenho na tela. Apareceu-lhe então 
  um sério embaraço. Faltava um modelo. Para a criança que 
  ele queria pintar levada para o céu, possuía excelentes fotografias 
  e as informações do visconde. Mas o anjo?...
  Carlo daria à menina a expressão da felicidade metafísica 
  de além-sepulcro, representada no sorriso incompreensível e doce 
  das boas crianças, quando sonham com flores e passarinhos nos pequeninos 
  sonos do berço...
  A dificuldade era o anjo.
  Para o rosto do anjo convergiam os esforços de Giacometo. Aí a 
  sua verdadeira criação. Aí o momento estético da 
  concepção, por assim dizer. Carecia-se de um modelo excepcional.
  Giacometo saiu à caça.
  Apesar dos seus cinquenta anos e das suas octogenárias cãs, 
  o pintor desenvolveu uma atividade de fanático.
  Percorria as ruas observando atentamente, varava rótulas e sacadas com 
  uns olhares sedentos. Nem uma só moça escapava-lhe. Era como D. 
  Juan de barbas brancas.
  Uma vez, andou escandalosamente atrás de uma criadinha. Não pôde 
  falar-l. A criadinha desconfiou e apressou o passo para casa. Cano não 
  insistiu. A criadinha, conquanto bonita, não era exatamente o seu ideal; 
  além disso, não lhe pareceu de um branco muito puro... Não 
  servia.
  Em outra ocasião, parou muito à vontade diante de uma jovem senhora, 
  que na sua janela via os bondes e abanava vagarosamente um leque. Quando a moça 
  deu com aquele sujeito todo elegante, de barbas cor de espuma, ficou admirada, 
  e, retirando-se vivamente atirou-lhe uma risada. Giacometo não percebeu 
  a desfeita, mas sentiu... Aquela rapariga aproximava-se bem...
  Passou-lhe pelo cérebro o pensamento de apresentar-se à moça.
  Por que não? O que lhe faltava era simplesmente uma pessoa que se quisesse 
  deixar retratar em uma grande tela. Não se tratava exatamente de um modelo 
  vivo... Que dúvida haveria...
  Refletindo mais, lembrou-se da dificuldade em que se veria, caso um exame de 
  perto lhe mostrasse que a moça não prestava. Com que cara havia 
  de dizer:
  - V. Exa. não serve para meu anjo...
  Giacometo desistiu.
  Desistir não é desanimar. E o pintor procurava... Visitou os arrabaldes, 
  as ilhas da baía, fez mesmo algumas viagenzinhas... Entretanto, quando 
  alguém que sabia da sua empresa perguntava-lhe:
  - E o anjo?
  - Não achei ainda!... respondia.
  III
  Por esse tempo abriu-se a exposição de Belas Artes. Giacometo 
  mandara alguns quadros. Para ver que figura fazia o seu trabalho, no meio do 
  dos demais expositores, Cano Giacometo foi visitá-la. No primeiro dia 
  não pôde entrar. Três dias depois voltou à carga. 
  Não havia a mesma afluência do primeiro dia. O pintor entrou...
  Passou rapidamente os olhos pelas pinturas expostas na saleta fronteira à 
  entrada, nessa onde se vê uma estátua de Pedro II, muito branca, 
  de espada pendente à esquerda, fitando tranquilo um cavaleiro de 
  bronze, que galopa nos ares ao longe e acena-lhe com um rolo de papel.
  Seguiu depois pelo corredor que leva à pinacoteca, e, na porta da primeira 
  sala à direita parou. Tinha avistado um dos seus quadros.
  Giacometo foi vê-lo de perto.
  Entretanto, a vista encontrou-lhe uma grande tela pendurada à esquerda.
  Um assunto delicado. Representava uma bela rapariguinha de quatorze ou quinze 
  anos, braços e ombros nus, debruçada numa janela, tentando quebrar 
  com os dedos o pedúnculo de uma rosa. A janela ou trapeira era do tamanho 
  da moldura, de sorte que a figura parecia inclinar-se para fora do painel. Tinha 
  uma execução magistral esse trabalho.
  Giacometo sentiu-se preso pelo quadro. Esqueceu completamente os sentidos. Era 
  o maravilhoso semblante da rapariguinha que quebrava o pedúnculo e ria 
  para o espectador...
  O pintor consultou o catálogo que lhe haviam oferecido na porta do edifício. 
  Rezava assim:
  - Sessenta e quatro. Cópia do natural; trabalho do Sr F.C. Rua da Ajuda 
  n. ...
  Que felicidade! F. C. era um pintor seu vizinho, que o tinha em muita consideração 
  e se mostrava seu amigo...
  Giacometo contemplou por mais algum tempo o belo quadro, e depois, esquecendo 
  completamente a exposição, retirou-se apressado.
  Um conhecido, que o viu andando muito precipitado, perguntou-lhe:
  - Onde vai tão apressado, comendador?
  - Já tenho o anjo! respondeu ele, sem saber se falava a uma pessoa que 
  tivesse notícia de sua empresa.
  Em poucos minutos chegava à rua da Ajuda e batia à porta de F.C.
  Veio recebê-lo uma espécie de criada, raquítica, sem sangue 
  e sem carne, metida em uma saia cheia de rugas verticais, que lhe escapava dos 
  ossudos quadris como de dois cabides. Parecia bem moça. Tinha, porém, 
  o rosto escalavrado, o que lhe duplicava a idade.
  - O Sr. F. C. está em casa? perguntou Giacometo.
  - Sim, senhor...
  - Quero falar-lhe.
  - Entre...
  E a magra porteira, retirando-se pata um lado, deu caminho ao pintor.
  Giacometo encaminhou-se logo para o atelier de F.C. e foi surpreendê-lo 
  em trabalho.
  - Oh! meu grande Giacometo, o que significa esta visita? Você custa tanto 
  a aparecer...
  - Sabe?... Venho aqui por causa do meu anjo...
  - Ainda o teu anjo...
  - É exato... Com certeza os do céu não custaram tanto trabalho 
  a quem os fez...
  - Mas em que posso eu servir-lhe...
  - Vai dar-me o modelo...
  - Como?!
  - É muito simples... Quem é o autor do quadro n. 64 da exposição?...
  - Oh!... Mas você não é homem de copiar...
  - Sei... sei... O que eu quero não é o seu lindo quadro; é 
  o precioso modelo que lhe serviu... Deve ser uma perfeição.
  - É impossível achar-se cousa que mais satisfaça... É 
  quase o meu sonho... Com algum fulgor mais na fisionomia... está feito 
  o meu anjo... Diga-me quem foi o seu modelo... Juro-lhe que qualquer despesa 
  que haja de fazer não me amedronta...
  Um sorriso amargo, inexplicável, traçou-se no rosto de F.C.
  - Ai, meu caro Giacometo, eu vou apresentar-te o meu modelo... É minha 
  sobrinha, uma órfã que minha mulher acolheu... Está comigo 
  há meses... Talvez você a tenha visto...
  - Nunca! protestou fortemente Carlo... O meu anjo não passaria despercebido!
  - Pobre anjo!...
  - Não o compreendo...
  - Vai compreender... Espere um pouco...
  F. C. afastou-se da tela diante da qual conversava com Giacometo, e, oferecendo-lhe 
  uma cadeira, desapareceu no interior da casa.
  Instantes após, voltava, impelindo delicadamente pelos ombros a mesma 
  pessoa que recebera o nosso comendador.
  - Aqui está o modelo... disse em tom de tristeza.
  - O modelo? perguntou Giacometo de um modo estranho.
  F. C. afirmou com a cabeça.
  A pobre mocinha curvava a cabeça com um acanhamento doloroso.
  Esta cena foi de efeito fulminante para Carlo Giacometo. O desgraçado 
  fixava na moça um olhar de louco.
  - Ah! meu bom Carlo, as bexigas podem arruinar um modelo...
  O artista da Visão deixou pender a cabeça e cobriu o rosto com 
  a mão...
  Parecia um condenado. As lágrimas passavam-se por entre os dedos e iam 
  desaparecer-lhe na longa barba.
  No dia seguinte, o visconde que fizera a Giacometo encomenda da Visão 
  recebeu uma cartinha:
  "Meu caro Sr. visconde. - Com profundo pesar declaro a V. Exa. que não 
  me é possível de modo algum satisfazer a sua honrosa incumbência...
  "Etc. - Cano Giacometo."
  O visconde recorreu a outro.
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