A Garganta da Serpente
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A Encruzilhada Do Diabo

(Raymundo Silveira)

Tinha um aleijão muito raro, além de ser mudo, ou melhor, meio mudo. Será que existe meio mudo? O certo é que só conseguia se comunicar a muito custo através da emissão de um único ruído que poderia ser definido como tudo, exceto som de voz humana. Por isto mesmo, a única comunicação que conseguia transmitir era mais adivinhada do que entendida através da articulação da palavra, mas todos já sabiam o que ele queria dizer: "dê-me uma esmola pelo amor de Deus". Locomovia-se com enorme dificuldade, à custa de muletas; era portador de uma lordose tão acentuada, que o arco formado nas costas entre a cabeça e os calcanhares, configurava quase um ângulo reto. Nem sempre fora assim. Doquinha, desde quando nasceu e até os 32 anos era uma pessoa absolutamente normal; numa certa noite foi dormir sadio como um novilho em véspera de corrida de toros, e amanheceu aleijado. Não houve médico que dissesse o que era aquilo e muito menos que o curasse.

Dizem que havia sido o resultado de um feitiço requerido por um seu desafeto, e deferido pelo próprio demônio, em pessoa, com quem aquele haveria pactuado a troca da sua alma pela aquisição de determinados poderes; entre estes o de ocasionar o mal a quem ele bem quisesse e entendesse. Chamava-se Chico Gazo, era um sujeito esquisito, metido consigo próprio, vivia sozinho num casarão cuja fama de mal-assombrado era conhecida de todos e ninguém sabia qual era a fonte de recursos da sua subsistência, apesar de ostentar um padrão vida muito acima da média dos habitantes da vila. Gazo não era o seu verdadeiro sobrenome, mas um apelido que o puseram por conta da pele e dos pêlos sem nenhuma pigmentação, exceto pela presença de pequenas sardas disseminadas pela face e pelos membros superiores. Só trajava e calçava roupas e sapatos brancos, o que lhe valia também a alcunha de doutor macumbeiro, mas ai daquele que pronunciasse isto na sua presença.

Não se sabe ao certo o motivo da rixa entre o Gazo e o Doquinha, mas há indícios de que se tratava de algo envolvendo "bicho de saia"; era assim como o primeiro tratava as mulheres. Quando tava com esquentamento costumava dizer: "por enquanto num posso comer bicho de escama, bicho de lata, bicho de pena e nem bicho de saia". Acredita-se que ele nunca usava este último quer estivesse ou não com esquentamento, pois todas as mulheres - inclusive as putas - tinham muito medo dele. Mesmo assim, era apaixonado pela Eloísa, que namorava o Doquinha desde criança e já estavam de casamento marcado pra depois da safra daquele ano, quando aconteceu a desgraça. A partir daquele dia, ela nunca mais quis nem ouvir falar no nome do noivo, mas também jamais dera confiança ao doutor macumbeiro, que continuou odiando o Doquinha mesmo depois do feitiço.

Em Outubro de 1954 havia se passado pouco mais de dois anos desde quando o Doquinha tinha ficado subitamente aleijado. Naquela época peregrinava pelo Nordeste a imagem milagrosa de Nossa Senhora de Fátima de Portugal. Por onde a santa passava ia deixando um rastro de milagres que ia da cura de cego de nascença a fazer caloteiro pagar conta e vereador trabalhar - estes últimos muito mais difíceis do que o primeiro, segundo consenso na região. Na igrejinha da vila, a população inteira se reunia todas as noites para assistir a novenas e entoar cânticos de louvores à Virgem, enquanto ela não chegava, pedindo, por antecipação, que reservasse um pouco do seu estoque de milagres a fim de curar também os seus próprios males. Os cânticos eram acompanhados por quatro instrumentos musicais a que chamavam banda de música. Havia um tocador chamado "seu" Marim que não parava de mascar fumo nem enquanto tocava um instrumento de sopro de metal com embocadura de bocal, longo tubo cônico enrolado sobre si mesmo e terminando num pavilhão largo, a que chamavam de trompa. Enquanto ele tocava, escorria pelo dito pavilhão uma gosma amarela, mole e viscosa; aquilo era a diversão dos moleques que diziam: "a trompa do 'seu' Marim tá com caganeira"; era o suficiente para o velho ficar puto da vida, parar de tocar e correr atrás da molecada.

O Doquinha não perdia uma novena, pois era o primeiro candidato da fila de espera do milagre, justamente porque diziam que o seu aleijão era obra do capeta e somente a santa seria capaz de exorcizar o dito cujo e reverter a bruxaria. Chico Gazo quando soube disto comentava abertamente para quem quisesse ouvir: "é mais fácil eu virar uma mula parida do que ele ficar bom; meu 'santo' tem mil vezes mais poder do que esta santinha mixuruca dele". Todas as sextas-feiras à meia noite, enquanto os fiéis ainda cantavam hinos à Virgem de Fátima na igreja, Gazo se juntava com o Cobra Preta, também metido a fazedor de despachos, e seguiam juntos para uma encruzilhada - hoje conhecida como "Encruzilhada do Diabo" - onde diziam que se encontrava com o seu chefe, padrinho, patrão e futuro proprietário da sua alma. Para que diabo o diabo queria a alma do Chico Gazo, era o que todo mundo se perguntava, uma vez que, em vida, ele nunca enfiara um prego numa barra de sabão, e não seria depois de morto que iria tomar gosto por alguma profissão infernal.

Quando voltavam do encontro com o padroeiro deles, Gazo e Cobra Preta ficavam bebericando pinga na bodega do Toim Barrigudo, reiterando o desafio à Santa do Doquinha (se ele ficar bom eu viro uma mula parida), e espumavam pela boca uma baba escura, da cor de abacate podre; dos olhos faiscavam umas labaredas e também eliminavam pelos buracos das ventas e dos ouvidos uma fumaça preta com catinga de enxofre, enquanto grunhiam numa voz esganiçada e cheia de ódio, estas palavras: "maldito o padre, maldito o filho, maldito o esprito santo". O Toim Barrigudo corria lá pra dentro, se benzia e dizia umas jaculatórias, mas não tinha coragem de expulsar a dupla por dois motivos: primeiro, porque eram eles os seus clientes mais abastados e perdulários, logo, a maior fonte de lucro do seu comércio; depois, porque tinha pavor de ficar como o Doquinha se acaso os dois criassem rixa dele também.

A Santa veio, a multidão a aclamou com hinos e orações; rezaram-se missas, ladainhas e centenas de rosários, mas o Doquinha continuou aleijado e meio mudo, como sempre (será que existe meio mudo?). O Chico Gazo e o Cobra Preta sumiram da face da Terra como se tivessem sido corroídos num poço de ácido muriático ou descido aos infernos com corpo, sangue, alma e "diabidade - esta última hipótese é a mais provável, segundo a maioria do povo do lugar. Contudo, ninguém sabe ao certo. A única certeza que se tem é que toda primeira sexta-feira do mês, à meia noite em ponto, correm pela vila, vindos dos lados do cemitério, uma mula preta rinchando e um burrico atrás dela. Param na calçada de onde era a bodega do Toim Barrigudo e depois disparam em direção à "Encruzilhada do Diabo".

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