A Garganta da Serpente
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Hermeto

(Raymundo Silveira)

O que você faria se despertasse numa determinada manhã completamente despercebido de quem é, de quem foi. Do que é e do que foi? Algo semelhante, por exemplo, ao que aconteceria a um recém-nascido que fosse capaz de perceber toda a realidade do presente ao seu redor, mas nunca tivesse tido antes qualquer experiência com a realidade do passado? Foi isto exatamente o que sucedeu a um homem aparentando mais ou menos entre trinta e sete e quarenta, anos no dia catorze de junho de 1980. Ele não sabia disso porque não tinha ideia do que é solidão, mas se encontrava completamente sozinho.

Chamemos de Hermeto a esta pessoa porque também não temos a menor ideia de quem se trata. A situação de Hermeto era muito mais grave do que a de uma toupeira e a de qualquer outro animal também recém-nascido, pois estes possuíam uma mãe ou pelo menos companheiros que, embora não cuidassem deles, serviriam de parâmetros e, portanto, de um comportamento a ser imitado. Pode-se dizer que a situação de Hermeto era até mesmo pior do a que a de um vegetal, pois este, embora não se relacione com os seus semelhantes, detém condições de sobrevida, graças aos seus dotes naturais de nutrição.

Ao contrário de uma planta, Hermeto sentia fome, sede, estímulos excretores, e até mesmo sexuais, só que, teoricamente, estaria impossibilitado de atender a qualquer uma destas necessidades, a não ser instintivamente. Pois mesmo assim, ele se levantou, urinou, defecou e saiu caminhando pelas ruas completamente despido. Até aqui todos haverão de concordar que apesar de se tratar de um fenômeno bizarro, não é, todavia inédito haja vista os vários casos de amnésia que, se não conhecemos pessoalmente, já ouvimos falar muito a seu respeito.

Contudo, o que estava acontecendo com Hermeto era algo extraordinário e inédito. Não se tratava de simples amnésia. Ao caminhar nu pelas ruas da cidade grande ele não sabia o que fazia, porém o mais estranho era que a multidão de transeuntes se comportava com extrema indiferença em relação a ele. Era como se fosse invisível.

Alguém que esteja a ler essa história já deverá estar a questionar: “Ora, se este cara que escreve essa história, não é louco, certamente pretende ludibriar os seus leitores; a menos que somente ele tivesse tido o privilégio de conhecer o que estava se passando na cabeça de Hermeto e na de todas as outras pessoas que transitavam pelas ruas sem reparar na sua nudez. E isto parece mais uma incoerência absurda.” Garanto que não é nada disso e posso provar que essa história é real através de uma evidência muito simples – é que Hermeto sou eu.

Já sei também exatamente o que todos estão pensando agora: “Trata-se de um pobre maluco; não sabe do que está falando; não diz coisa com coisa. Como ele pode ser Hermeto se no princípio desta... Maluquice ele mesmo declara que não tinha nenhuma experiência anterior da vida e do mundo e agora pensa que raciocina e escreve?”

Volto a afirmar: Tudo o que disse é verdade e, mais uma vez posso demonstrar como não sou maluco nem estou intentando enganar a quem quer que seja. Raciocinem comigo, por favor. Se acordei naquele dia sem saber quem ou o quê eu era, mas agora já sou capaz até de relatar tudo o que aconteceu mais tarde, isso prova que eu recuperei a minha memória, a minha capacidade intelectiva, o meu raciocínio, enfim. Todas as outras pessoas que não prestaram atenção ao meu estranho comportamento ao andar nu pelo centro da cidade, nem notaram a espetacular recuperação da minha capacidade de sensopercepção, estas sim, estão completamente malucas. Mas não são apenas aquelas pessoas que estão loucas. São todas as outras também. Todo mundo na face deste planeta está maluco. Somente eu estou lúcido. Além do mais...

- Tá bom, Hermeto. Pode deixar. Era somente isso que eu queria que você escrevesse.

- Então, agora se convenceu, doutor? Em poucas palavras fui capaz de descrever com clareza tudo o que se passou comigo e ainda escrevi um relatório científico insofismável. A grande verdade que o mundo precisava conhecer. Conhecer, não, porque todos estão loucos e não podem conhecer coisa alguma. Somente o senhor, que é meu médico e que foi capaz de me entender, também não está louco. Somos, portanto, apenas nós dois neste planeta a gozar plenamente a normalidade das suas faculdades mentais.

- Você tem toda razão Hermeto. Você não é louco, nem nunca foi louco..

- Então posso ter alta ainda hoje?

- Não sei. O colega que vem me substituir é quem irá avaliar definitivamente o seu caso.

- Por que, doutor?

- Não sei. Estou me sentindo estranho... Não posso lembrar de nada... Não sei mais o que eu sou ou o que fui... Além disto eu estou nu e você não percebeu. Caminhei hoje completamente despido pelo centro da cidade e ninguém reparou em mim... Como o colega que vem me substituir, segundo o seu lúcido raciocínio, também está louco, só existe você em toda a face da Terra, em pleno gozo das faculdades mentais.

O diabo é que eu não sou Hermeto. Sou apenas o narrador dessa história.

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