A Garganta da Serpente
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...E Os Deuses Choraram

(Raymundo Silveira)

Atravessou a represa a nado. Nada o detinha. Dizem que estudou lá. Não é verdade. Morou... Viveu, no Asclepion de Trica, na Tessália. Os primeiros lampejos da consciência foram raios de luzes invisíveis. Os primeiros sons foram gemidos. E o primeiro odor, o das emanações enjoativas dos miasmas. Descendente de Asclépio. Portanto, de Apolo e Coronide. Seu pai, o ontem. Mas poderia se chamar Macaon ou Polidário. O nome da mãe também se perdeu nas brumas de um passado remoto. Mas poderia ter sido, quem sabe, Hígia ou Panaceia.

O que menos importava era o bem-estar pessoal. Jamais possuíra casa própria, automóvel, roupas caras, bens de qualquer natureza. Doutor, minha mulher... Faz três dias que sofre. O menino tá com o braço do lado de fora. A parteira já puxou e nada... Era um boêmio, contudo a sua boêmia nunca foi obstáculo para sacrificar confortos, luxos e até a saúde em benefício dos doentes. Doutor, o canoeiro sumiu. Desculpe ter-lhe trazido até aqui. Não podemos atravessar. Seja o que Zeus quiser.

Mentira! Também estive em Tessália. Jamais o vi lá. Além disso, posso provar que foi em Mersenia onde Apolo e Arsione, filha de Leucipo, geraram Asclépio. Coronide apenas o amamentou... Também o vi tratando doentes. Tudo o que faz está errado. Todos os meus pacientes, com menos de um dia de internados, já tomam um consomê. Ele recomenda jejum absoluto. Além disso, o procedimento corriqueiro do sacrifício noturno de animais, ainda utilizado em outros Asclepions, era vedado em Trica. Isto há muito tempo caiu em desuso. No entanto, o vi praticando... Nunca estudou na Tessália. Trata-se de um charlatão.

A nado. Com a roupa presa na cabeça, pelo cinto. A parturiente numa rede. Já não tinha forças para gritar. Emitia leves gemidos. Tomou-a nos próprios braços e estendeu no chão de piso morto... Tão morto quanto parecia estar o bebê cujo braço direito simulava um paio. Assim na espessura como na cor. Assim na Terra como no Céu, o pão nosso de cada dia nos dai hoje... Afastem-se por favor, continuem rezando, mas não se aproximem.

Falso médico. Comecei os meus estudos em Epidauro e os concluí em Cós. São os dois melhores. Talvez o Asclepion de Pergamon possa ser equiparado ao de lá, pois foi um dos nossos maiores Asclepíades, o seu criador e orientador. Em Cós, a influência de Asclépio se dá indiretamente. Ele ilumina os nossos Asclepíades. Desnecessária a sua presença. Se ele permite que se reze a oração ensinada pelo homem da cruz é um traidor dos deuses. Devia se aposentar. Estou sendo tolerante: devia morrer.

Não esperou que fervessem água. A criança comprimiu-lhe levemente o indicador. Portanto, vivia. Álcool não havia. Apenas água e um pedaço de sabão. Introduziu a mão de volta para o lugar de onde não deveria ter saído. Esta manobra não é fácil num Asclepion. Imagine-se num chão de piso morto. Cãibras na mão direita. Mão de parteiro, agora sendo introduzida no útero a procura do bom pé. Não importava: poderia ser também o mau.

Lembrou-se dos conselhos do mestre: "Aplicarei os procedimentos que aprendi para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher remédio abortivo nem praticarei manobras com o propósito de matar o concepto". Lembrou-se, apenas. Não importava mais se estava ou não seguindo aqueles ensinamentos. Nem Asclépio, nem o próprio Zeus o impediriam de praticar... Era tudo ou nada.

Os Asclepions se julgam donos da verdade. Cada Asclepíade é vaidoso e não sabe nada. E por isso mesmo vê no outro, também um ignorante. São odres cheios de vento. Se fossem honestos e humildes o suficiente para reconhecer que nada sabem, aprenderiam mais e ganhariam o respeito dos outros homens. "Quem és tu, ó fanfarrão, para ousares blasfemar contra os deuses?"

Não escutava. Pegou um pé. Qualquer pé. Não se deteve um instante para identificar se era o bom ou o mau. Naquele momento, bom era aquela mulher viva. Se possível, também a criança. O que seria muito improvável. Tracionou até a cabeça se fixar sob a sínfise da pube. Mais uma vez usou a mão de parteiro. Fazendo do dedo indicador uma chupeta, introduziu na boca do feto e aprofundou até a base da língua. E descolou a cabeça...

Atrevi-me por um motivo simples: sou um verdadeiro Asclepíade. Pertenço a uma família cujas origens se confundem com as de Macaon e Polidário, que acompanharam os nossos guerreiros na campanha contra Troia. Sei a verdadeira história do nosso deus, Asclépio. Não media sacrifícios para cuidar de um doente. Conheço a sua luta heróica na expedição dos Argonautas e na caçada ao javali de Cálidon. Apesar disso, reconheço as minhas limitações. Mas a natureza desconhece as dela... E os deuses também choraram...

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