Tinha um aleijão muito raro, além de ser mudo, ou melhor, meio
mudo. Será que existe meio mudo? O certo é que só conseguia
se comunicar a muito custo através da emissão de um único
ruído que poderia ser definido como tudo, exceto som de voz humana. Por
isto mesmo, a única comunicação que conseguia transmitir
era mais adivinhada do que entendida através da articulação
da palavra, mas todos já sabiam o que ele queria dizer: "dê-me
uma esmola pelo amor de Deus". Locomovia-se com enorme dificuldade, à
custa de muletas; era portador de uma lordose tão acentuada, que o arco
formado nas costas entre a cabeça e os calcanhares, configurava quase
um ângulo reto. Nem sempre fora assim. Doquinha, desde quando nasceu e
até os 32 anos era uma pessoa absolutamente normal; numa certa noite
foi dormir sadio como um novilho em véspera de corrida de toros,
e amanheceu aleijado. Não houve médico que dissesse o que era
aquilo e muito menos que o curasse.
Dizem que havia sido o resultado de um feitiço requerido por um seu desafeto,
e deferido pelo próprio demônio, em pessoa, com quem aquele haveria
pactuado a troca da sua alma pela aquisição de determinados poderes;
entre estes o de ocasionar o mal a quem ele bem quisesse e entendesse. Chamava-se
Chico Gazo, era um sujeito esquisito, metido consigo próprio, vivia sozinho
num casarão cuja fama de mal-assombrado era conhecida de todos e ninguém
sabia qual era a fonte de recursos da sua subsistência, apesar de ostentar
um padrão vida muito acima da média dos habitantes da vila. Gazo
não era o seu verdadeiro sobrenome, mas um apelido que o puseram por
conta da pele e dos pêlos sem nenhuma pigmentação, exceto
pela presença de pequenas sardas disseminadas pela face e pelos membros
superiores. Só trajava e calçava roupas e sapatos brancos, o que
lhe valia também a alcunha de doutor macumbeiro, mas ai daquele
que pronunciasse isto na sua presença.
Não se sabe ao certo o motivo da rixa entre o Gazo e o Doquinha, mas
há indícios de que se tratava de algo envolvendo "bicho
de saia"; era assim como o primeiro tratava as mulheres. Quando
tava com esquentamento costumava dizer: "por enquanto num posso comer
bicho de escama, bicho de lata, bicho de pena e nem bicho de saia".
Acredita-se que ele nunca usava este último quer estivesse ou não
com esquentamento, pois todas as mulheres - inclusive as putas - tinham muito
medo dele. Mesmo assim, era apaixonado pela Eloísa, que namorava o Doquinha
desde criança e já estavam de casamento marcado pra depois da
safra daquele ano, quando aconteceu a desgraça. A partir daquele dia,
ela nunca mais quis nem ouvir falar no nome do noivo, mas também jamais
dera confiança ao doutor macumbeiro, que continuou odiando o Doquinha
mesmo depois do feitiço.
Em Outubro de 1954 havia se passado pouco mais de dois anos desde quando o Doquinha
tinha ficado subitamente aleijado. Naquela época peregrinava pelo Nordeste
a imagem milagrosa de Nossa Senhora de Fátima de Portugal. Por onde a
santa passava ia deixando um rastro de milagres que ia da cura de cego de nascença
a fazer caloteiro pagar conta e vereador trabalhar - estes últimos muito
mais difíceis do que o primeiro, segundo consenso na região. Na
igrejinha da vila, a população inteira se reunia todas as noites
para assistir a novenas e entoar cânticos de louvores à Virgem,
enquanto ela não chegava, pedindo, por antecipação, que
reservasse um pouco do seu estoque de milagres a fim de curar também
os seus próprios males. Os cânticos eram acompanhados por quatro
instrumentos musicais a que chamavam banda de música. Havia um tocador
chamado "seu" Marim que não parava de mascar fumo nem enquanto
tocava um instrumento de sopro de metal com embocadura de bocal, longo tubo
cônico enrolado sobre si mesmo e terminando num pavilhão largo,
a que chamavam de trompa. Enquanto ele tocava, escorria pelo dito pavilhão
uma gosma amarela, mole e viscosa; aquilo era a diversão dos moleques
que diziam: "a trompa do 'seu' Marim tá com caganeira"; era
o suficiente para o velho ficar puto da vida, parar de tocar e correr atrás
da molecada.
O Doquinha não perdia uma novena, pois era o primeiro candidato da fila
de espera do milagre, justamente porque diziam que o seu aleijão era
obra do capeta e somente a santa seria capaz de exorcizar o dito cujo e reverter
a bruxaria. Chico Gazo quando soube disto comentava abertamente para quem quisesse
ouvir: "é mais fácil eu virar uma mula parida do que ele
ficar bom; meu 'santo' tem mil vezes mais poder do que esta santinha mixuruca
dele". Todas as sextas-feiras à meia noite, enquanto os fiéis
ainda cantavam hinos à Virgem de Fátima na igreja, Gazo se juntava
com o Cobra Preta, também metido a fazedor de despachos, e seguiam juntos
para uma encruzilhada - hoje conhecida como "Encruzilhada do Diabo"
- onde diziam que se encontrava com o seu chefe, padrinho, patrão e futuro
proprietário da sua alma. Para que diabo o diabo queria a alma do Chico
Gazo, era o que todo mundo se perguntava, uma vez que, em vida, ele nunca enfiara
um prego numa barra de sabão, e não seria depois de morto que
iria tomar gosto por alguma profissão infernal.
Quando voltavam do encontro com o padroeiro deles, Gazo e Cobra Preta
ficavam bebericando pinga na bodega do Toim Barrigudo, reiterando o desafio
à Santa do Doquinha (se ele ficar bom eu viro uma mula parida),
e espumavam pela boca uma baba escura, da cor de abacate podre; dos olhos faiscavam
umas labaredas e também eliminavam pelos buracos das ventas e dos ouvidos
uma fumaça preta com catinga de enxofre, enquanto grunhiam numa voz esganiçada
e cheia de ódio, estas palavras: "maldito o padre, maldito o filho,
maldito o esprito santo". O Toim Barrigudo corria lá pra
dentro, se benzia e dizia umas jaculatórias, mas não tinha coragem
de expulsar a dupla por dois motivos: primeiro, porque eram eles os seus clientes
mais abastados e perdulários, logo, a maior fonte de lucro do seu comércio;
depois, porque tinha pavor de ficar como o Doquinha se acaso os dois criassem
rixa dele também.
A Santa veio, a multidão a aclamou com hinos e orações;
rezaram-se missas, ladainhas e centenas de rosários, mas o Doquinha continuou
aleijado e meio mudo, como sempre (será que existe meio mudo?). O Chico
Gazo e o Cobra Preta sumiram da face da Terra como se tivessem sido corroídos
num poço de ácido muriático ou descido aos infernos com
corpo, sangue, alma e "diabidade - esta última hipótese
é a mais provável, segundo a maioria do povo do lugar. Contudo,
ninguém sabe ao certo. A única certeza que se tem é que
toda primeira sexta-feira do mês, à meia noite em ponto, correm
pela vila, vindos dos lados do cemitério, uma mula preta rinchando e
um burrico atrás dela. Param na calçada de onde era a bodega do
Toim Barrigudo e depois disparam em direção à "Encruzilhada
do Diabo".