I
Em volta de nós alargava-se um círculo d'água contornado
pelo horizonte.
Era o Atlântico.
A noite caíra, uma noite esplêndida. O céu, recamado de cetim
azul, cavava-se no alto, profundo e luminoso. Umas estrelas, de luz mortiça
apareciam cintilando como cabeças de alfinete de prata e a lua desfigurada
e enorme pela refração saía do oriente.
Havia oito dias que estávamos no mar, e cada noite fora para mim um espetáculo
incomparável; nenhuma, porém, como a última. A pureza da
atmosfera, o sossego das ondas, a tranquilidade de bordo e o luar casavam-se
tanto com o bem-estar de espírito em que me achava que eu me sentia impregnado
de romantismo.
Estava sentado na coberta do vapor, sobre um caixão, que tinha (lembro-me
ainda) as iniciais C.R. borradas com tinta preta. Levantei-me e me acerquei da
amurada.
Firmei no parapeito os cotovelos e pus-me a olhar e a meditar. Por um tapete deslumbrante
desenrolado por cima d'água, vinham até o vapor os raios de um luar
branco delicioso.
Comecei a ver nesse tapete uns rostos conhecidos, digo, uns semblantes que havia
gravados no meu coração. Eram as minhas recordações.
Reconhecia minha mãe, reconhecia meu pai, reconhecia meus irmãos.
Pensei neles e refleti que, dentro de uma semana, estaria eu na Europa, longe,
longe dos seus carinhos. Entristeci-me. Súbito, porém, como que
senti no cérebro uma chuva de estrelas; principiei a distinguir em meio
da noite as grandezas que eu ia encontrar no velho mundo, tão novo para
mim. O Brasil e a Europa apresentavam-se distintos na esfera das minhas reflexões.
De uma parte, um hemisfério escuro, mergulhado na sombria tristeza da saudade;
de outra, um hemisfério radioso iluminado pela minha sede do desconhecido.
O tempo que levei nessas cismas não sei. Fato é que, ao despertar-me
delas, vi a lua elevada bastante e o isolamento em torno de mim. Os passageiros,
que por ali andavam passeando ao luar, se tinham recolhido; um ou outro marinheiro
necessário às manobras mostrava-se, neste ou naquele ponto, como
uma sombra...
Ouvi, então, um suspiro abafado.
Cousa esquisita! Um suspiro ali pertinho, um suspiro que me pareceu escapado a
um peito amante e a uns lábios formosos de moça poética...
Voltei-me para ver quem era.
A uns oito passos de mim, estava alguém, encostado à amurada como
eu e olhando para o mar como eu estivera. Sonhei logo mil romances. O luar clareava
um rosto de mulher, não deixando contudo ver-lhe a beleza. Do corpo, pouca
cousa aparecia, oculto como se achava na sombra da amurada. Dirigi-me para a suspiradora.
Ela não mostrou perceber o meu movimento. Possível me foi examiná-la.
Era uma linda jovem de dezesseis anos presumíveis. Tinha uns olhos grandes,
encantadores, voltados para o mar e uma pequenina mão encostada ao veludo
rosado da face.
Trajava de azul, pareceu-me.
Lembrei-me de que, nas minhas cismas, não se me afigurava um rosto como
o dessa visão, desse anjo.
É que meu coração não fora ainda penetrado pelas ternuras
do amor e eu me habituara no Brasil a ver, nas mulheres, mulheres. Entretanto,
naquela que ali estava eu via um anjo.
Esse anjo voltou os olhos para mim.
Vi de frente o mais belo rosto de menina que pudera idealizar.
Tinha cabelos castanhos e a tez entre o moreno e o alvo, isto é, da cor
mais simpática do mundo.
O anjo sorriu-me furtivamente...
Eu vira aquela mulher uma única vez a bordo. Fora no dia seguinte ao do
nosso embarque. Notara-lhe a beleza simplesmente. Desta vez, entretanto, um interesse
excepcional levava-me para ela.
Sorri-me ao seu sorriso.
A linda criança envergonhou-se. Baixou o rosto. Eu estendi o braço
e tomei-lhe a cintura. Ela não se ofendeu.
- Como se chama o senhor? perguntou com a voz comprida, balbuciante.
- Júlio, disse eu... E a senhora?
- Júlia, disse-me ela.
Oh! que não sei como referir ao leitor a doçura que me derramou
no peito esta coincidência.
Júlia gozou também, com isso. Senti-lhe o braço redondo apertado
pela manga do vestido cingir-me o pescoço com força. O meu corpo
e o dela estavam achegados um do outro. As palpitações do meu coração
encontravam-se com as palpitações do seu coração.
Saboreei num instante todas as alegrias de um amante feliz; e perante a presença
da lua, como um namorado da antiga escola, depus no rosto abrasado da formosa
Júlia um beijo... demoradamente...
Mais um aperto de mão e separei-me do meu anjo...
II
Dois longos dias se passaram, sem que eu tornasse a ver a minha Júlia,
o meu primeiro amor...
Comecei a ter remorsos de não haver perguntado à mocinha quem eram
seus pais, quem era ela, dizendo-lhe quem era eu também. Não quis
informar-me para não despertar suspeitas. Resolvi esperar.
Debalde porém, postei-me à noite no lugar da minha entrevista.
Júlia não voltou.
Na terceira noite depois do momento mais feliz que tive na minha viagem, vi um
homem dirigir-se para mim. Um marinheiro.
Vinha sério e como que tímido.
Cumprimentou-me, cumprimentei-o.
Eu estava à proa do vapor, vendo as ondas passearem à luz do luar,
que continuava admirável como na noite de meu beijo. Era tarde.
- Sr. Júlio, disse o marujo, chamando-me pelo meu nome, sem querer, eu
o vi, noutro dia, beijar uma moça... Queira acompanhar-me... vai ver uma
cousa interessante talvez para o senhor...
Fui com o marinheiro para o tombadilho.
- Fique aqui e espere, mandou ele, indicando a entrada do beliche de um meu amigo
de bordo... solteiro e folião...
Mal acabara o homem de falar, vi sair do beliche uma mulher...
Júlia!
O marinheiro olhava-me com um ar compadecido. Juro que tive ímpetos de
dar uma bofetada neste homem de bem.
III
Momentos depois, pensa o leitor que estava eu resolvido a suicidar-me?...
Dei uma gargalhada.
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