A Garganta da Serpente
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Dita Maldita

(Raymundo Silveira)

Vontade de ser um pesadelo. Não sou. Está lá. Tangível como um urubu: esclerose múltipla. A maior parte da vida pagando juros sobre juros. Agora estou quitando o principal. Da dívida contraída ao escolher esta profissão. Sei o que me espera. Antes, pensava na preguiça dos séculos. Doravante, pensarei no sobressalto das horas. Por enquanto, só sinto dormência e tonturas. E uma leve turvação na vista. Aos poucos virá a cegueira. E com ela, uma legião de companheiros. Será um cortejo de males, como se o meu corpo tivesse sido condenado a desempenhar o papel de oniservente cobaia. Até o instante final.

Experimentarei tristezas tão profundas que o mais triste dos homens se rejubilaria por não sentir, se acaso pudesse imaginá-las. Terei soluços de riso entremeados de convulsões de choro. Sem causa aparente. Falarei lentamente, escandindo as sílabas. Quando tiver sede, poucos terão paciência para me escutar pedir um copo d'água. Tremores serão imperativos. Tremerei porque quero, mas sem querer tremer. E quanto mais tremores, mais tremer hei de querer, não querendo. Como alguém se coçando até a pele virar carne.

Os músculos enrijecerão. Qualquer movimento, um tormento. Escovar os dentes, tão penoso quanto levantar cem quilos. Caminhar seis passos, tão difícil quanto palmilhar seis léguas. A marcha será atáxica; com pouca, ou nenhuma coordenação motora. Ao tentar ir para a direita, seguirei, sem querer, para a esquerda. Meus pés ceifarão o nada, assim como nada deterá a segadura da minha vida. Toques de quaisquer objetos provocarão reações dolorosas. Se sentir frio, talvez prefira tolerá-lo, a entrar em contato com um cobertor. Urinarei involuntariamente e não urinarei ao ter vontade. E nunca mais sentirei sequer o doce desejo de desejar uma mulher.

Depois de cogitar sobre isso, uma autocompaixão imensa me invadiu. E, logo a seguir, uma ideia brotou do nada: Abreviar aquilo. Pois estava a morrer-me, mas, ao mesmo tempo, preste a ressuscitar-me para a morte. E tudo o quanto sabia que ia acontecer, parecia já estar acontecendo. Presente e futuro simultâneos. Então, devia poupar, a mim e a terceiros, daquela gangorra de falecimentos e semirressurreições sucessivos. Nenhum homem é tão sinistro que mereça o castigo de morrer mais de uma vez.

Pensei que fosse fácil. Um ato semelhante à decisão de viajar. Num tempo incerto, quando exportava (e esbanjava) saúde, escrevi: "Ora, a morte é a última e mais previsível consequência de estar vivo. Contudo, é curiosa a razão pela qual infunde tanto pavor. Só se teme a morte pelo mesmo motivo que se suporta a dor de viver: a perspectiva de novas realizações; de novos ideais. Não sinto este medo. Desdenho os calafrios de terror ante a aniquilação total. Nada poderá ser pior que viver. Se citassem uma única razão para continuar existindo, desistiria de me matar. A vida pode ser considerada um acaso inútil. Ou então, um sistema físico-químico destinado a aumentar o caos energético do universo".

"Na verdade, a existência humana é muito mais desprovida de sentido e mais plena de sofrimentos do que a dos bichos. A consciência dos seres ditos evoluídos, longe de os tornar mais perfeitos, só serve para infundir a consciência da própria finitude. Em outras palavras, o homem é o único animal que reconhece o próprio fim. E a esse castigo há quem dê o nome de 'evolução'."

Quanto devaneio! Quando mais careci dessas ideias, menos elas me acudiram. Quando julguei estar disposto a cometer o ato mais digno que se poderia esperar de um homem na minha condição, fraquejei. E uma miserável vontade de viver, vergonhosamente, me envolveu. E eu, que amava o feio, passei a endeusar o belo. Eu, que delirava de prazer no meio das multidões alvoroçadas dos shoppings, durante agitados festivais, passei a me comover diante do canto de um único passarinho. Havia uma desconveniência de viver proporcional à vantagem de morrer. Então, se instalou o verdadeiro pesadelo. A necessidade de uma gota de ilusão num mar de desenganos. A coexistência de dois estímulos disparando reações mutuamente excludentes.

Perambulei por consultórios, pagando caro, em troca de uma esmola de esperança. Mendigava uma palavra de falsa verdade, ainda que tivesse convicção da mentira. Ansiava por um prognóstico favorável, embora tivesse estudado, sobre a doença, tudo o quanto encontrei. Nos meus livros, nas revistas, na Internet... Em todas as bibliotecas da Terra, do céu e do inferno. E o resultado foi um só: "Curso progressivamente decadente e sem remissões. Expectativa de viver pouco mais de um ou dois anos".

Era tarde, mas não tarde demais. Numa tarde de domingo, tomei, afinal, a decisão que cedo deveria ter tomado. Costumava ser o primeiro nas competições de tiro ao alvo. Entretanto, tanto desempenho num campeão covarde é milhares de vezes menor do que nenhum, num herói derrotado. Não mantive o cano com firmeza suficiente e a bala resvalou. Fui operado. Dizem que estou salvo. Salvo, de quê? Salvo se for da falta de vergonha. Há pouco recebi a visita do meu único filho. Embriagado, como sempre. "E aí, velho... Nem pra acabar contigo tu serviste, cara...".

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