Vontade de ser um pesadelo. Não sou. Está lá. Tangível
como um urubu: esclerose múltipla. A maior parte da vida pagando juros
sobre juros. Agora estou quitando o principal. Da dívida contraída
ao escolher esta profissão. Sei o que me espera. Antes, pensava na preguiça
dos séculos. Doravante, pensarei no sobressalto das horas. Por enquanto,
só sinto dormência e tonturas. E uma leve turvação
na vista. Aos poucos virá a cegueira. E com ela, uma legião de
companheiros. Será um cortejo de males, como se o meu corpo tivesse sido
condenado a desempenhar o papel de oniservente cobaia. Até o instante
final.
Experimentarei tristezas tão profundas que o mais triste dos homens se
rejubilaria por não sentir, se acaso pudesse imaginá-las. Terei
soluços de riso entremeados de convulsões de choro. Sem causa
aparente. Falarei lentamente, escandindo as sílabas. Quando tiver sede,
poucos terão paciência para me escutar pedir um copo d'água.
Tremores serão imperativos. Tremerei porque quero, mas sem querer tremer.
E quanto mais tremores, mais tremer hei de querer, não querendo. Como
alguém se coçando até a pele virar carne.
Os músculos enrijecerão. Qualquer movimento, um tormento. Escovar
os dentes, tão penoso quanto levantar cem quilos. Caminhar seis passos,
tão difícil quanto palmilhar seis léguas. A marcha será
atáxica; com pouca, ou nenhuma coordenação motora. Ao tentar
ir para a direita, seguirei, sem querer, para a esquerda. Meus pés ceifarão
o nada, assim como nada deterá a segadura da minha vida. Toques de quaisquer
objetos provocarão reações dolorosas. Se sentir frio, talvez
prefira tolerá-lo, a entrar em contato com um cobertor. Urinarei involuntariamente
e não urinarei ao ter vontade. E nunca mais sentirei sequer o doce desejo
de desejar uma mulher.
Depois de cogitar sobre isso, uma autocompaixão imensa me invadiu. E,
logo a seguir, uma ideia brotou do nada: Abreviar aquilo. Pois estava
a morrer-me, mas, ao mesmo tempo, preste a ressuscitar-me para a morte. E tudo
o quanto sabia que ia acontecer, parecia já estar acontecendo. Presente
e futuro simultâneos. Então, devia poupar, a mim e a terceiros,
daquela gangorra de falecimentos e semirressurreições sucessivos.
Nenhum homem é tão sinistro que mereça o castigo de morrer
mais de uma vez.
Pensei que fosse fácil. Um ato semelhante à decisão de
viajar. Num tempo incerto, quando exportava (e esbanjava) saúde, escrevi:
"Ora, a morte é a última e mais previsível consequência
de estar vivo. Contudo, é curiosa a razão pela qual infunde tanto
pavor. Só se teme a morte pelo mesmo motivo que se suporta a dor de viver:
a perspectiva de novas realizações; de novos ideais. Não
sinto este medo. Desdenho os calafrios de terror ante a aniquilação
total. Nada poderá ser pior que viver. Se citassem uma única razão
para continuar existindo, desistiria de me matar. A vida pode ser considerada
um acaso inútil. Ou então, um sistema físico-químico
destinado a aumentar o caos energético do universo".
"Na verdade, a existência humana é muito mais desprovida de
sentido e mais plena de sofrimentos do que a dos bichos. A consciência
dos seres ditos evoluídos, longe de os tornar mais perfeitos, só
serve para infundir a consciência da própria finitude. Em outras
palavras, o homem é o único animal que reconhece o próprio
fim. E a esse castigo há quem dê o nome de 'evolução'."
Quanto devaneio! Quando mais careci dessas ideias, menos elas me acudiram.
Quando julguei estar disposto a cometer o ato mais digno que se poderia esperar
de um homem na minha condição, fraquejei. E uma miserável
vontade de viver, vergonhosamente, me envolveu. E eu, que amava o feio, passei
a endeusar o belo. Eu, que delirava de prazer no meio das multidões alvoroçadas
dos shoppings, durante agitados festivais, passei a me comover diante do canto
de um único passarinho. Havia uma desconveniência de viver proporcional
à vantagem de morrer. Então, se instalou o verdadeiro pesadelo.
A necessidade de uma gota de ilusão num mar de desenganos. A coexistência
de dois estímulos disparando reações mutuamente excludentes.
Perambulei por consultórios, pagando caro, em troca de uma esmola de
esperança. Mendigava uma palavra de falsa verdade, ainda que tivesse
convicção da mentira. Ansiava por um prognóstico favorável,
embora tivesse estudado, sobre a doença, tudo o quanto encontrei. Nos
meus livros, nas revistas, na Internet... Em todas as bibliotecas da Terra,
do céu e do inferno. E o resultado foi um só: "Curso progressivamente
decadente e sem remissões. Expectativa de viver pouco mais de um ou dois
anos".
Era tarde, mas não tarde demais. Numa tarde de domingo, tomei, afinal,
a decisão que cedo deveria ter tomado. Costumava ser o primeiro nas competições
de tiro ao alvo. Entretanto, tanto desempenho num campeão covarde é
milhares de vezes menor do que nenhum, num herói derrotado. Não
mantive o cano com firmeza suficiente e a bala resvalou. Fui operado. Dizem
que estou salvo. Salvo, de quê? Salvo se for da falta de vergonha. Há
pouco recebi a visita do meu único filho. Embriagado, como sempre. "E
aí, velho... Nem pra acabar contigo tu serviste, cara...".