"O tempo não é linear, mas curvilíneo".
(F. Nietzsche)
Estou atrasado. E há pessoas impacientes. Uma amolação,
esperar alguém se retirar dos seus domínios. Sou uma exceção.
Um trambolho. Um quem é? seguido de não sei! Pois o meu atraso
é uma tragédia. Hóspedes incomodam. Mas a expectativa da
breve estadia resigna os anfitriões, a ponto de abrirem mão do
próprio conforto. Já tinha de ter viajado. Como os da casa contavam
com isso há muito tempo, cederam tudo: a melhor comida, a melhor bebida,
as melhores acomodações. Não tenho culpa: tarda o avião
da minha reserva. E tardará ainda mais. A sucessão de entardeceres,
anoiteceres, e amanheceres, causa-me a sensação de me encontrar
num carrossel atemporal. O tempo passa, sim, mas retorna sempre ao ponto de
partida. Assim, nunca canso de esperar; só de des-esperar. Por que não
fui para um hotel? simples: não teria como pagar. Não! Meus conseguimentos
não foram dissipados, mas investidos em energia. Energia vital. Proto-agonizo
uma invasão desintencional. Portanto, sem o ônus da lei. Delinquente
inimputável. Para não causar mais desgosto e evitar constrangimentos,
só saio dos meus aposentos em raras ocasiões. Essas circunstâncias
irritam os hospedeiros, pois não podem sequer se queixar. Não
escuto reclamações diretas, contudo, percebo o mal-estar. Como
hóspede, não deveria pretender participar dos assuntos privativos
da família. Mas não seria tão marginalizado em situações
normais. Semblantes de agressividade, olhares de rancor, rumores de vaitimbora...
são rotinas do dia a dia. Tentei contemporizar. Ansiava por ouvir as
sinfonias da convivência. Desútil. Mal escutava os prelúdios
da indiferença. Passava por es(cor)pião sem desconfiar disso.
Coagido a me enrodilhar um pouco mais dentro da concha. Incomunicação
quase absoluta. Passei a tomar sozinho as refeições. Não
na calada da noite, mas nas noites caladas. Escutando, eu e a minha estraneidade,
o ruído do silêncio. Estou tão angustiado que chego a sentir
saudades do que jamais aconteceu. Tenho de me adaptar. Para tanto, tento escrever.
A arte é a saída para as contradições da condição
humana. E a literatura é a simbiose da arte com a imaginação.
Descrever a vida, por mais terrível que ela seja, é retirar-lhe
boa parte do terror, preservando e amplificando a sua beleza. Por mais vestigial
que esta se apresente. O sol das ideias aquece, com o calor das palavras,
o frio da desgraça emocional. Logo, escrever a minha história
é a segunda e última alternativa. Já cogitei da primeira:
antecipar o voo, transferindo o bilhete para outra companhia. Só
existe uma. Há bastantes vagas. Mas se trata de uma aventura; uma empreitada
de altíssimo risco. Confesso a covardia. Sinto muito medo. Não
de um desastre aéreo, este seria instantâneo. Meu pavor é
o de adoecer dentro do avião. Não há garantia de socorro.
Tampouco, não é improvável ser abandonado pelo caminho.
Acontece sempre, quando qualquer passageiro tem um mal subitâneo a bordo
de uma aeronave desta companhia. Não é um temor infundado: já
aconteceu comigo. Rezei infernos e blasfemei paraísos. Sobrevivi por
acaso. Ainda tomo sustos. Que já não assustam tanto. Susto-os
me valendo de desvaliuns. Tenho de admitir temer a volta do mal súbito,
tendo em vista a corda bamba estendida entre a minha água furtada e a
do edifício em frente, na qual me equilibro. Embaixo inexiste rede de
proteção. Também, não temo a fatalidade, e sim sequelas
de acidente. Antes, o quarto era espaçoso e confortável. Aos poucos,
foi ficando pequeno. Hoje, contém muitas catrevages. Todo refugo da casa
está sendo largado aqui. Às vezes, entra alguém para fazer
limpeza. Então, me deito. Associo o deitar ao sono. Dormir é a
quarta maravilha do mundo da vida. Como velar é a quarta miséria
da vida do mundo. Dormindo, o tempo pára. Parando, nos tornamos coisas.
Coisas não sentem, pois só subsistem na perpetuidade do momento.
Uma noite de insônia nos torna diferentes e indiferentes, pois remanesce
um desconforto básico, curável apenas com outra noite bem dormida.
Estando deitado, não durmo necessariamente, mas só em associar
o sono a essa posição, me sinto aliviado do incômodo de
estranhos no meu cômodo. Ontem pela manhã amanhava manhas na escrita
deste texto e fui surpreendido. Não houve tempo de me deitar. Só
que dessa vez não se tratava de limpeza. Quatro homens traziam um armário,
depositaram entre mim e a porta de entrada / saída, e saíram.
Um terço do espaço - já exíguo - foi ocupado. Sinto-me
quase emparedado. Poderia sair, mas qual seria a serventia? Caminhar pelas ruas
da manhã e bordejar as da tarde, só trariam tristura e abandono
quando chegasse a hora de rastejar de volta pelos becos da noite. Por isso,
em vez de sair, apelo outra vez para o dizimento da minha desventurosa aventura.
Escrevo cada vez mais demais. Existe um outro inimigo. Menos violento, porém
mais insidioso. Mais sorrateiro. Só aparece nas desconsolações.
Desconveniente acompanhante desde a juventude, suas consequências
são pouco nefastas para o corpo, entretanto aniquilam a alma. Trata-se
de um fantasma. Até hoje logrei fustigá-lo à custa de muita
determinação. Conheci várias vítimas do seu assédio.
Dá dó, assistir aos desmoronamentos. Há algumas horas os
quatro homens levaram o móvel de volta. Como veem, essa é
uma história curiosa. O mais curioso de tudo é que sou o personagem
principal de um drama realista, levando uma vida real surrealista. Pois estou
na minha própria casa imprópria. Sou eu quem a mantém.
Sozinho. Não obstante os meus vultosos investimentos em energia vital...
Não entendo o que se passa. Cuidava ser o armário, mais uma catrevage
posta ali com dois intuitos: me atormentar e se verem livre dela... A primeira
hipótese não está afastada... Acabam de deslevar a catrevage...
(18/04/2006)