Estação de metrô. Esperava outro trem, devido a meio minuto
de toalete. Uma mulher sorria. Não era uma qualquer. Tinha a pele nívea,
de uma nórdica, mas suavemente dourada pelo sol tropical. Olhos verdes,
encimados por supercílios traçados a pincel. Maçãs
salientes e róseas. Lábios de Vênus. E um narizinho que
não saberia definir, mas associo aos das deusas gregas, celtas, romanas,
germânicas e escandinavas. Da fronte ampla e lisa, emergia uma cabeleira
aloirada e sedosa, parcialmente presa na nuca. Uma Valquíria com vestígios
de Iemanjá. Me olhava e sorria. Enquanto eu, perplexo, tremia. Ignorava
o motivo, mas era fácil supor: Nunca uma mulher me sorriu daquele jeito.
Nem em sonhos. Não sou exigente. Entre uma mulata, negra ou branca, prefiro
todas. Desde que, nas veias, circulem, pelo menos, quatro pingos de estrógeno.
Nenhuma, porém, jamais me fitara com tanta meiguice e carinho quanto
aquela flor de Poesia.
Subimos no vagão atopetado, em extremidades opostas. Continuou sorrindo,
soprando beijos e acenando até breves. Perdi-a de vista e a vista. Não
vi descer. A angústia de não vê-la impedia de enxergar.
Esbocei reações. Tinha de ser racional. Dominar-me. Afogar emoções
e afagar a razão. Em vão. Pedia para um viciado jogar fora um
quilo de cocaína pura, depois de inalar a primeira dose. Nem percebi
a minha estação. Tentei diluir o abalo em idas e vindas dentro
do metrô, até a última viagem. Em casa, deitei a minha frustração
na cama. Amanheceu e fui trabalhar.
A manhã e a tarde passaram o dia trabalhando para mim, pois eu não
fazia outra coisa a não ser esperá-las passar. O coração
batia depressa. O oxigênio, depois de se difundir em cada milímetro
do meu corpo, com a suavidade da melodia de uma sonata, retornava aos pulmões
e era exalado muito mais puro do que havia penetrado, pois fora purificado no
coração à custa dos fluidos do amor. Nada era feio. Tudo
maravilhoso: pessoas, plantas, animais, objetos... Ruídos do tráfego
soavam como música. Nenhuma notícia de jornal era trágica;
sequer preocupante. Todas as manchetes bradavam vivas à vida.
Cheguei à estação meia hora antes e saí depois da
meia-noite. Nem sinal da Valquíria. O tempo inteiro tentando inventar.
Pensei em tudo. Retrato falado. Só não teria para quem exibir.
Salvo se abordasse cada passageiro. Não cheguei a tanto, mas não
fez muita diferença. O tempo inteiro viajando no metrô. Descendo
em cada estação. Vasculhando cada vagão. Ao chegar em casa,
era flácida a madrugada. Os espelhos estampavam desalento. E um enorme
cansaço de mim mesmo, me impedia de dormir. Duas semanas consecutivas
repeti esta loucura. Desesperancei-me, afinal.
Mais do que a esperança, perdi também a autoconfiança.
Passei a duvidar de que fosse normal. Deixar-me enlouquecer por causa de um
olhar. O qual talvez tivesse tido outro destino. Jamais me iludi quanto à
minha aparência. Não sou tão feio. Tampouco atraente. Como
fui cego! Por que uma criatura tão bela poderia se interessar por alguém
como eu, num mundo repleto de homens lindos? Passei a odiar espelhos. Não
via neles somente o feiúme; enxergava também a audácia...
Carência de autocrítica. Coisas completamente ignoradas. Doía
demais me conhecer...
Curioso é o tempo. Simultaneamente, inimigo e aliado. Enquanto nos sorve
a vida pelas beiradas, repara os estragos que ela causou no nosso âmago.
Nada, porém, garante a ausência de recidivas. Pouco depois de um
ano, só me lembrava da Valquíria para me divertir. Rir de mim
mesmo, sem o menor traço de amargura. Mais uma vez me atrasei. A porta
do trem se fechou na minha cara. Então, escutei um "oi" e tive
uma alucinação. Da janela traseira do último carro, um
ano se atirou metrô afora e penetrou na minha alma como um bólido.
A Valquíria sorria sedução e acenava carícias.
Não sei o que fiz naquele instante. Lembro vagamente de um impulso, contido
pela lógica: correr atrás do trem. Dei acordo de mim, quinze minutos
mais tarde. Sentado, com um celular na mão. Meia hora depois, me comunicava
com a central de transportes. Só eu falava. Ninguém respondia.
Todas as perguntas eram idiotas. Apenas uma parecia razoável: "perdi
algo muito valioso no último vagão do trem...". E obtive
o horário da próxima parada. O que eu pretendia? Também
não sei! Assumo a sandice. Esperava, talvez, respirar o ar que ela respirou.
Sentir o mesmo clima. Quem sabe, aspirar o aroma da sua beleza, porventura impregnado
na poltrona...
A paixão é um espírito obsedante. Não nos larga
nem sob o efeito de pílulas de dormir. Naquela noite me vali de desvaliuns.
Ainda assim sonhei. Éramos amantes. Nos abraçávamos. Ofereceu
aos meus, todos os seus lábios. Grandes, médios e pequenos. Mornos.
Macios. Suculentos. Apenas se tocaram. Um hálito de cio entrava fundo
pelas entranhas. Um frêmito. Os corpos se colaram bruscamente. Ímãs
de carne dispostos face a face. Todos os nossos tecidos eréteis vibravam.
E os meus penetraram com tanta força que a fizeram estremecer. Antes
um estupro do que um ato de amor. Estupro desejado. Consentido. Implorado.
Tudo tem limites. A felicidade e a desventura. A dúvida e a fé.
A esperança e a desilusão. Eu não sabia que nome tinha
aquilo. Fosse qual fosse, possuía também confins. Uma fronteira
que não podia ser ultrapassada impunemente. Não estava disposto,
nem suportaria sofrer tanto outra vez por idêntico motivo. Tinha de encontrar
alguém para dividir o encargo daquela carga. Repartir aquele pesado pesadelo.
Pensei em amigos, colegas, vizinhos... Embora já soubesse quais seriam
os conselhos. Transcendes à insensatez. Estás alucinado. Comportas-te
como um adolescente. Transferência afetiva típica de um neurótico.
Jurados unânimes. Juízes de pena máxima, em vez de conselheiros.
Revelaria meu segredo a troco de nada. Ia me sentir ainda mais ridículo
em troca de palavras ocas, contidas em qualquer panfleto barato de autoajuda.
Consultei uma cartomante.
É hora de prestar um pouco mais de atenção aos seus sentimentos
e valorizar a intuição. Aproveite para sair com os amigos, espairecer,
curtir momentos junto de quem você ama. Permitindo-se esta leveza, certamente
será uma pessoa mais feliz. Cuidar da aparência e valorizar-se
são atitudes que contribuirão para fortalecer a autoestima e
aumentar a coragem e disposição para a conquista dos objetivos...
Desculpe-me se sou grosseiro. Não estou interessado em conselhos. Não
necessito de ajuda neste sentido. Há uma mulher. Linda, como jamais vi
igual. Tenta me seduzir. Depois some misteriosamente como se fosse por acaso.
Não a conheço. Preciso saber o que quer. Se me ama. Trata-se de
alguém disfarçada para me enganar? Quer apenas se divertir? Como
encontrá-la? Se possível, endereço ou telefone. Não
peço para adivinhar o futuro, nem rever o passado. Desisto até
do presente. Peço apenas um nome... Pago qualquer preço, mas não
saio daqui sem um nome, porra...
Estranha essa atração entre homem e mulher! Os primeiros humanos
surgiram há mais de cinquenta mil anos. A História documentada
teria nascido com os Sumérios. Há dez mil. Há quatro mil,
as primeiras religiões monoteístas. Alguns séculos antes
de Cristo, as especulações existenciais. A Renascença ainda
estarrece. O potencial criativo dos homens parece infinito. O século
XX nasceu e morreu tentando descobrir a forma e o conteúdo do inconsciente
das pessoas. Ninguém foi capaz de levantar o véu desse mistério.
Esse impulso esquisito impelindo macho e fêmea um para o outro. Às
vezes, a ponto de causar dependência tanto quanto uma droga pesada. Paradoxo.
O vazio do mundo esmagava-me o sossego. Enquanto toneladas de paixão
faziam flutuar o meu desejo muito além das nuvens...
Nunca vou esquecer aquela noite. Estava sentado à mesa de um bar, próximo
da estação do metrô, de costas para a entrada. Um sobressalto.
Talvez o maior da minha vida. Vindas de trás de mim, duas mãos
tépidas, tenras, olorosas cobriram-me os olhos. Percebi-as femininas.
"Adivinha quem é". Adivinhei. Retirei suas mãos ternamente
e tentei beijá-las com sofreguidão... Não permitiu. Voltei-me.
Era a Valquíria. Em corpo, sangue, alma e divindade. Escutei palavras
tão vulgares que me assusta ter coragem para escrevê-las aqui:
"Meu senhor, me perdoe pelo amor de Deus. Pensei que fosse o Manu..."
(19/01/2006)