A Garganta da Serpente
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Não naquele dia

(Renato Rios Neto)

Estava ali há pelo menos cinco minutos. Padecer em um ponto de ônibus nunca é algo agradável. O calor, infernal, que fazia melar todos os centímetros de seu corpo, não ajudava também. Olhava para o asfalto e conseguia ver a fumaça saindo do solo. Mas nada ia estragar aquele dia, nada mesmo. Afinal de contas, naquele dia insuportavelmente quente ele estava fazendo um mês de namoro. Pode parecer pouca coisa, mas para quem sempre foi solitário um mês de felicidade e amor intenso valem mil vezes mais do que uma vida de marasmo - e era justamente isto que ele vivera até então.

O ônibus finalmente chegou e, para variar, estava lotado. Entrou e se misturou à multidão. Dezenas de pessoas comprimidas em um espaço pequeno e desconfortável. Corpos suados, rostos estressados, e odores misturados."Como queria ter um carro", era tudo o que ele conseguia pensar. Mas a vida nem sempre nos dá o que queremos e Hugo não se importava em não ter um carro - pelo menos não naquele momento, não naquele dia.

Alguns minutos se passaram e conseguiu sentar-se ao lado de uma negra robusta, de uns cinquenta anos. Ela tentava dormir com o rosto encostado na janela do ônibus, um travesseiro duro e móvel - mas aquilo não era obstáculo para alguém que com certeza devia trabalhar pelo menos 10 horas por dia e devia passar mais umas 3 horas deste mesmo dia, tão curto, dentro de um superlotado ônibus. Hugo pensava tudo isso, mas não conseguia ficar chateado - não naquele dia.

O trânsito estava péssimo: a impressão que se tinha é que o ônibus estava andando a cerca de 100 metros por hora. Como Hugo saiu mais cedo de casa, não estava preocupado com atrasos. Como presente para a namorada estava levando "O lobo da estepe", de Herman Hesse: não sabia se era o presente ideal, mas achou que seria mais interessante dar algum presente que tivesse mais a sua cara e não apenas um produto sem referência particular alguma. E aquele livro representava bem a sua personalidade. Um pensamento um tanto quanto hippie, mas naquele dia ele fazia muito sentido. Também não queria ganhar presente algum, nunca foi de querer muita coisa e toda a felicidade que ela lhe dera já valia muito mais do que qualquer presente.

A viagem seguia o seu percurso, lentamente. Hugo levantou-se um pouco antes de seu ponto: o caminho de sua cadeira até a porta era curto, mas nestes centímetros havia um mundo de pessoas. Não conseguia esconder a ansiedade de ver sua amada... um mês e ainda se sentia como um tolo. Perguntava-se até quando se sentiria assim. Será que a monotonia, a infidelidade e todas essas outras coisas seriam capazes de destruí-los, assim como fazem com a maioria dos casais? Acreditava que não, e a possibilidade de ir a fundo para descobrir a força dos dois fazia a vida ser muito mais mágica.

Quando estava espremido no corredor entre as cadeiras e a multidão, ouve uma voz gritar:

- É um assalto, porra!!! - gritava o jovem moreno, robusto e com uma surrada camisa do Atlético Mineiro. Todo mundo passando os celular, os relógio e a grana - disse, apontando seu velho 38 enferrujado para uma jovem sentada na sua frente.

Hugo, que já estava quase na porta, não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Ser assaltado, logo naquele dia, seria o fim da picada. Misturou-se à multidão e calmamente foi caminhando em direção a porta. Não podia ser notado, o seu ponto já era o próximo, não era possível que não conseguiria. Não naquele dia.

- Ei, você aí! Tá tentando sair fora, mano?! Fica parado aí, porra! - disse o ladrão, com os olhos inflamados por um ódio brutal e selvagem.

Hugo congelou no lugar em que estava. Tão perto e tão longe da porta. Ainda não conseguia acreditar na situação que estava vivendo. A lei de Murphy é implacável: nem no dia de aniversário de seu namoro ele estaria a salvo. O ônibus era uma bomba social que não o pouparia - nem naquele dia.

- Aê, playboy! - gritou o bandido - me passa esse embrulho aí!

- Pô, cara, é só um presente pra minha namorada. Um livro, nem tem valor não - disse Hugo, desesperado. Não podiam levar o seu presente, isso não fazia sentido nenhum. Isso não podia acontecer, não naquele dia.

- Foda-se! Mandei você passar a parada e você VAI passar a parada, ou tu quer que eu exploda os seus miolos por causa da porra de um livro? - disse o rapaz, já engatilhando a sua arma e apontando bem no meio da suada testa de Hugo.

- Pô, cara. Já falei que é um presente pra minha mina. Leva qualquer coisa, menos isso. Pode levar minha carteira, meu dinheiro, meus documentos, o que você quiser, mas deixa isso pra mim cara. Significa muito.

O ladrão se aproximou e tentou pegar à força o presente. Hugo bravamente segurou o embrulho, com uma determinação heróica, assim como um cão segura o seu osso. Nessa hora ele não conseguia pensar em muita coisa. Aquele embrulho representava a sua honra, o amor que sentia pela namorada. Mas, verdade seja dita, Hugo não acreditava que aquilo fosse ter um desfecho ruim. Seria apenas uma história a mais pra contar pra mulher da sua vida. Meu deus, como era bom contar histórias para ela e vê-la sorrir. Aquele sorriso, lindo e puro, fazia tudo ter algum sentido.

- Caralho, filho da puta, você pediu! - gritou o ladrão, que estava praticamente colado em Hugo. Os dois se engalfinhavam em uma luta física. À distância parecia uma daquelas lutas mal e porcamente ensaiadas, tão comuns em programas de luta livre dominicais. O jovem ladrão tentava a qualquer custo pegar o embrulho e Hugo se defendia como podia, revidando com tapas e pontapés.

E, em meio a gritos histéricos dos passageiros, ouviu-se um disparo. O barulho do tiro emudeceu o ônibus por alguns instantes. Um tiro certeiro, no peito de Hugo.

Recebeu a bala em seu corpo, uma dor tão extrema e aguda que era como se não sentisse mais nada. Cambaleou e viu o sangue escorrendo por sua camisa. Enquanto o seu corpo balançava dramaticamente, a sua cabeça só conseguia pensar que ia chegar atrasado no seu encontro. "Merda, não posso chegar atrasado". Isso não podia acontecer, não naquele dia.

Os gritos dos passageiros diminuíam na sua cabeça, no mesmo ritmo em que a dor aumentava. Tentou caminhar, apesar de estar cambaleando muito, até a porta do ônibus. Não conseguiu chegar à porta, sua tão desejada meta, caiu na metade do minúsculo caminho.

Caiu e enxergou o mundo, ou o ônibus, sobre um novo ponto de vista. Metade da sua visão via o piso de aço do ônibus, um terreno irregular, prateado e muito, mas muito quente. A outra metade de sua visão via um batalhão de tênis, sapatos e chinelos. Todos agitados e aglomerados, como que vindo em sua direção. Sentia mãos alheias em seu corpo, mas fazia questão de não soltar o livro de suas mãos. Sua namorada não ia ficar sem seu presente. Não naquele dia.

A sua parca visão diminuía drasticamente e mesmo o contato que sentia em seu corpo, de mãos alheias o segurando, parecia diminuir. Sentia que não devia fechar os olhos, e assim, se empenhou para mantê-los abertos. Mas era engraçado, mesmo com os olhos abertos, tudo parecia estar escurecendo. Como a noite em uma floresta fechada: você mantém os seus olhos abertos, mas não consegue enxergar nada. E assim aconteceu. Em questão de segundos já não conseguia enxergar mais nada.

-Meu deus, ele morreu! - gritava a negra robusta, segurando o pulso do rapaz. A mesma senhora que há poucos minutos atrás cochilava tranquilamente, ao lado do falecido Hugo.

Morreu ali, de olhos abertos, no piso de um ônibus lotado, segurando bravamente um embrulho dourado.

A poucos metros dali, Elisa, a namorada de Hugo, olhava impaciente para o relógio."Não acredito que ele vai atrasar. Logo hoje". Isso não podia acontecer.

Não naquele dia.

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