A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Desejos

(Raymundo Silveira)

Sinto uma vontade danada de ganhar. Nunca consigo. Mas hoje amanheci disposto a tudo pra me satisfazer. Jamais ganhei nada, só perdi. Ganhar o quê? Ora, aquilo que todo mundo ganha e eu não: tudo! Tenho um desejo louco de ganhar tudo. Boceta, comida, roupa, dinheiro, emprego, automóvel, "casa engomada", fama, prestígio, televisão, geladeira, caminhão, empregados, casa de praia, uísque estrangeiro, boceta, cheque especial, sapatos, fazenda, Semana Santa, ouro, ações, perfume francês, viagens pelo país, viagens pelo exterior, videocassete, dvd, cinema em casa, aparelho de som, máquina de lavar roupa, máquina de lavar pratos, comer em restaurantes, iate, assistência médica, tv a cabo, Internet, poupança, fama, Natal, nome no jornal, boceta, nome nas revistas, forno de micro-ondas, nome na televisão, conta em banco, cartão de crédito, dieta pra engordar, dieta pra emagrecer, sauna, telefone fixo, telefone celular, reveillon, gado, computador, sauna, piscina, casa na montanha, aniversário, carnaval, prédios pra alugar, dólares, comprar em chopinguecenter, mulheres, fama, poder, joias, prestígio, loteria e boceta.

Hoje resolvi matar todos os meus desejos. Quando sair daqui deste barraco vou entrar numa "casa engomada", que já sei qual é, e começar pegando a madame rica e gostosa que sempre quis comer. Se ela gozar, ótimo; se não, fazer o quê? Como ela assim mesmo - à força. Depois vou pegar os dois revólveres do marido - que eu sei onde estão, pois já trabalhei lá de jardineiro - e sair por aí arrastando o que quero possuir. Por que todo mundo tem direito de ter tudo e eu nada? Talvez se morasse num lugar pequeno onde não existisse sempre alguma coisa ou alguém mandando a gente comprar, eu nem me lembrasse disto. Quando eu morava no sertão só sentia vontade de comida e de boceta. Aqui não! Além de todo mundo me mandar comprar tudo (sem ter dinheiro), aqueles que tiveram a sorte (ou a esperteza) de ganhar aquelas mesmas coisas que mandam a gente comprar, gozam na nossa cara passeando nos seus automóveis importados. E quando passam perto da gente ainda levantam os vidros pra dizer que é por causa do ar refrigerado. Moro num barraco que não tem luz nem água encanada. Perto, tem um chopinguecenter. Um dia fui lá só pra ver como era e não me deixaram entrar.

Noutro dia afanei uma roupa e uns sapatos, fui de novo e, desta vez, deixaram. Nunca na minha vida vi juntas tantas coisas que eu quero possuir e não posso. De comida boa a jogos que nem sei jogar. Tinha também mulheres gostosas e automóveis de luxo. Tremi de desejo. Desde aquele dia, cada vez que vejo a televisão nas lojas, ou aqueles cartazes de papelão do tamanho do meu barraco mandando a gente comprar, e eu vendo outras pessoas tendo e eu não, me dá uma vontade desesperada de ter também. Foi isto que detonou a minha decisão de sair por aí apanhando o que puder. Hoje mesmo vou fazer isto, ainda que tenha de passar o resto da minha vida na cadeia. Lá, pelo menos não preciso trabalhar, tenho comida de graça e não vejo aquelas malditas coisas que me mandam comprar sem eu poder. Já tomei isso como gozação.

Quando sair da "casa engomada", vou seguir direto para o chopinguecenter que fica perto do meu barraco. Vou começar pedindo. Se não me derem, saio atirando nas pessoas que for encontrando. Não acredito que elas não tremam de medo quando apontar as armas. Se me prenderem, como já disse, vou levar uma vida melhor. Também não sinto medo de me matem. Antes de ir pro inferno, mando pelo menos meia dúzia, na minha frente. Não aguentava mesmo levar mais esta vida, tendo tanto desejo de possuir aquelas coisas. E enquanto não me balearem, vou ter, pelo menos, alguns minutos de poder.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br