Álvaro, o grande Álvaro devia realmente sucumbir, esmagado sob
as ruínas d'alguma das soberbas construções levantadas
à força de imaginação, em meio da noite dos seus
sonhos.
Passava através da vida, absorto em concepções estranhas,
olhar vago, observando sempre uma aparição espantosa, que ninguém
via e que, para o sonhador, brotava do chão, viva, colorida, vibrante;
e voava-lhe em torno, às vezes como um bando de pombas risonhas e festivas,
às vezes como tristes pterodátilos infernais de pesado voo
e vastas asas negras! Com a variedade das aparições, variava igualmente
a expressão do semblante do poeta, ora doce sorriso inexplicável
de louco satisfeito, ora profundo pavor de visionário em êxtase
de contemplações horrendas...
Pobre Álvaro!
A rua do Ouvidor conhecia bem os esgares extravagantes, os bracejamentos exagerados,
espécie de caricatura violenta e inimitável de alta tragédia,
que o saudoso Álvaro desempenhava febricitante em qualquer esquina, ao
correr da palestra, como um desalmado, tomando os assuntos pelos cabelos, apunhalando-os
no ar, com a fúria de uma eloquência sanguinária, funambulesca,
apoplética e atirando-os afinal, remoídos exangues, aos pés
dos ouvintes, horrorizados e deslumbrados.
Álvaro dispunha verdadeiramente de um gênero de elocução
como nunca se conheceu.
Criticava os dias e os fatos, evocando brutalmente as concepções
poéticas do passado e os heroísmos arcaicos adormecidos nos museus
da história. Verberava um ministro, atroando-lhe os ouvidos com o fragor
épico das armaduras de Homero, ou pegava-lhe nas abas douradas do fardão
e o lançava por cima de uma boa distância de séculos, coberto
de motejos, ao riso escancarado dos crocodilos de Ganges.
E não somente nessa eloquência tempestuosa irrompiam os vulcões
do seu espírito. Ele era um poeta trovejante e indomável, que
sabia talhar estrofes imortais em blocos de lava ainda quente, transpirando
ainda a vitalidade renitente da ignição das crateras!
Liam-se aqueles versos, como se o livro escaldasse, como se as linhas do poema
exalassem incêndio; e o leitor ofegava, sentindo na fronte a cálida
irradiação da estranha obra, simultaneamente maravilhado e exausto.
Um cérebro construído desta sorte não pode necessariamente
fraternizar com a parvoice poderosa e grosseira das misérias da vida.
Há de viver em esfera superior, à parte, ou sucumbir, afogado
em vulgaridade, nessa vulgaridade uniforme, imensa, que enche o quadro social
e que é rasa como um pântano, estéril como um deserto...
O grande Álvaro, devia acabar, esmagado pelos escombros rodianos d'algum
dos castelos da sua imaginação...
Álvaro sonhara muito, mesmo porque sonhará sempre. E vira muitos
dos seus sonhos, sem mais a tinta azul e os nevoeiros da simples idealidade,
palpara muitas das suas visões, acorrentando com uma força de
vontade exaustiva e rara as dificuldades brutas do mundo hipogrifo possante
da imaginação que possuía...
Uma vez, saciado da boêmia, sonhou ardentemente as alegrias do lar, as
doçuras da família, os poemas vivos do amor conjugal, a paternidade
e todos os enlevos que advêm...
Foi este castelo o mais rico que lhe agitou o espírito em toda a sua
vida... Ter uma filha, que lhe dissesse a cada instante: papai! papai!, saltando-lhe
aos joelhos, vestidinha de branco, com uma fita ao cabelo, ruidosa como as aves
e meiga como os anjos!... Ter uma esposa adorável e adorada, que lhe
prometesse, através de uma crepitação de beijos, outras
filhinhas, uma ninhada de criaturas como a primeira... E toda aquela multidão
de louros pequenos, cercando-o com o seu amor e com as suas risadas cândidas,
bulhentas!
Álvaro entrou em campanha, para concretizar este sonho. Foi uma campanha
memorável de ardor e entusiasmo.
E triunfou!
Uma bela manhã, as folhas noticiaram o casamento do poeta, desejando
todas, uníssonas que, diante dos passos dos felizes noivos, houvesse
sempre, interminável e franca, uma estrada de rosas e prosperidades.
Veio realmente a estrada; houve muitas rosas, muitas prosperidades...
Álvaro gozou a suprema doçura de ter um filho, um lindo filho
corado e forte. Não se descrevem as explosões do poeta, os delírios,
as febres que lhe acendeu n'alma aquele acontecimento. Já tinha um filho!...
Cada vez que narrava o caso a um amigo, uma ode faiscante fugia-lhe dos lábios,
espantando os transeuntes, como o escândalo dum meteoro.
Infelizmente passaram as rosas, deixando apenas a coroa de espinhos dos entrelaçados
galhos; e das prosperidades, apenas a saudosa recordação...
Álvaro descobriu que a esposa adorada o traía...
Pela primeira vez em sua acidentada existência o expansivo e estrepitoso
rapaz conteve natural tendência do temperamento. Encarcerou heroicamente,
no fundo do espírito, a tempestade rábida do desespero. Todas
as erupções foram refreadas e passou-se no íntimo do poeta
a convulsão incalculável que se daria, se um vulcão engolisse
para as entranhas da terra os vômitos de fogo que lhe ferviam na boca.
Foi uma espécie de calcinação pelo abrasamento concentrado.
O poeta sucumbiu.
A loquacidade vertiginosa do pobre Álvaro extinguiu-se de súbito.
Sobre a mobilidade dramática do seu rosto, passou uma refrega de vento
glacial, que lhe fixou na fisionomia um rictos congelado de espanto inalterável,
profundo, e uma palidez fantástica de morto.
Ninguém houve que penetrasse o mistério daquela transformação.
Álvaro sepultara em sua alma a desventura, como o cadáver duma
ilusão trucidada. E os vermes deste cadáver roíam a vida
ao poeta, e o poeta ocultava as dores no silêncio absoluto, como sob a
discrição duma lápide de mármore.
Macerava-lhe, sobretudo, o espírito a fatalidade que resultava da catástrofe.
Sonhara viagens extraordinárias ao Egito, à Palestina, às
Índias; e as tinha realizado; visitara as areias amarelas, cálidas
e sem termo da planície africana, por onde trota o camelo, fustigado
pelo sol, aspirando sôfrego as emanações do oásis
distante; fora às florestas da Ásia, que o elefante percorre,
dominado pelo cornaca, levando adiante a tromba poderosa, como uma serpente
colossal cativa; vira o teatro das grandes cousas do passado, nas ruínas
venerandas do oriente!... Sonhara deleitosas amantes, que soubessem abraçar
como os polvos e como as deusas, amando e devorando, sequiosas e insaciáveis;
sonhara o luxo europeu, abundante e caprichoso, o convívio dos grandes
espíritos, a supremacia literária; e tudo tivera à mão,
concreto e tangível...
Só aquele doce ideal da família, das venturas tranquilas
da paternidade, o mais santo enlevo do seu espírito sonhador e altaneiro
é que havia de degenerar miseravelmente, numa vergonha atroz; só
este ideal lhe havia de cair aos pés como um anjo prostituído!
Álvaro, desalentado, pediu socorro ao vício. Era mister aturdir-se.
O jogo, a crápula, o vinho, qualquer cousa que atordoasse e aniquilasse!
Contanto que lhe não fosse dado assistir em si mesmo ao desmoronamento
que lhe destroçava as boas ilusões antigas.
Abandonou a casa. Vinha só de tempos a tempos, abraçar o filho.
Mais desembaraçada, então, dos tropeços que sempre aduz
a presença do cônjuge, a esposa dava largas aos seus instintos
alegres de borboleta.
Raciocinava, em satisfação à consciência, que era
bien triste o marido. E tinha melancolias. Alguns amigos do tirano, compadecidos
até à lágrima, dispensavam à vítima a mais
terna e desinteressada proteção...
Extenuado de excesso e sofrimentos, o infeliz Álvaro enfermou gravemente.
Foi bater a um hospital.
- Tem família? perguntaram-lhe.
- Não tenho família!
Numa triste enfermaria, povoada de gemidos e emanações infectas,
esteve o doente algum tempo. Tinha delírios, de quando em quando, durante
os quais relampeava por momentos um ou outro clarão do seu espírito,
mortiço reflexo,. apenas, de sol posto.
E lá morreu.
Antes de morrer, ergueu-se; quis abandonar o leito. Contiveram-no. Estava mais
branco que os lençóis, crescido os cabelos, a barba abundante.
Barba e cabelo cercavam-lhe o rosto d'uma moldura negra, contrastando fortemente
com o alvor da cútis e acentuando mais aquela palidez espantosa.
Olhou em roda do leito, movendo a cabeça, mas com os olhos parados.
Os enfermeiros em grupo observavam com assombro a atitude do extraordinário
doente.
Álvaro sem articular um som, fez grande gesto com a mão, imperioso
e solene, mandando embora os enfermeiros.
Os empregados do hospital afastaram-se dois passos e continuaram a ver.
O enfermo levantou a fronte, baixou-a depois lentamente, cravando um olhar,
de través, terrível, num ponto do espaço; encolheu os ombros,
contraiu os braços, crispando medonhamente os dedos. E descarregou toda
essa violenta retração muscular num gesto único e supremo...
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Ficou assim longamente, o braço direito, estendido para a frente, hirto,
rijo e inexorável, apontando com o indicador nodoso e descarnado aquele
objeto invisível que o seu olhar magnetizava e fulminava!...
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