A Garganta da Serpente
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Um "Beco" Sem Saída

(Raymundo Silveira)

Sou um homem endividado, acuado e desesperado. Ontem à noite não dormi um segundo. Faz muito tempo que não sei como é uma noite de sono tranquilo. Houve algumas em que consegui cochilar, não dormir. Porém, entre estes breves intervalos, despertava assustado, ansioso, angustiado. Na madrugada de ontem para hoje nem isto aconteceu - fiquei o tempo todo acordado. Mas os meus problemas não se resumem a isto; também não posso sair de casa e mesmo dentro de casa é difícil ficar. Quando o telefone ainda funcionava, cada chamada era um tormento; ainda bem que agora não toca mais, o que, de certa forma é um alívio, embora este simples pormenor tenha me isolado definitivamente do resto do mundo. Não entro mais no elevador nem desço as escadas do meu prédio; não abro a caixa do correio; não abro sequer a porta do apartamento a fim de não encontrar o síndico, embora ele me chame dezenas de vezes ao dia pelo interfone. Há ordem judicial de despejo contra mim.

Minhas dívidas não são como as de outro homem qualquer, pois, de algum modo, aquele costuma sobreviver praticando malabarismos financeiros. Paga um empréstimo levantando outro, obtém parcelamentos, vende algum tipo de bem. Eu, não! Ninguém me empresta um centavo, não há mais como parcelar pagamentos, nem possuo nada para vender. Já fui uma pessoa de classe média alta. Tinha uma boa renda advinda de imóveis alugados e de aplicações financeiras. Portanto, sempre vivi de rendimentos do capital que herdei do meu pai. Nunca tive nem exerci uma profissão. Jamais trabalhei para viver, pois nunca me faltou dinheiro. Animais vivem sem dinheiro, mas não sem ar. Já vi homens viverem com muito pouco ar, mas nenhum sem algum dinheiro.

Perdi tudo gastando sempre mais do que arrecadava. Como tinha crédito, fui levantando sucessivos empréstimos confiando sempre no meu vasto capital. Acreditava que nunca iria acabar. Devo tudo a todos: aos bancos, aos cartões de crédito, aos supermercados, aos açougues, ao proprietário deste apartamento que aluguei, ao imposto de renda, enfim, é difícil me lembrar de alguém a quem não deva. Há dias em que não tenho nada para me alimentar; como me sinto constrangido em pedir a alguém - a algum vizinho, por exemplo - fico sem comer. Quando não suporto mais, vou a um supermercado e surrupio algum alimento. Já fui flagrado duas vezes roubando comida e só a muito custo consegui convencer o gerente de que saíra sem pagar por mero esquecimento, mas como fora humilhado não levaria mais a mercadoria. Iria comprar em outro lugar.

Até agora nada do que disse justifica um por cento do desespero a que me referi no princípio deste relato. Quando possuía alguns haveres tinha muitos amigos. Como tinha também todo o tempo do mundo, me oferecia a muitos deles para ir pagar as suas contas nos bancos. Nunca me interessei pelas coisas do intelecto. Para mim, a literatura, a poesia e a arte não passam de invenções de homens desocupados, iguais a mim, a fim de escaparem do tédio de viver. Preferi fugir do meu tédio ao meu modo. Permanecer nas filas de espera dos bancos, encontrar com outros amigos e ficar conversando com eles foi a maneira mais cômoda e fácil que encontrei.

A princípio, cumpria religiosamente aquela missão que eu mesmo me atribuíra. Desde quando começaram as minhas dificuldades financeiras, passei a deixar de efetuar os pagamentos e a gastar o dinheiro. Obviamente, ninguém mais queria aceitar os meus "favores". Ninguém, não! Havia um amigo de infância que se tornou político influente e morava na capital da República. Era um dos raros políticos absolutamente honestos que vim a conhecer. Vivia exclusivamente dos seus proventos de parlamentar, mas tinha um vultoso seguro, o qual seria o único patrimônio dos herdeiros depois da sua morte.

Era uma das poucas pessoas que não conheciam o meu caos financeiro nem os meus calotes. Confiava em mim mais do que nele próprio e a prova disto é que me encarregou de pagar as mensalidades do prêmio do seu seguro de vida. Para isto remetia, a cada mês, o valor equivalente. Era, para mim, uma quantia vultosa e, diante da minha bancarrota financeira, não houve como evitar a tentação de ficar com aquele dinheiro todos os meses esperando cobrir mais tarde, quando conseguisse algum trabalho. Como se tratava de um homem relativamente jovem e sadio, nunca me passou pela cabeça que lhe viesse a acontecer o que de fato aconteceu ontem. Isso mesmo - teve um infarto fulminante e morreu. Já decidi o que vou fazer também.

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