Vieram dias atípicos para aquele verão. A massa de ar quente foi
varrida por ventos do sudoeste, dos longínquos Andes argentinos. As árvores
gemiam e o vento formava súbitos e estranhos rodopios de poeira. Dona
Maria, a cozinheira que ajudava Frau Stern no pequeno hotel, foi até
a porta da cozinha, olhou com circunspeção as pesadas nuvens ao
longe, no final do vale às costas do hotel, persignou-se lentamente e
fechou a porta.
A ameaça da tempestade, as rajadas de vento, fortes e imprevistas, o
frio acentuado pela altitude e a umidade de Nova Friburgo, convenceram todos
a permanecerem no hotel. Alguns hóspedes voltaram a seus quartos depois
do café da manhã. Outros passaram o tempo lendo na sala. Num canto,
dois casais jogavam cartas.
Durante o almoço, a tempestade desabou. A chuva adentrou pela tarde.
Escurecendo mais cedo, os hóspedes começaram a se reunir na sala
e, aos poucos, conversas isoladas começaram a convergir para um único
tema. Os tribunais de Tóquio, que tinham terminado há pouco mais
de um mês, doze de novembro.
Aventou-se a possibilidade de que o julgamento de Nuremberg teria, se fosse
agora, outro resultado do que o de dois anos atrás. Houve quem achasse
que muitos mais deveriam ter sido julgados e condenados. O jovem senhor brasileiro,
jornalista, manteve seu ponto de vista de que o interesse das grandes nações
vitoriosas tinha acobertado a maior parte do horror e que acobertaria mais a
cada dia que passava.
Mas todos concordaram que o que já se sabia, por ter sido tornado público,
era um horror inimaginável. Não que fossem ingênuos e desconhecessem
a História sangrenta da civilização, mas alcançara
dimensão quase impossível de prever, principalmente pela intenção
tão previamente declarada e pelo planejamento que houvera antes de ser
perpetrado. Era uma nova barbárie, ultrapassando em tudo o que se poderia
ter imaginado pertencer a séculos ou milênios passados.
....
A tempestade amainou. As nuvens ainda ficaram, ameaçadoramente, trovejando
ao longe. A chuva parou e seus sons se reduziram ao gotejar vindo das telhas.
Começavam a se escutar os sons da noite que chegava. O frio aumentou
do lado de fora, embaçou os vidros das janelas e um pouco dele penetrou
na sala antes que puxassem as cortinas.
Herr Stern foi para as traseiras do hotel e trouxe uma braçada
da lenha que tinha sobrado do inverno passado. Quando voltou, a conversa tinha
se voltado para as vítimas dos horrores que tinham assolado a Europa
e a Ásia. A pergunta por que? doía em seus espíritos.
Charlotte se apegava à sua justificação para acreditar
na reencarnação.
- Só assim posso suportar a existência de tanto sofrimento para
quem não o merece.
Alguns sentiram, imediatamente, a tensão no rumo que a conversa tomava
e, um pouco incomodados, mudaram de posição onde estavam sentados.
Mas em nenhum olhar se manifestou a ausência ou o querer afastar-se de
um tema tão amargo. Queriam compreender mais.
O jornalista disse:
- Já nos primeiros meses após o fim da guerra na Europa, tivemos
a confirmação para o que suspeitávamos nos últimos
anos. Foram milhares de crianças que desapareceram no meio daqueles anos
de terror... apenas por não serem arianas.
Ouviu-se um Meu Deus! e mais alguém engoliu em seco. A eletricidade
de uma tempestade, no horizonte sobre as montanhas, parecia invadir seus corpos
e a sala. A luz piscou mais uma vez, na lareira estalou uma acha de lenha.
Charlotte tornou-se intensa.
- E quantas mais em todos os séculos passados... e ainda hoje?... e nos
anos a frente? Digam-me, pode alguém atribuir culpa suficiente às
crianças para justificar seu sofrimento?
- Mas, certamente não caberia aos adultos uma expiação
tão dolorosa. Não só àqueles que morreram nos campos
de extermínio, como àqueles que sacrificados nas cidades bombardeadas...
de qualquer lado que estivessem. E, por que não, os soldados? Enlouquecidos
pelo próprio medo ou empurrados para esta profunda bestialidade pela
loucura e arrogância de outros. Eu já vi e senti a besta.
Muitos olhos se fixaram nela, adivinhando os arrepios do espírito e das
memórias, mas ninguém ousou levantar-lhes o véu.
- Não. - continuou - Se acreditarmos num sentido superior para nossa
existência, só a expiação das culpas acumuladas em
existências passadas de um ser ou, de forma mais ampla, as culpas seculares
de todo um grupo de pessoas...
Foi bruscamente interrompida.
- Não! Não! E não! - a velha, sentada na poltrona à
sua frente, que até então estava com o rosto abaixado e os olhos
fechados como se só quisesse ouvir, tinha-o levantado e seu olhar pousava,
intensamente, em Charlotte.
Continuou com a voz ainda intensa na qual, também, podia se perceber
uma firmeza que não permitia interrupção. Charlotte, como
os demais, parecia petrificada, tão intensa e abrupta tinha sido a interrupção
de Frau Zálotay. Esta continuou.
- Mein Kind , nem ouse trazer os exemplos
como os do dilúvio e de Sodoma e Gomorra para os dias de hoje. Não
podemos atribuir o sofrimento do indivíduo, ou de multidões, à
intenção de algum deus desejoso de eliminar toda uma população
pelo que ele, este deus, considera pecado. Não podemos definir como castigo
dos céus o que já se supõe, ou já se prova, serem
catástrofes naturais. Ou, como numa experiência mal sucedida com
cobaias, este deus querer reiniciar tudo de novo a partir de um único
casal como o fez com Noé.
- Portanto - a voz já mais tranquila - não há a culpa
das vítimas ou a punição de algum deus insano. Para ocorrerem
estes horrores pela mão do homem basta, acreditem, basta o medo, a desorientação
de pequenas ou grandes parcelas da humanidade seguindo teorias, justificações
e exemplos, sem nenhum nexo, sem nenhuma comprovação, de alguns
poucos, estes realmente insanos. E estes surgem, como erva daninha em campo
fértil, aqui e ali, se repetindo pelos séculos. Talvez haja um
tanto de continuidade nisto tudo, como ciclos que se repetem indefinidamente.
Mas será que há um propósito imanente ao conjunto das coisas
ou é tudo um caos no qual, pela breve perspectiva do tempo que temos,
imaginamos vislumbrar um propósito maior?
Pausou pelo instante que seus olhos gravavam a pergunta em cada um.
- Perdoem-me se ofendo as suas crenças, mas a ideia de que precisa
haver sofrimento para a purificação não é algo que
um deus justo e bom imporia aos que nele creem. Pelos menos, na minha
concepção do que é justo e do que é bom.
A não ser que a harmonia dos seres e das coisas não seja o propósito
da criação que imaginamos; ou talvez estejamos errados quanto
aos conceitos de propósito e de harmonia por não sermos, na realidade,
a criatura final... e bem presunçosa, diria eu... de deus?
As outras pessoas, reunidas diante da lareira da sala de estar do pequeno hotel,
se remexeram, algo inquietas, sob as mantas que tinham sido trazidas há
pouco e que lhes cobriam as pernas.
....
As implicações do que tinha sido dito e, especialmente, das últimas
frases conflitava com as crenças de alguns, com a vivência de outros,
com ambas as coisas, talvez, de todos. Tinha a haver com sentimentos e formas
de ver e interagir com a religiosidade, cujas raízes se tornavam indistintas
e quase incompreensíveis no passado do tempo da humanidade e das civilizações.
Como pareciam dogmáticas, inquestionáveis, remontando às
brumas do princípio do tempo de cada um!
Naquela sala eram muitas as religiões, fosse só por origem ou
ainda por fé. Católicos como o casal mais jovem e o velho senhor
polonês. Judeus como a família alemã com o filho, a filha
e o marido letão dela. Charlotte e as duas senhoras francesas também
eram judias. Luteranos como os donos do hotel. Por último, um outro senhor,
o jornalista brasileiro, já declarara ter nascido e permanecido ateu...
graças a Deus!... enquanto que da velha senhora que lhes falava,
nada se sabia, pois, quando lhe perguntavam a sua crença, sempre respondia:
- No ser humano. Na sua loucura e na sua bondade, nem sempre de mãos
dadas.
Mas os olhos de todos indagavam por mais e a velha, como se os ouvisse, a cada
um e a todos, continuou.
- Mas não adianta desatrelar da nossa condição humana este
exercício da procura do entendimento. E assim mesmo, embora tão
restrita pela nossa reduzida capacidade de apreender a vastidão do universo
e do espírito, esta procura parece jamais se esgotar.
- Tomem, por exemplo, este deus que se volta, inúmeras vezes, contra
a sua criatura, quando, desde sempre, desde antes de ser seu criador, sabia...
ou sabe, por ser o eterno presente... que teria filhos desobedientes, que lhe
voltariam as costas e, tantas vezes, o negariam. Não há a compaixão
em Iavé. Absoluto em seu egocentrismo exige o sacrifício
do filho a Abraão. Não que não soubesse da cega obediência
de Abraão. Mas sim, queria que ela fosse gravada a fogo na consciência
do patriarca e servisse de exemplo para todos, pelos séculos afora.
- Eu não posso aceitar isto, especialmente quando sofro com Isaac, o
filho de Abraão, a dolorosa incompreensão do que estava acontecendo
e que o deveria estar aterrorizando. E não esqueçam da imensa
solidão e sentimento de exclusão que se abatem, especialmente,
sobre Agar e seu filho Ismael. Quanto ódio e sofrimento advêm deste
momento e ainda se seguirá pelo tempo à frente!
Eram palavras duras e os que eram judeus na sala sentiram-se ainda mais incomodados,
mas não havia o que retrucar.
Frau Zálotay continuou.
- Este deus, como todos demais deuses, foi moldado pelo homem enquanto este
vivia em terror com o desconhecido e o seu futuro, mas, também, para
que este mesmo homem submetesse a mente de seus semelhantes a este mesmo terror.
Virou um pouco seu corpo para a mesinha à sua esquerda, segurou a xícara
com dedos fortes e bebeu um pouco de chá. Na lareira queimavam achas
de lenha bem seca e um aroma suave e agradável vinha de algumas ervas
que Herr Stern tinha colocado sobre elas. De fora penetravam os sons
da noite. Rãs, insetos e o repetido pio de dois curiangos a se procurarem,
criavam uma polifonia quase que agradável. Continuou, depois de algumas
tosses e movimentos dos demais.
- Fica-se com a impressão que, pouco menos de um século depois
da morte daquele que se dizia filho de deus, já é o seu sofrimento
que o diviniza e não tanto as profecias que o anunciaram, nem suas obras,
nem sua compaixão. A conformação com o sofrimento passa
a ser, também, uma conditio sine quae da salvação
eterna para os que nele acreditam. Bem, isto é muito compreensível
se lembrarmos que ser cristão no mundo romano dos primeiros séculos
implicava em perseguição e sofrimento. Mas não ser, depois
de Trento, também foi causa de sofrimento. Aliás, ter alguma distinção
em relação ao próximo, sempre significou, em algum momento
da história, ter-se sofrido por isto... ou fazer-se o outro sofrer.
Ajeitou-se na poltrona, subiu um pouco a manta. Tinha resolvido ir até
os limites mais incômodos e profundos da questão. Os demais a sentiam
severa e, ao mesmo tempo, emocionada.
- Não creio que a vinda do filho de deus tivesse que custar a morte de
tantos inocentes nas mãos dos soldados de Herodes. Teria seu pai o sangue
dos recém nascidos nas mãos? Pois se desde sempre sabia que isto
viria a acontecer, poderia lavá-las como o fez Pilatos?
Os cristãos na sala sentiram-se incomodados em terem que fazer uma releitura
mais profunda de algo que, até então, só formara o pano
de fundo para o que lhe era antônimo: nascimento, vida, nova era. Mas
o que se seguiu atingiu-os mais profundamente.
- Não creio que o filho tivesse morrido na cruz para redimir-nos. Onde
ficam as infinitas compreensão e compaixão do seu pai? Imagino
ter sido isto inventado para estabelecer eternos sentimentos de culpa, de arrependimento
e de gratidão. Tornando-nos herdeiros do pecado original, tornaram-nos
em almas penadas e, tornando-nos libertos pelo seu martírio, tornaram-nos
quase que responsáveis pelo suplício do nosso salvador. Sem falar
de um povo, o judeu, que se tornou réu eterno e sem perdão, por
mais que expie a culpa atribuída por outros.
- Não, o filho morreu como todos que eram executados na época.
O que o torna único é a sua reencarnação. É
através dela que ele estabelece sua divindade. Não, não
seria pela culpa que o filho estabeleceria uma aliança com o homem. Ao
contrário, mais um iluminado para quem o ser humano precisa de tolerância,
compaixão e amor para viver em paz e em comunhão, consigo e com
os seus semelhantes.
Entreouviram-se alguns sim.
....
Os olhos da velha percorreram, lentamente, a face de cada um dos presentes,
como se a cada um estivesse digerindo as palavras.
Mas, então, o que nos resta para o sofrimento inocente? Com qual explicação
se evita a loucura?, pensava Charlotte. Rebelava-se contra a ausência
de justificativas.
- Frau Zálotay...
Todos se viraram para ela. Os olhos da velha senhora a olhavam ternamente.
- Ja, mein Kind. Diga.
- Ainda assim, por que seu não à ideia da expiação
pela reencarnação? Talvez ela nem precise da existência
de deus. Energias... não o saberia explicar bem... emanações
do ser que se mantém após sua morte e dissolução
material. Algo que fique vagando até o momento do seu retorno.
Frau Zálotay não podia negar esta última parte.
- Lotte, Lotte, você sabe, como muitos que estão aqui também
o sabem, que eu seria a última a negar os espíritos... embora
não saiba se reencarnam... pelo menos no sentido que lhes atribuem. Mas
você esqueceu o principal.
- O quê? - perguntou Charlotte, receando parecer uma criança impertinente.
Todos olhares se voltaram para a velha.
- A lembrança. De que serve a punição para um espírito
que não lembra o seu pecado?
Charlotte sentiu-se tola. Mas não sozinha. Algumas tosses e movimentos
revelaram que algo tinha deixado de ser sólido na convicção
de alguns. O pensamento já lhe ocorrera, mas sempre o pusera de lado,
da mesma forma e rapidez com que se dão as costas às advertências
quanto à gula ou outros excessos.
Mas insistiu.
- Ficamos, então sem motivo? Sem resposta?
Antes que Frau Zálotay respondesse, o jornalista adiantou-se com
a sua resposta.
- Na minha opinião não há resposta porque a vida de cada
um de nós é uma teia de acasos, mas tecida pela determinação
da sobrevivência.
Rompendo o silêncio que se seguiu ouviu-se uma voz, com seu timbre alterado
pela emoção.
- Sim, eu acredito nisto. - tinha sido o pai da família judia que tinha
falado.
Com um modo encabulado, como sentisse estar se intrometendo, ele continuou.
- Fico com a impressão de que há algum grande tear... um tear
do tempo... no qual estes pequenos pedaços... as teias que somos, como
disse o senhor... formam uma grande tapeçaria. E a sua trama é
tecida com linhas... é claro que também com a da sobrevivência,
mas, também, com as linhas de outras paixões.... incluindo a da
compaixão.
Todos imaginavam que aqueles cinco carregavam o peso de um intenso drama pessoal.
Riam pouco, falavam menos ainda, embora fossem gentis nos cumprimentos. Quem
reparasse neles teria notado que o quê estava sendo dito ali vibrava neles
de forma intensa.
O senhor não os deixou esperando muito. Voltou-se para a velha senhora.
- Frau Zálotay. Quero lhe agradecer. Suas palavras trazem-nos
algo da paz que nossos espíritos, ainda muito aflitos, procuram.
....
- Lutei pela Alemanha na Primeira Guerra. No front oriental. Após
algum tempo eu fui destacado para ser guarda num campo de prisioneiros russos
e, entre eles, havia alguns letões. Para mim foi um alívio estar
longe das batalhas, até por que aproveitei para treinar com eles o maltratado
letão que eu falava em casa, já que descendia de bisavós...
paternos e maternos!... que tinham emigrado de lá. Mas Deus me perdoe,
o alívio maior veio quando fui enviado para o hospital de campanha e
depois para casa por causa de uma pneumonia.
Ninguém notou o suspiro e os olhos úmidos de Charlotte... oh,
meu pai... também você voltou tão magoado desta guerra...
que vazio há de você em mim.
O senhor continuava a sua história.
- Terminei por recuperar-me na casa dos meus pais e antes mesmo que a guerra
tivesse terminado, meu pai investiu algumas economias num restaurante nas proximidades
da Kurfurstendamm, em Berlim. Fui trabalhar com ele e, infelizmente, ele
morreu dois anos depois do fim da guerra. Minha mãe ainda lhe sobreviveu
outros três anos. Mas eu acho que ela sabia que o seguiria logo e só
resistiu pelo esforço de me ver casado.
Virou-se para a mulher, sorriu-lhe e tomou-lhe a mão.
- Ela sempre insistiu... Meu filho, case com uma menina da nossa terra. Não
estas muito modernas daqui... mas não havia meninas da nossa terra
lá em Berlim, pelo menos com que eu pretendesse casar e, suspeito, com
as quais minha mãe viesse a concordar. Bem, aí a história
com H misturou-se à minha pequena história... - parou um instante
e expressou o pensamento que lhe ocorrera - desculpem, não pensei nas
outras pessoas... como aconteceu com a maioria de nós, não é?
- Em todo mundo - disse o jornalista.
- Sim, é verdade. - respondeu o senhor, aproveitando a interrupção
para pôr suas lembranças em ordem. Continuou.
- Depois que a Letônia expulsou os bolcheviques em 1920, minha mãe
recebeu cartas de primas distantes com as quais tinha deixado de se corresponder
desde o início da guerra. No ano seguinte, fechamos por quatro semanas
no verão e convenci minha mãe de que ela tinha que me acompanhar
na visita que eu faria aos nossos parentes... finalmente tinha sido ela a convidada!...
e viajamos para Lielvãrde, à beira do rio Daugava e a uns 60 quilômetros
a sudeste de Riga.
- Foi a melhor coisa que podia ter acontecido para minha mãe. Reencontrar
suas raízes e as do meu pai aliviou-lhe o luto. Em pouco tempo já
parecia que nunca estivera fora de lá. - Um sorriso tomou-lhe o rosto
- Bem, para mim não foi tão bom assim - e olhou sorrindo para
sua mulher. - Em pouco tempo, já tinham me arranjado uma noiva.
Deu um beijo na mão da sua mulher.
- Não, também não foi assim. Nós gostamos um do
outro desde o primeiro momento que nos vimos. Mas só tivemos poucos momentos
só nossos, pois logo que nos notaram as casamenteiras entraram em ação.
Principalmente minha mãe, parecia que era ela quem ia se casar. Ela estava
radiante. Mas nós não tínhamos mais tempo só para
nós, já que envolveram a minha querida nos preparativos do casamento.
- Para escapar daquele bando de mulheres, eu e meu futuro sogro saíamos
da cidade, onde ele tinha uma madeireira. Numa destas vezes, resolvemos almoçar
numa estalagem que havia na saída da cidade. Entramos, ele me apresentou
a alguns conhecidos e ao estalajadeiro quando este veio nos servir. Depois de
tê-lo cumprimentado eu comecei a me servir de vinho enquanto meu sogro
e ele continuavam a conversar. Reparei que ele fazia muitas perguntas sobre
mim e, quando meu sogro lhe disse que eu viera da Alemanha, ele como que caiu
na cadeira que estava vazia, me olhou fixamente e só pode dizer
Meu Deus, é você!
Já atentos, a curiosidade tomou conta de todos que estavam na sala,
- Com o susto, eu até me esqueci do que estava fazendo. Não tinha
a menor ideia de quem era ele. Aí, ele começou a fazer
perguntas. Se eu tinha lutado na guerra? Respondi que sim. Se estivera no front
russo? Hesitei, cheguei a recear que algo que eu tivesse feito na loucura de
alguma batalha retornasse, agora, contra mim. Mas, acabei confirmando. Aí
ele me perguntou se eu tinha sido guarda num campo de prisioneiros. Confesso
que pensei em negar. As condições do campo tinham sido horríveis
e muitos dos meus companheiros tinham sido cruéis. Mas, enquanto eu me
debatia sobre o que iria responder, ele, de repente, levantou-se da cadeira,
rodeou a mesa, evitou o meu sogro, que já se levantava temendo por mim,
e me abraçou com tanta força que chegou a me levantar da cadeira.
O senhor parou um instante. Nada parecia se mexer. Todos tinham a respiração
suspensa. Só as chamas dançavam na lareira.
- Se não fosse meu sogro acalmá-lo, fazendo com que me largasse
e levando-o, novamente, para sua cadeira, eu não sei durante quanto tempo
ele teria ficado lá, agarrado a mim, chorando feito uma criança.
É claro que todos na sala tinham se voltado para nós e até
sua mulher viera da cozinha ver o que estava acontecendo,
- Quando falou algo que se entendesse a primeira coisa foi...
Você me salvou!.
... e repetiu isto por muitas vezes. Mais calmo, ele me lembrou de que eu era
o único guarda que conversava com eles, os letões.
Você se lembra que você dividia seus cigarros conosco?,
... perguntou-me. Sim! Eu me lembrava, mas nem era um ato generoso. Meu desconforto
com a tosse já tornava fumar um desprazer. Não quis que ele tomasse
por generosidade o que, certamente, não o tinha sido. E lhe disse isto
É que eu tinha acumulado maços de cigarros que, imaginava,
valeriam mais que dinheiro numa emergência. Só que quando piorei
e determinaram minha ida para o hospital de campanha, eu ainda tive forças
para me despedir de vocês e lhes dei o resto dos maços, pois não
ia mais precisar deles.
Seus olhos se apertaram, como se a sala se tivesse transformado na estalagem
daqueles dias e ele os tivesse vivendo em vez de lembrar.
- Só que me salvaram! - respondeu o estaladajeiro. - Você
nos salvou... a mim e a alguns companheiros. Foram necessários alguns
goles de aguardente para que ele começasse a se acalmar e nos explicasse.
Poucas semanas depois de eu ter sido enviado para casa, as tropas russas tinham
avançado e chegado muito perto do campo de prisioneiros. Os soldados
tinham se tornado mais nervosos e alguns muito mais rudes. Alguns prisioneiros
foram executados por infrações mínimas. Ele e alguns companheiros
resolveram tentar fugir durante a noite, mas passando entre os alojamentos dos
guardas, porque a floresta lhes ficava mais perto. Era muito arriscado, mas
não teriam nenhuma chance pelos outros lados. Só que para seu
azar, um guarda que não conseguira dormir por causa da ansiedade, estava
caminhando próximo ao lugar na cerca por onde pretendiam fugir.
- Nós, também, fomos surpreendidos. Eu já tinha passado
a cerca e, de repente, lá estava ele, a não mais que cinco metros,
encostado numa pequena cabana de madeira, acho que tão assustado quanto
eu. - nos olhos do estaladajeiro eu pude ver o medo que ele sentira naquele
momento. E ele continuou: O soldado alemão teria gritado se eu não
tivesse levantado as mãos. De qualquer forma isto o aquietou. Assustou-se
quando eu enfiei a mão por baixo do casaco, mas eu sacudi a outra mão
como se nada precisasse recear. Acho que, também ele, estava cansado
com a guerra. Sua curiosidade foi mais forte e sabia que bastaria gritar. Enquanto
isto, meus outros companheiros estavam como que congelados, ainda do outro lado
da cerca. Alcancei dois maços dos que você nos dera e os joguei
para ele. Ele se abaixou, sem tirar os olhos de nós, pegou-os, olhou,
abriu um deles e tirou um cigarro. Nunca vou esquecer o olhar cansado com que
ele me olhou. Depois deu de ombros, virou-se e desapareceu nas sombras. Voltei
para ajudar meus companheiros e enquanto o fazia, olhei na direção
onde ele tinha desaparecido e imaginei ver um breve ponto de luz vermelha mais
longe. Em dois dias conseguimos alcançar nossas linhas.
Parou para tomar um gole de água.
- Que história! - exclamou o jornalista. - Conte, conte.
Mas antes que o senhor retomasse sua história, ouviu-se o sino chamando
para o jantar. Herr Stern se levantou e, também algo contrafeito,
teve que lhes pedir para interromperem e irem para a sala de jantar. Mas não
sem antes se virar para o senhor e pedir-lhe:
- Poderemos continuar depois do jantar?
- Naturlich!
Todos confirmaram que voltariam para ouvir o restante daquela história.
....
Após o jantar, Frau Stern, que tinha preparado o jantar e perdera
a primeira parte da história, veio se juntar ao grupo diante da lareira.
Herr Stern lhe fizera um resumo do que fora contado enquanto jantavam.
Todos tinham voltado para seus lugares e o senhor continuou a sua história.
- Bem, foi tal a insistência do estaladajeiro que meu sogro e eu nos vimos
obrigados a almoçar lá todas as vezes que saíamos para
o campo. E o estaladajeiro e sua família foram nossos convidados na cerimônia
de casamento e nos deram algumas garrafas de um excelente vinho, as quais trouxemos
conosco quando regressamos... e também meine Liebe... para Berlim,
uma semana depois de casarmos.
Parou um instante para ordenar sua memória.
- No início de 39... ja, Liebchen? - ele se virou para a esposa
que lhe tinha dito algo em voz baixa. - Ja, ja, você tem razão.
- Minha esposa me lembrou que eu estava esquecendo de contar algo importante...
Bem, nem tanto... Ainda solteiro, nos primeiros dias da república de
Weimar, um dia eu encontrei um mendigo mexendo no lixo na traseira do restaurante.
Infelizmente isto era muito comum. Só que este me chamou a atenção
por estar vestindo um casaco e calçando botas que me lembraram o que
eu usara durante a guerra. Quando ele se virou para mim, eu reconheci que era
um dos meus companheiros de guarda do campo de prisioneiros. Ele estava barbado,
mas não havia dúvida; era ele! Ele, também, me reconheceu
e virou o rosto depressa, envergonhado. Aproximei-me dele, falei com ele, consegui
convencê-lo a usar o banheiro que tínhamos no fundo e emprestei-lhe
minha navalha. Depois, enquanto ele comia um prato quente na cozinha, ele me
contou que, como outros milhares, ele estava desempregado e que só estava
esperando por um lugar no Freikorps . Vivia
sozinho, pois seus pais tinham falecido antes de retornar e não tinha
coragem de ser um peso para os parentes que, também, estavam passando
dificuldades.
- Por mais algumas semanas, ele ia comer seu prato antes de fecharmos. Às
vezes não aparecia, mas acho que por orgulho. Acabou fazendo parte do
Freikorps e, continuamos nos vendo. E pela sua mão, com nosso
consentimento prévio, vinham outros... outros a quem um prato quente
fazia bem... eram poucos, dois, no máximo três - explicou como
querendo evitar que alguém achasse seu gesto mais do que algo devido
como um mínimo de humanidade.
Era evidente que estava cansado. Frau Stern apressou-se.
- Por favor, Herr Ulmanis, não se canse. Podemos ouvir o resto
outro dia.
Ouviram-se alguns Sim e É claro, embora estivessem todos
ansiosos em que chegasse ao fim da sua história. Mas o senhor sacudiu
a cabeça - era para ele como que uma catarse - olhou ternamente para
a esposa enquanto este lhe acariciava a mão.
- Nein. É apenas pelo fato de eu ainda não dominar o idioma.
Mas, se ela não se importar, eu vou pedir à minha filha, Hertha,
que termine. Ela conhece bem a história... fez parte dela... e sabe falar
português melhor do que eu... ainda não entendo como estes jovens
conseguem aprender tão depressa - deu um leve tapa na testa, soltou um
riso contido - Gott, bin ich Dumm! Basta
ser jovem, não é?
Virou-se para filha, corada por ter-se tornado o centro das atenções,
e perguntou:
- Tudo bem?
Ela assentiu e, enquanto se desencostava da cadeira e sentava mais à
frente, o senhor, olhando para Frau Stern, perguntou:
- Poderíamos tomar um chá, Frau Stern?
- Mas é claro! Onde estou com minha cabeça?! - Levantou-se num
salto e foi para a cozinha.
Até que Frau Stern voltasse com o chá e todos tivessem
se servido, a sala encheu-se de murmúrios e rápidos diálogos
de comentários sobre o que estava sendo contado.
- A história privada, a infinidade das pequenas histórias pessoais
é, para mim, mais grave e relevante do que a oficial. Sempre me impressionou
mais... para mim, a sua correnteza é o verdadeiro rio da História.
- disse o jornalista.
Quando quase todas as xícaras já tinham retornado aos seus pires,
a filha olhou para o pai, perguntando-lhe com os olhos se poderia começar.
Ele lhe devolveu um olhar agradecido. Ela se ajeitou novamente na ponta da cadeira.
- Na Noite dos Cristais , em novembro de 38, eu tinha 16
anos e meu irmão dois anos menos. O restaurante, que resistira às
loucuras econômicas dos primeiros anos das décadas de vinte e de
trinta, teve que ser vendido nos primeiros anos nazi e com o dinheiro
montamos uma pequena mercearia, pouco acima de Scheunenviertel. Mas, naquela
noite eles também a destruíram. Mas perdemos pouco. Pouco
havia e papai trazia o dinheiro para casa toda noite. O que tínhamos
guardado foi o suficiente para nos conseguir transporte até Riga e não
sermos um peso para os parentes da mamãe em Lielvãrde, para onde
seguimos depois de termos solicitado vistos ao representante consular dos Estados
Unidos da América em Riga.
- Fomos informados que estávamos numa extensa lista para a concessão
de vistos, e que esta avançava dependendo de uma quota anual. Mas, não
nos sentíamos pressionados. Todos conseguimos algo para fazer. Eu estava
feliz. - olhou para o marido. Voltou-se para os demais - Conheci Anatolijs onde
meu pai tinha conhecido minha mãe. Casamos na primavera de 39, no dia
em que completei dezessete anos.
Charlotte olhava intensamente o rosto daquele casal. Havia algo dramático
neles. Como uma profunda tensão da qual não conseguissem se libertar.
Frau Zálotay respondera, quando ela lhe perguntou se repara na
profunda tristeza que, às vezes, aparecia nos olhos daquele casal jovem
- O espírito deles, Lotte, o espírito deles. Ele já envelheceu
muito além do nosso.
Voltou a prestar atenção na história.
- Mas. de um momento para o outro, logo após ter-se iniciado a guerra,
soubemos que tínhamos passado a ser os primeiros da lista para o visto.
Menos Anatolijs, que se inscrevera pouco antes de casarmos. A sensação
de paz, de estarmos protegidos, passou tão logo soubemos da invasão
da Polônia. Todos ficaram apreensivos. Falava-se que a Rússia invadiria
os países do Báltico e sua parte da Polônia que lhe cabia
pelo pacto com a Alemanha. Então, ainda no final da primavera de 40,
recebemos nossos vistos... menos Anatolijs. Meus pais e meu irmão embarcaram
no trem que cruzou a Sibéria. Chegaram no Japão e de lá
cruzaram o Pacífico até os Estados Unidos.
- Wie meine Mutter! - todos se viraram para
Charlotte. Explicou. - Minha mãe. Ela também veio pela Sibéria,
Japão e Pacífico. Quando a pude chamar o Atlântico já
estava em guerra. - e dirigindo-se para a jovem com alma de anciã, disse
- Desculpe, continue.
- Oh, não! Não precisa se desculpar... todos nós acabamos
por ter histórias tão parecidas, não é? - disse
Hertha.
E retomou.
- Eu resolvi ficar, apesar da insistência do meu marido. Graças
a Deus que eu fiquei. - um tremor lhe percorreu o corpo e todos sentiram que
o drama iria se adensar.
- Pouco depois a Rússia nos invadiu e, poucos meses depois, depois que
Hitler rompeu o tratado com a Rússia, tínhamos as tropas alemãs
nas ruas. Acabamos sendo confinados no gueto de Riga. Muitos morreram
lá.
O jornalista não se conteve.
- Desculpe-me.
Ela se voltou para ele e olhou-o com aqueles olhos nos quais se percebia o incompreensível.
Ele quase se arrependeu, mas a curiosidade era maior.
- Eu a ouvi dizer, há pouco, "Graças a Deus".
Não entendo.
Ela o olhou de uma forma, muito suave, mas que o fez sentir um arrepio e pensar
- Esta jovem é muito mais velha do que todos nós.
- Talvez seja apenas uma expressão da minha infância. De um Deus
que não o foi de tantos outros. Mas, o que se pode querer quando estamos
mergulhados no desespero? Nossos milagres não deixam de ser milagres
quando toda a terrível realidade à nossa volta nega a possibilidade
de ocorrerem. E acreditamos que este Deus, tão particular e só
nosso, existe apesar de faltar aos outros.
Ele sentiu-se constrangido. Ela falava de uma realidade e de uma dimensão
que ultrapassavam todo o seu entendimento... Graças a Deus, pensou
e riu de si mesmo. Mas ela veio em seu socorro.
- Ou talvez, como o senhor disse há pouco, uma tênue linha ditada
pela sobrevivência e... por que não?... pela compaixão,
que insiste em aflorar, acabe percorrendo e ligando as teias de acasos que nós
somos. Talvez nossa história seja um exemplo disso.
- Claro, claro... me desculpe... eu não consegui evitar. Sabe como é,
não sabe? Curiosidade e atrevimento de jornalista. Mas. Por favor, continue.
- e se afundou na poltrona como se quisesse que não reparassem mais nele.
- Havia fome, havia doença, havia morte. Eu e meu marido chegamos, muitas
vezes, a pensar que, também, iríamos morrer de fome no gueto.
Não imaginávamos que pudesse haver um inferno maior sobre a terra...
mas os há! Passaram-se meses. Lembro-me que desapareceram as alegrias
próprias de cada estação do ano. Cada uma passara a trazer
unicamente sua agrura. Amontoados nos apartamentos do gueto, famílias
sofriam sem ter aquecimento no inverno e com o calor excessivo do verão.
A primavera e o outono lembravam-nos as colheitas do que não tínhamos
para comer. E eu pensei que, durante aqueles dois anos, eu estava aprendendo
o significado da palavra sobrevivência!
As memórias tornaram-se, momentaneamente, num peso insustentável.
Ela abaixou a cabeça, suas costas se vergaram e soluçou. Foi quase
murmurando que disse:
- Sobrevivência! Deus me perdoe! Quantas vezes eu quis morrer.
A seu lado, seu marido inclinou-se e a abraçou. Seu pai tomou-lhe a mão,
levou-a aos lábios e, depois, colocou-lhe um lenço na palma. Ela
levantou a cabeça, olhou-os através das lágrimas. Viu que
também estavam chorando. Sorriu-lhes debilmente.
Todos estavam emocionados. Alguém soluçava. Sentia-se a compaixão
que se apossara dos que ouviam e que se sobrepunha ao seu horror. Frau
Stern fez um movimento como se fosse levantar. Não completou o movimento,
pois a viu olhar para si e sorrir-lhe, como lhe dizendo que não se preocupasse.
A jovem mulher beijou as mãos do pai e do marido, secou as lágrimas
com o lenço e voltou a dirigir-se aos demais.
- Desculpem... isto deve estar sendo doloroso para vocês.
Como?! Doloroso para nós?! Nem se compara com o que vocês...
- sentiam-se surpresos e pequenos diante dela.
- Não sei como lhes explicar. É claro que os terrores ainda nos
assaltam. Temos pesadelos ainda. Mas... foi! Entendem? Foi! E,
agora, as palavras e as lágrimas acabam desaguando esta turbulência
em águas mais plácidas. Seu compartilhar e sua compaixão.
Eu posso continuar?
Claro!... Por favor... iriam até o fim com ela. Descobriam a humanidade
maior de comungar, não só o pão, não só a
salvação, mas, também, comungar o fel, provar, também,
da desolação. Apesar do crescendo de horror que o desenrolar da
história prenunciava, ninguém conseguiu afastar-se. Cada um aceitava
sua parcela no compartilhar, em aliviá-la. E sabia quão pequeno
seria seu peso. E sabia que, depois daquela noite, já não veria
a vida... e a morte... da mesma forma.
Ainda se passou um momento antes dela reunir suas forças e continuar.
- Mas, a verdade é que eu só vira algo muito pálido do
significado da palavra sobrevivência. Até que, um dia, em
42, começaram a nos deportar. Levavam-nos em trens apinhados para um
campo de concentração na Polônia. Mas quando chegamos não
nos deixaram desembarcar lá. Por alguma razão houvera um conflito
de ordens. Pelo menos era o que tínhamos entendido pelas vozes iradas
que nos chegavam pelas tábuas do vagão. Nos deixaram mais de um
dia parados lá, amontoados, sem água e sem comida. Depois o trem
voltou a se movimentar e, um dia depois, fomos despejados num outro campo de
concentração. Muitos tinham morrido nos vagões.
- Não vou cansá-los contando o que aconteceu lá nos anos
seguintes. Não há quem não saiba dos fatos. Mas, só
quem esteve lá sabe que o horror de todo dia se torna monótono.
Algo parecido com a vida se resume em tarefas e regras... poucas regras que
não deixam dúvidas de que há o que abrevie a vida e que
há o que apenas retarde a morte um pouco mais. Mas, não tenho
dúvidas de que há, mesmo que desapercebida, uma... como diria...
uma compulsão pela sobrevivência. Nada mais explica que nosso corpo
ainda se levantasse a cada manhã, quando este mesmo corpo, a mente, o
espírito clamavam para que ficássemos deitados lá e que
se deixasse que eles... os outros cuidassem de terminar aquilo. Será
que é disto que se constitui nossa alma? Será que isto é
que é o verdadeiro impulso anímico que há em nós...
em tudo? Sobreviver a todo custo?
- Bem, o que pode ter algum interesse na nossa história e que é
a razão de meu pai a ter começado contar, é que parece
que a tênue linha que une nossas vidas nos alcançou lá no
campo de concentração.
- Desde que chegamos ao campo, homens e mulheres permaneceram separados e eu
só vi Anatolijs num rápido instante, meses depois. Ele me viu
também e isto nos deu um pouco mais de forças para suportar. O
grupo de mulheres no qual eu me incluía foi, desde o início, designado
para cuidar da horta que ficava fora das cercas. Após alguns meses, reparamos
que se iniciara uma nova fase de construções. Eram as câmaras
de gás e os fornos. Meu Anatolijs teve que participar da sua construção
e, depois, teve que operá-los.
Todos o olharam. Que agrura! Tornar-se mais vítima por tornar-se carrasco!
- Um dia, enquanto estávamos trabalhando na horta, o SS que
supervisionava nosso trabalho, nos perguntou se alguma de nós era de
Berlim. Eu respondi que tinha nascido lá. Ele me perguntou como eu tinha
chegado ao campo. De onde eu tinha vindo. Eu contei da nossa ida para Riga e
do meu pai. Como se chama seu pai? ele perguntou. Eu lhe disse. Ele me
olhou, incrédulo, pareceu me avaliar, novamente me olhou espantado e,
quando se refez, quis saber Ele veio aqui para o campo?
Olhou para o pai por um momento e voltou à história.
- Eu nada entendi. Mas lhe contei a história dos vistos, que meus pais
e irmão já haviam partido para os Estados Unidos e porque eu ficara.
Mas fiquei sem entender, principalmente porque eu pensei ter visto alívio
na sua expressão. Mas, aí ele me perguntou... Seu marido, aqui?
Como é o nome dele? Neste momento eu temi. Calei-me, mas ele disse...
Não tenha medo. Você sabe que eu poderia descobrir isto de outra
forma se quisesse. Acabei dizendo e passei os dias seguintes apavorada com
o que eu pudesse ter causado a Anatolijs.
- Dias depois ele veio, novamente, nos supervisionar. Permaneceu algum tempo
perto de mim. Eu não ousei levantar os olhos, embora quisesse tanto lhe
perguntar por meu marido. Mas tive medo, maior ainda, de saber. Ele se afastou,
mas eu reparei que ele ficava olhando de longe para mim. De repente, ele voltou
a se aproximar de mim e, me assustando, disse: Seu marido está vivo.
Eu só tive forças para levantar os olhos e agradecer-lhe com o
olhar. Com o passar dos dias, das semanas, ele foi contando que também
era de Berlim, onde tinha conhecido meu pai no seu restaurante. Quando comentei
um detalhe da decoração em estilo letão do salão
principal e perguntei se ele se lembrava dele, ele falou algo rude para mim,
se retraiu e passou vários dias seguidos sem me dirigir a palavra.
- Como eu não esperava mais que ele voltasse a falar comigo, foi um susto
quando um dia ele parou na minha frente. Ajoelhada, cuidando das hortaliças,
eu só via as suas botas e não ousava parar e levantar os olhos.
De repente, senti suas mãos nos meus ombros e comecei a tremer. Ele me
fez ficar em pé, mas eu continuava olhando para baixo. Aí ele
falou meu nome e disse
Olhe para mim!
Olhei para seu rosto com medo, mas vi compaixão onde esperava ver crueldade.
Então ele me perguntou se eu não o estava reconhecendo. Eu não
estava entendendo. Só balançava a cabeça em negativa. Seu
aperto nos meus ombros tornou-se mais forte, ele me olhou intensamente e disse
Não se lembra? Na cozinha do restaurante? Você trazia os pratos
para meu pai e para mim.
Fiquei petrificada. Era uma das pessoas que me pai alimentara durante o tempo
de seu desemprego e da sua fome! E ele me lembrou mais...
Você quase sempre trazia um pedaço de bolo ou torta embrulhada
em um pedaço de papel e fazia de conta que era escondido do seu pai.
Mas eu tinha percebido o sorriso que ele lhe dava quando você voltava
do salão com o embrulho na mão.
E abruptamente ele me soltou e eu caí sobre meus joelhos. Quando me recompus,
ele já não estava mais perto de mim. E nunca mais voltou a dirigir
a palavra só para mim. Só que um dia, bem depois disso, na hora
que voltávamos para o campo, ele ordenou que nosso grupo entrasse num
barracão, nos disse que retornaria e nos trancou lá. Quando, mais
tarde, ele voltou e nos soltou e chegamos aos dormitórios, vimos que
todas que lá tinham ficado tinham sido levadas para as câmaras
de gás.
Por uns momentos Hertha parou de falar e o marido lhe estendeu um copo d'água.
O que aquilo implicava penetrava no espírito de cada um profundamente.
Aí estavam as linhas que se entrecruzavam e formavam algo maior do que
as teias de acasos das suas vidas. Intencional ou não, ditado seu curso
por algum deus ou não, aí todos sentiam a presença do que
ampliava a sempre inexplicável razão se ser do Ser.
- Um dia, ele e os outros guardas desapareceram. Ninguém se atreveu a
sair dos seus dormitórios nas primeiras horas. De repente, a porta se
abriu violentamente e entraram vários homens. Mas não estavam
fardados. Aterrorizadas nós estávamos quase que empilhadas no
fundo do corredor. Aí eu ouvi o meu nome. Não consegui responder.
Mais uma vez me chamaram, desta vez mais perto. Eu ainda não reconheci
quem era, pois estava de costas para a claridade que entrava pela porta. Só
quando Anatolijs me abraçou é que eu compreendi. Tínhamos
sobrevivido! No dia seguinte chegaram as tropas russas. Éramos apenas
uns trezentos dos trinta mil que do gueto de Riga.
Era visível que ela estava esgotada. Mas seus olhos estavam mais serenos
e pareciam que tinham se aliviado do grande peso que carregara até então.
Todos os seus, marido, irmão, pais, pareciam que emergiam de profundidades
insuspeitas.
Ouviu-se a voz de uma das senhoras francesas.
- Mas, comme vocês... je veux dire... seus pais e vocês
se encontraram? E por que estão no Brasil?
Antes que ela respondesse, seu pai tomou a palavra:
- Mein Kind, deixe que eu responda.
E, olhando para a senhora francesa e, depois, para todos.
- A Cruz Vermelha contatou-me em Nova York em junho de 45 e, aí, eu soube
que Hertha e Anatolijs estavam vivos, convalescendo num hospital. Mas eles só
se juntaram a nós nos Estados Unidos em fevereiro de 46... durante o
inverno. Em poucos dias a minha filha teve que ser internada no hospital com
pneumonia. Ainda não recuperara totalmente a sua saúde. Quando
a fui visitar no hospital, ela só me dizia... Não aguento
mais o frio, papai.
Antes que todos compreendessem, ele terminou:
- Não foi muito difícil nós todos concordarmos em nos desfazermos
do que tínhamos e do pequeno negócio que eu iniciara. Escolher
para onde iríamos também foi fácil. Um primo da minha mulher...
sempre esta família - e sorriu para ela - já chegara no Brasil
alguns anos antes da guerra. Só precisamos esperar pelos nossos vistos...
viemos como turistas... e pela recuperação da minha filha. E aqui
estamos.
Virou-se para o jornalista.
- Mas sempre foi muito difícil para nós entendermos e aceitarmos
que tivéssemos sido abençoados por tão pouco, mas, principalmente,
sermos alguns dos poucos, muito poucos que se salvaram. A mão de deus,
mesmo nos tocando, a cada um de forma particular, não podia deixar de
se estender a outros. Eu, pessoalmente, deixei de questionar a existência
de deus e concluí que, caso exista, sua natureza... e seus propósitos...
excedem a nossa compreensão e a nossa humanidade. Vicejamos, ou não,
neste mundo por arte do acaso e das linhas que costuram as nossas vidas. Como
o senhor disse... principalmente a representada pelo impulso pela sobrevivência.
Mas hoje acho, também, pela paixão maior, a compaixão e
a capacidade de sentir o outro... o outro ser.
O jornalista murmurou - Alteridade.
- Isto! Impulso pela sobrevivência e sentimento de alteridade. Conforme
sejamos tocados ou não por estas linhas. Havendo ou não intervenção
divina na trama que se forma.
(Nova Friburgo - Dez 1948)