A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

O Bruxo & A Deusa

(Raymundo Silveira)

Uma fulguração de perplexidade. Seria essa a reação se soubessem de quem se trata. A menos que intua, ninguém saberá. Não adianta, leitor. Desútil ir ler o final. Se houver interesse, busca uma interpretação interlinear. Sonhava com ela desde os doze para treze anos. No entanto, só deveriam ser apresentados na maturidade. Aparecia quase todas as noites, envolta em brancuras diáfanas delineando a nudez disfarçada. O semblante, entretanto, era bem definido. Sorria com certa ternura e olhar angelical, enquanto recitava esta trova: "A gentil mimosa flora / Abriu os olhos ideais. / E seus pés de cor d'aurora / Andam nus sobre os trigais". A primeira pessoa para quem contou tais devaneios reagiu com um muxoxo e acrescentou: sonho é a coisa mais desimportante deste mundo, depois de vereadores, novelas e brigas de galo. Nesta ordem. O interlocutor não era exatamente companheiro, mas comparsa. Quinze anos mais jovem. Havia quem visse bi-chice, contudo seria leviano afirmar. Conquanto filho de banqueiro, vivia sem prendas nem rendas, mas bancava excelente parceria no curso de uma farra. Comportava-se, porém, como um pulha, no convívio social civilizado. O mais velho, não tendo opinião formada sobre sonhos, propendia para o contrário do parecer do jovem amigo. Até porque, só teria sossego quando conhecesse o objeto da sua paixão. Uma longa viagem seria um videoteipe da vida? Vá que seja. Todavia, as emoções agradáveis, exigem um coração genuflexo pelos instantes que se esvaem.

Partiu durante um verão lá, inverno cá. Sendo solteiro e perdulário, convidou o aparceirado para ir a tiracolo, mesmo tendo de raspar os últimos bagarotes da meia dúzia de cheques especiais que capturava, deus sabe como. O outro aceitou com ambas as mãos. O pai, avarento e envergonhado - mais avarento do que envergonhado -, não permitiu sequer que lhe aprontassem as malas. Seu bem-feitor ia em quarenta e dois anos. Tinha audácia, contas para quitar e espessas costeletas começando a grisalhar, que lhe emprestavam um ar de burguês contemporâneo. Era boêmio e poeta. Descobriu-se poeta ao saber da virgindade da sua deusa. Os vates possuem uma inclinação especial para virgens. Mais tarde saberia que tinha sido um ente vaporoso, e só se tornou tangível graças à magia da criatividade humana. O voo internacional partiu do sul. Como saíra do norte, viu-se compelido a retornar para onde estava antes, submetendo-se a uma irritante constatação deste vaivém. Pois um diagrama provocador ficava bem à frente da poltrona mostrando cada milha percorrida em duplicata. Então, uma viagem que deveria durar dezesseis horas, durou vinte. Permaneceu sentado, mas tão comprimido como numa cela das prisões do seu país. Ao desembarcar na capital, reembarcaram imediatamente para Brauron. Na chegada, o velho sofreu um infarto. Não era tão velho, mas vá.

No oitavo dia da internação recebeu alta. E ordens médicas de retornar imediatamente a sua casa e permanecer em repouso. Tu vais ficar. Como não fui digno de me encontrar com a minha deusa, farás isso por mim. Vou me sentir parcialmente realizado. Imponho apenas duas condições: me contarás tudo e me levarás uma prova de que estiveste com ela. Aqui tens vinte e cinco mil dólares. Fingiu recusar: É boa! Então, pretendes fazer de mim, um esbirro alugado? O companheiro instou tanto que decidiu obedecer. Mais uma vez, o jovem acatou a tarefa com as duas mãos, mas simulou estender somente uma. Parecia prestar imenso favor. Na verdade, quase delirou de felicidade. Antes de visitar a deusa, procurou se inteirar sobre ela, pois ignorava até o nome. Estudou pouco. Para conhecê-la em todo o esplendor, um guia de viagem seria minúsculo. E ele mal tivera paciência para folhear duas páginas. Divindade da caça e da serena luz, é a mais pura e casta de todas as deusas, conforme deduziu. Foi uma fonte inesgotável de inspiração para aedos e artistas. Seu pai presenteou-a com arco e flechas de prata, além de uma lira do mesmo metal. Ganhou também uma corte de Ninfas, e se fez rainha dos bosques. E só! O estudo não passou daí. Havia mais interesse em alguém que se descobre diante de uma procissão passando e passa a falar de outra coisa quando já passou, do que ele na passagem do diário que tratava da tal deusa. Com tão exíguo cabedal de informações, entrou no templo, demorou-se metade de uma hora, importou-se um quarto e se deu missão cumprida. Depois abalou para plagas mais compatíveis com a sua própria deusa: Pân-dega.

Ao cabo de quarenta e cinco dias, amanheceu no aeroporto de Paris para esperar o voo de volta à pátria. Restava-lhe pouco mais de dois mil euros, uma mala cheia de roupas sujas e uma escaldadura no juízo. Pior, sem ter nada pra contar ao amigo sobre a deusa. E péssimo: sem a tal prova de ter estado com ela. Um medo calado e insidioso foi crescendo feito solitária em barriga de nordestino. Lembrou-se vagamente de um romance que tinha sido obrigado a ler na quarta série do segundo grau, e chegou a ir a uma floricultura tencionando encomendar uma coroa de louros. Desistiu de pronto, pois nunca teve o amigo na conta de imbecil. As ideias mais disponíveis eram as que menos faziam sentido. Bebeu duas doses duplas de uísque e viu surgir diante de si uma diaba de olhos verdes, interpretada por ele como sendo a Esperança. Mas era a Ilusão. Qual atitude te pareceria mais lógica, leitor astuto? Ninguém adivinhará pela simples razão de não ser imaginável. Desesperado, foi ao balcão da companhia aérea e adiou o bilhete para a noite do dia seguinte. Gastou o resto do dinheiro num voo muito mais curto, de ida e volta. De madrugada já se encontrava novamente no Charles de Gaulle. Onde pernoitou, perambulou, esfomeou e assedentou até a hora da decolagem. Estremunhado, afadigado e estremecido de medo e desespero, desembarcou na sua terra às oito da manhã. Chorava baixinho. Só não gritava porque estava convencido de que se gritar adiantasse, leitões não morreriam. A aguardá-lo, o amigo com o sorriso da meiguice (ou da bichice) estampado na face. E um papel na mão. "Você não vai acreditar. Veja com seus próprios olhos quem me telegrafou ontem!". Se o espanto do outro não o tivesse tirado da realidade... Melhor: se tivesse tido uma mísera aula de latim, diria calado: "De gustibus et coloribus non est disputandum".

(08/05/2006)
menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br