Julio era um jovem franzino. Sessenta quilos, mal e porcamente distribuídos
em um metro e setenta e tantos. Sua personalidade, por alguma razão bizarra,
parecia ser intimamente ligada ao seu tipo físico - como se a mente não
conseguisse ser independente do corpo. Era fraco, tímido e desengonçado.
Passava quase sempre despercebido, quase sempre. Às vezes era percebido
por valentões ou comediantes em geral. Como uma mosca que passa despercebida,
até ser esmagada por uma mão algoz.
Sua vida escolar não era muito melhor do que a imagem que temos do inferno.
Apesar de ser estudioso e obter boas notas, era sistematicamente massacrado
e humilhado por valentões - que, para ganhar pontos com as garotas, o
humilhavam até não poder mais. Todos os clichês vistos em
comédias americanas da década de 80 eram aplicados no garoto.
Tinha muitas vezes o seu lanche roubado, em outras vezes era jogado na lixeira,
em algumas outras abaixavam sua calça na frente das garotas. Enfim, as
possibilidades de humilhação pareciam infinitas.
Cada dia era um aprendizado novo sobre como ser rebaixado, sobre como perder
a sua autoestima, sobre como ser motivo de chacota e ter que se conformar com
isto. Julio certamente aprendeu bastante na escola.
Era vasta a gama de torturadores, mas o principal era Rodrigo Simões.
Um rapaz forte, bonito, rico, amado pelas meninas e odiado pelos fracos, como
Julio. Não parecia haver regras para alguém como Rodrigo Simões,
o mundo era dele, só dele.
Certa vez, em uma semana de provas, Rodrigo sentou atrás de Julio. Era
prova de química e Julio havia estudado bastante. "Você vai
me salvar hoje, senão te mato" sussurrou Rodrigo nos ouvidos do
rapaz. Julio fez a prova, tenso, odiava colar, não tinha talento para
isso, e o pior, teria que ajudar justamente aquele cara que só o humilhava.
Mas o que se poderia fazer? Ele era tão grande... Simões pegou
a prova de Julio e a copiou, quando devolvia a prova ao rapaz foram pegos em
flagrante pelo professor.
- Que decepção, Julio! Logo você, um bom aluno, colando...
Vou ter que zerar sua prova.
- Mas...
-Sem mas! - disse o professor, recolhendo a prova do rapaz. Julio baixou sua
cabeça, e começou a guardar o seu material, o primeiro zero de
sua vida não era fruto de sua incompetência, e sim de sua submissão.
O que diria aos pais? Tentava segurar o choro, enquanto ouvia Rodrigo rir baixinho
no seu ouvido. Jamais ia se esquecer do som daquela risada.
Nesta e em todas às vezes na qual era humilhado, se sentia tomado por
uma queimação interna, ouvia o seu fígado e seu estômago
clamar desesperadamente por vingança, sua biles escorrendo em uma tempestade
movida por puro ódio. Mas não conseguia fazer nada. Tinha medo
de ser massacrado e assim ser ainda mais humilhado. Resignava-se, assim.
E à noite, dentro de seu quarto, era massacrado novamente. Não
pelas mãos de Rodrigo, mas por este ódio que lhe queimava por
dentro. Não conseguia dormir, não conseguia pensar, só
conseguia sentir ódio, raiva, rancor, e todos outros vocábulos
que possam ser usados para nomear esse sentimento tão puro e intenso.
Tremia deitado na cama, fechava os olhos e via Rodrigo Simões o humilhando,
conseguia ouvir a risada de todos os seus colegas. Pulava da cama, desesperado,
e socava inutilmente a porta do armário. Socava até sentir sua
mão reclamar da dor - aí parava e percebia o ridículo da
situação. Então chorava desesperadamente. Este ritual se
repetia na maioria das noites.
Os anos se passaram e Julio continuava a alimentar este pequeno câncer,
já que as humilhações não cessavam. Completou o
segundo grau e pensou que finalmente ia conhecer a liberdade. Havia sobrevivido
ao inferno. Aquelas humilhações seriam apenas uma má recordação
desta fase cruel e horrível que é adolescência.
2
Ingressou na faculdade de Direito e sentia que um novo mundo estava se abrindo
para ele. As pessoas o olhavam um pouco mais pelas ideias e um pouco
menos pelo seu físico frágil. Está certo que o encantamento
romântico com a vida acadêmica não durou muito mais do que
dois meses, mas, de qualquer forma, era muito melhor do que aquilo tudo que
conheceu na sua adolescência.
Foi nessa época que Julio resolveu se matricular em uma academia de musculação.
Sempre odiou esportes, mas não conseguia esconder de si que sonhava ter
um físico mais imponente. Sabia a dor de ser um fraco na selva. Os predadores
não possuem compaixão. Se você é mais fraco, será
massacrado impiedosamente. A lei da natureza também se aplica aos homens:
nem todos os séculos de cultura e humanismo conseguiram quebrar a lógica
dessa lei.
Começou a malhar e nunca se sentiu tão bem na vida. À noite,
antes de dormir, olhava extasiado no espelho e via o tímido progresso
em seu corpo. Um progresso imperceptível aos olhos dos outros, mas claramente
visível aos seus. Sentia o seu corpo crescer e gritar de alegria e dor.
Cada milímetro de massa muscular conquistado era uma vitória que
lhe dava uma autoestima até então desconhecida. Quem sabe ele
não era uma mosca? Quem sabe ele também não teria direito
a ser respeitado pelos rapazes e desejado pelas garotas?
Com o tempo de treino foi realmente adquirindo alguma massa magra. Ainda era
franzino, mas muito mais forte do que na sua época escolar. Sua cabeça
ainda guardava ódio por Rodrigo Simões, pensava "aí
se eu visse ele hoje em dia. Ele ia sentir na pele todo a raiva que tenho por
ele. Todo o ódio que tenho pelas humilhações que tive de
enfrentar". Mas sabia que era extremamente confortável pensar nisso,
uma vez que as chances de reencontrar com aquele ser desprezível eram
praticamente mínimas. Mas não importa: pelo menos em seus sonhos
conseguiria se vingar.
A faculdade seguia normalmente. Julio continuava sendo um ótimo aluno,
mas já não sentia aquele entusiasmo do início do curso.
No primeiro dia de aula do terceiro ano, decidiu dar uma volta pela faculdade,
para ver os calouros - novos rostos, novas possibilidades, enfim.
Andava tranquilamente pelos corredores da faculdade, até que sentiu
um forte tapa em sua nuca. Olhou para trás, assustado, e tomou um susto
ainda maior: era ele, Rodrigo Simões, o terror de sua adolescência,
em carne e osso, na sua frente.
- Caralho, quem eu encontro aqui! Julinho comédia! Saudades de te zoar,
rapaz! - disse Rodrigo, rindo alto como uma hiena, chamando a atenção
de todos ao seu redor.
Ver todos aqueles olhos fitando-o e ouvir aquela risada grotesca foi como um
mergulho no passado. Naquele momento toda sua juventude passou, como um lento
flash, em sua cabeça. Aquela queimação que sentia no colégio
voltou mais intensa do que antes. Sentia seu estômago urrar, um incêndio
interno. Suas mãos tremiam, seus olhos ardiam e marejavam, seu coração
batia forte e alto com o bumbo de uma banda marcial, não conseguia mais
pensar direito em nada. Só sabia que aquela risada era como gasolina
para o fogo que o possuía. Em fração de segundos, tomou
a atitude mais esperada de toda a sua vida, deu um soco, perfeitamente mirado,
no nariz de Rodrigo. Sentiu o nariz do idiota afundar em sua mão fechada.
A reação foi quase que imediata:
- Caralho, moleque! Eu estou sagrando. Porque você fez isso? Seu louco!
Julio ria sem parar, tomado por um ataque histérico. Ria e gritava extasiado.
O que se seguiu à sua risada foi um verdadeiro massacre: Rodrigo, que
era muito maior e mais forte do que Julio, não teve misericórdia
- o socou como se não houvesse um amanhã. Julio caiu, e ele continuou
batendo e batendo e batendo e batendo... Em todos os lugares possíveis:
no nariz, nos olhos, no queixo, no estômago. Seguia batendo. Até
que foi afastado do rapaz, pela pequena multidão que havia se formado
em volta dos dois.
Julio levantou-se lentamente. Sentia sua cabeça explodindo e uma dor
física absurda por todo o seu corpo. Rejeitou a ajuda das pessoas que
estavam ao seu redor: não queria a piedade de ninguém.
Caminhou - firme - para o banheiro. Chegou à pia e cuspiu uma massa gosmenta,
vermelha. O gosto era amargo e conseguia identificar pelo menos um dente, em
meio à tal massa avermelhada. Olhou para o espelho e viu que um olho
seu estava completamente fechado, seu nariz ainda jorrava sangue.Olhou-se para
o espelho mais uma vez e sorriu.
Pela primeira vez, em vinte e um anos, se sentia vivo.