Quando eu nasci, a Sissi já estava lá em casa. Sissi, como a Sissi
Imperatriz da Áustria.
Seu nome só fui saber quando já era moleca de sete anos. Como
Severina não suportava o próprio nome, meu pai havia lhe dado
este apelido. Papai tinha idolatria pela história da Imperatriz.
Já era parte da família. Fazia tudo em nossa casa, e fazia bem,
feliz em servir.
Sissi era quem me contava histórias e, se eu fosse na dela, até
hoje acreditaria em mula sem cabeça e em lobisomem. Estranhamente nunca
tive medo de suas histórias fantásticas, e no final quem colocava
medo nela era eu.
- Sissi, a mula está atrás de você!!!
Ela ficava que nem o Michael Jackson: branca!
Adorava fazer isso. Hoje, vejo com clareza que adorava tudo nela.
Ela tinha uma humildade absurda. Considerava um favor receber dinheiro em troca
do seu trabalho. Era empregada doméstica, daquelas que moram na casa
do patrão.
Acostumei-me a tê-la sempre por perto. Por ser a caçula da casa,
era a sua protegida. Sissi era minha cúmplice nas travessuras, tipo jogar
fora metade da sopa, roubar moedas do papai, dizer que estudei enquanto lia
almanaques, passar trote no telefone para os meninos. Minha porta-voz nas mentiras
infantis, meu álibi nos flagrantes.
Quando eu estava com uns dezessete anos, Sissi era vista por mim como uma senhora.
Tinha trinta e dois anos. Quando se é adolescente, qualquer pessoa acima
de trinta parece idoso, e além do mais ela tinha aqueles trintinhas acabados,
vividos na área de serviço. Não há viço que
aguente. Acho que até então nunca tinha usado xampu.
Mas, mesmo assim, arrumou um namorado nesta tal velhice imaginada por mim.
Então ela começou a se ver mulher. Comprava vestidos e diminuía
o comprimento deles. Passou a usar batom e ganhou do namorado um cinto vermelho.
Usava-o direto. Marquinho, seu namorado, era sambista e feirante. Tinha uns
quarenta anos e um fraco por mulheres. Azarava todas.
Sissi começou a mudar seu jeito no trabalho e na vida. Como qualquer
mulher apaixonada, ficou distraída. Sorria para a corda, achava a batata
linda, a privada simpática. Chorava com o rádio e sofria igualzinho
aos personagens das novelas. Mulher amando é foda (eu adoro esse estado,
misto de choro e riso). Passou também a cantarolar cozinhando, e lembro-me
bem do repertório: Matriz e Filial. Ela era uma filial assumida. Para
quem não tinha nada na vida, aquele amor era tudo. Se bem que o amor
é tudo, até para quem tem do bom e do melhor na vida.
O fato é que aos pouquinhos começamos a perder na hierarquia das
prioridades de sua vida.
Meus pais sempre foram justos e não a pressionavam. Diziam que ela merecia
viver a vida.
Um dia avisou que estava grávida, mas só avisou quando já
estava de sete meses. Havia escondido o fato devido ao seu recato.
Eu já estava na faculdade e trabalhando. A turma toda lá de casa
já não parava em casa.
O trabalho da imperatriz tinha ficado bastante reduzido, então papai
perguntou a ela se queria ter o filho lá em casa. Ela aceitou.
Nasceu uma linda menina. Imagina o nome que ela deu?
Rosa.
Rosinha virou um pouco filha de todos nós. Todos apaixonados por ela.
Casei-me quando a Rosinha tinha três anos, porém, como sempre passei
mais tempo na casa de meus pais, tentei supervisionar a educação
da menina.
Na idade certa foi mandada para a escola. Fez o primário quase completo.
Eu cobrava dela o aproveitamento. A vida parecia que seria generosa com ela,
e a certeza de que não ficaria com a barriga no fogão deixava-me
feliz. Mas o destino encarregou-se de mudar o enredo.
Sissi sofreu um infarto. Acho que pelo desgosto de ser eternamente a filial,
até de outra filial. Isso levou-a a querer voltar a sua cidade de origem,
no Espírito Santo.
Lá se foi, levando a menina... Dupla perda para nós todos.
Tivemos muitas notícias no início, mas depois fomos perdendo o
contato. A distância é um fato. Afasta.
Sissi e Rosinha viraram história em minha memória.
Seis anos atrás, apareceu uma moça na porta da casa de meus pais.
O sorriso igualzinho ao da mãe. Rosinha estava de volta.
Sissi havia falecido, e a jovem veio tentar a sorte aqui.
Meus pais, já cansados e adaptados com outra pessoa, ofereceram hospedagem
por um tempo, mas ela queria mesmo é trabalhar. Aceitei-a em minha casa.
Mais como amiga do que como prestadora de serviços. Não a queria
doméstica.
Falei que voltasse a estudar. Disse-me que a cabeça não ajudava,
que pau que nasce torto não tem jeito, morre torto. Queria ser doméstica
e ponto.
Percebi naquele instante que o Brasil havia mudado bem pouco.
E foi ficando, me assessorando, me acompanhando.
Sopramos juntas as quinze velinhas do aniversário de minha filha, sorriu
comigo nas premiações que a vida ofertou-me e enxugou minhas lágrimas
nas penalidades que esta mesma vida aplica.
Sempre juntas, mas na hierarquia a dona da gaiola sempre fui eu.
Agora, dia primeiro de maio, ela se vai. A história se repete.
Quer que sua menina nasça longe do pai, bem longe. Vai para o Espírito
Santo.
Filme em série? Não quero Sissi parte três.
Quero que venha uma nova Rosa, um pássaro que voe longe, que não
venha comer em minha mão.
Um pássaro que consiga voar bem alto. Assim acreditarei que o Brasil
mudou.
(22 de abril de 2004)
"Após o magnifico casamento imperial em Viena, a jovem Imperatriz (Romy Schneider) dá à luz uma menina. Invocando uma tradição de corte, Sophie (Vilma Degischer) recusa a permitir que Sissi cuide da criança e Franz Joseph (Karlheinz Bohm) se curva diante da vontade de sua mãe. Magoada, Sissi volta à casa dos pais, mas o Imperador a segue. Decidida a provar que se tornou uma verdadeira Imperatriz, Sissi aceita acompanhar o marido até a Hungria, onde são coroados Rei e Rainha. "