Atravessou a represa a nado. Nada o detinha. Dizem que estudou lá. Não
é verdade. Morou... Viveu, no Asclepion de Trica, na Tessália.
Os primeiros lampejos da consciência foram raios de luzes invisíveis.
Os primeiros sons foram gemidos. E o primeiro odor, o das emanações
enjoativas dos miasmas. Descendente de Asclépio. Portanto, de Apolo e
Coronide. Seu pai, o ontem. Mas poderia se chamar Macaon ou Polidário.
O nome da mãe também se perdeu nas brumas de um passado remoto.
Mas poderia ter sido, quem sabe, Hígia ou Panaceia.
O que menos importava era o bem-estar pessoal. Jamais possuíra casa própria,
automóvel, roupas caras, bens de qualquer natureza. Doutor, minha mulher...
Faz três dias que sofre. O menino tá com o braço do lado
de fora. A parteira já puxou e nada... Era um boêmio, contudo a
sua boêmia nunca foi obstáculo para sacrificar confortos, luxos
e até a saúde em benefício dos doentes. Doutor, o canoeiro
sumiu. Desculpe ter-lhe trazido até aqui. Não podemos atravessar.
Seja o que Zeus quiser.
Mentira! Também estive em Tessália. Jamais o vi lá. Além
disso, posso provar que foi em Mersenia onde Apolo e Arsione, filha de Leucipo,
geraram Asclépio. Coronide apenas o amamentou... Também o vi tratando
doentes. Tudo o que faz está errado. Todos os meus pacientes, com menos
de um dia de internados, já tomam um consomê. Ele recomenda
jejum absoluto. Além disso, o procedimento corriqueiro do sacrifício
noturno de animais, ainda utilizado em outros Asclepions, era vedado em Trica.
Isto há muito tempo caiu em desuso. No entanto, o vi praticando... Nunca
estudou na Tessália. Trata-se de um charlatão.
A nado. Com a roupa presa na cabeça, pelo cinto. A parturiente numa rede.
Já não tinha forças para gritar. Emitia leves gemidos.
Tomou-a nos próprios braços e estendeu no chão de piso
morto... Tão morto quanto parecia estar o bebê cujo braço
direito simulava um paio. Assim na espessura como na cor. Assim na Terra como
no Céu, o pão nosso de cada dia nos dai hoje... Afastem-se por
favor, continuem rezando, mas não se aproximem.
Falso médico. Comecei os meus estudos em Epidauro e os concluí
em Cós. São os dois melhores. Talvez o Asclepion de Pergamon possa
ser equiparado ao de lá, pois foi um dos nossos maiores Asclepíades,
o seu criador e orientador. Em Cós, a influência de Asclépio
se dá indiretamente. Ele ilumina os nossos Asclepíades. Desnecessária
a sua presença. Se ele permite que se reze a oração ensinada
pelo homem da cruz é um traidor dos deuses. Devia se aposentar. Estou
sendo tolerante: devia morrer.
Não esperou que fervessem água. A criança comprimiu-lhe
levemente o indicador. Portanto, vivia. Álcool não havia. Apenas
água e um pedaço de sabão. Introduziu a mão de volta
para o lugar de onde não deveria ter saído. Esta manobra não
é fácil num Asclepion. Imagine-se num chão de piso morto.
Cãibras na mão direita. Mão de parteiro, agora sendo introduzida
no útero a procura do bom pé. Não importava: poderia
ser também o mau.
Lembrou-se dos conselhos do mestre: "Aplicarei os procedimentos que aprendi
para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano
ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio
mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a
nenhuma mulher remédio abortivo nem praticarei manobras com o propósito
de matar o concepto". Lembrou-se, apenas. Não importava mais se
estava ou não seguindo aqueles ensinamentos. Nem Asclépio, nem
o próprio Zeus o impediriam de praticar... Era tudo ou nada.
Os Asclepions se julgam donos da verdade. Cada Asclepíade é vaidoso
e não sabe nada. E por isso mesmo vê no outro, também um
ignorante. São odres cheios de vento. Se fossem honestos e humildes o
suficiente para reconhecer que nada sabem, aprenderiam mais e ganhariam o respeito
dos outros homens. "Quem és tu, ó fanfarrão, para
ousares blasfemar contra os deuses?"
Não escutava. Pegou um pé. Qualquer pé. Não se deteve
um instante para identificar se era o bom ou o mau. Naquele momento,
bom era aquela mulher viva. Se possível, também a criança.
O que seria muito improvável. Tracionou até a cabeça se
fixar sob a sínfise da pube. Mais uma vez usou a mão de parteiro.
Fazendo do dedo indicador uma chupeta, introduziu na boca do feto e aprofundou
até a base da língua. E descolou a cabeça...
Atrevi-me por um motivo simples: sou um verdadeiro Asclepíade. Pertenço
a uma família cujas origens se confundem com as de Macaon e Polidário,
que acompanharam os nossos guerreiros na campanha contra Troia. Sei a
verdadeira história do nosso deus, Asclépio. Não media
sacrifícios para cuidar de um doente. Conheço a sua luta heróica
na expedição dos Argonautas e na caçada ao javali de Cálidon.
Apesar disso, reconheço as minhas limitações. Mas a natureza
desconhece as dela... E os deuses também choraram...