A Garganta da Serpente
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Lavagem De Honra

(Raymundo Silveira)

Deu três sem tirar de dentro. Mas quando terminou a terceira levantou-se da cama foi ao banheiro, tomou uma ducha e saiu do quarto e da casa sem se despedir da mulher. Era a noite de núpcias. Tinha o apelido de médico e de cirurgião porque no seu país um diploma deste é alcançado da mesma maneira como se tira uma licença de motorista. Talvez seja até mais difícil adquirir esta última. Pois para entrar numa Faculdade não há teste psicotécnico e tampouco uma averiguação rigorosa como, por exemplo, a de prestar um exame de baliza. No dia seguinte telefonou para o pai da esposa e disse sem mais nem menos que iria entrar em juízo com um pedido de anulação de casamento porque as franjas da filha dele há muito já haviam deixado de ser um cabaço.

Era uma cidade de médio porte e o esculápio - que o deus da medicina me perdoe por esta blasfêmia - espalhou pelos quatro cantos do lugar o mesmo tema que havia abordado ao telefone com o pai da moça. Isto sucedeu na década de 1940. Naquela época, ser corno era a mais devastadora das desonras masculinas, uma delicadíssima película mucosa era o único atributo aceitável para documentar a honestidade feminina e as mulheres representavam os bens materiais menos valiosos do patrimônio material dos homens. Há quem ache que não foi apenas naquela época não. Que no princípio do século XXI também ainda era assim. Não importa, voltemos para 1940. O "mérdico" ganhou o processo de anulação, tornou-se ainda mais conceituado do que já era antes e passou a ser citado nas rodas de "família" como um verdadeiro exemplo de honra restabelecida pela lei. A infeliz não cursara sequer o segundo grau.

Passou a ser mais falada na cidade do que dia de pagamento de aposentado. Tinha dezoito anos incompletos, um corpo de "Vênus de Milo", um sorriso de "Monalisa", uma meiguice de criança e uma reputação cujo significado era o mesmo desta palavra sem o "re" e sem o "ção". O pai dela cogitou primeiro de mandar matá-lo. Mas, ponderou que aquilo além de não constituir um castigo, uma vez que o homicídio, além de eliminar qualquer vestígio de culpa ou sofrimento - aliás, com a morte desaparecem os vestígios de quaisquer outras coisas -, iria complicar a sua própria vida para sempre. Depois decidiu mandar arrancar-lhe os ovos. Todavia era um homem que agia menos sob a emoção e mais sob o controle da razão. Concordava com o adágio: "violência gera não violência, mas vítimas". E nada melhor para atrair a compaixão popular do que uma vítima da truculência, por mais escabrosos que tenham sido os crimes que praticou. Percebera também que o tempo de vida restante a ambos seria mais favorável ao "doutor". Este já havia auferido mais fama, mais fortuna, mais prestígio. Publicara cartapácios sobre dores de barriga e lombrigas; centenas de artigos em revistas sobre corrimentos e chegara mesmo à audácia de escrever e editar um livro cujo título era um atentado à dignidade da mulher, um desrespeito à sua vítima e um desafio à justiça: "Atlas De Cirurgia Plástica Contendo Técnicas Especiais De Reconstituição do Hímen" - Fotos E Diagramas Baseados Na Experiência Do Autor. Foi sucesso absoluto de vendas. Até então não havia nada no mercado editorial médico sobre este assunto. Depois de tudo isto, e com a ajuda dos clientes famosos, chegou a ser eleito representante do seu povo na Câmara Federal.

Passou-se, passou-se e o discípulo de Asclépio julgava que tudo já havia sido esquecido. A ex-esposa já completara 30 carnavais e nunca mais soubera o que era cinema, teatro, baile, viagens ou passeios. Era a "falada", a "errada", a "meretriz". Seu nome só era pronunciado em bares de baixa categoria e em prostíbulos. Embora há muito tempo ela não houvesse avistado outro homem que não fosse o próprio pai. Durante estes doze anos, este não tivera outro "ideal" a não ser retribuir à altura a "gentileza" do médico. Investiu quase todos os recursos a fim de investigar a fundo - e no mais absoluto sigilo - a vida pregressa e os hábitos do ex genro. Para isto contratou, em tempo integral, os serviços de um investigador especializado em chafurdar nas "fossas" alheias. Toda a merda do doutor foi revolvida desde a camada mais superficial à mais profunda. Dentre as imundícies sobressaía uma muito interessante. Todas as vezes em que o "Ambroise Parré" terminava de operar uma paciente, costumava ficar sozinho na Sala de Operações. As poucas auxiliares de enfermagem a princípio estranharam aquilo, mas como se tratava do chefe, fizeram "vista grossa" e, com o tempo, nem se ligavam mais naquele estranho "pós-operatório" . O ex sogro soube de tudo, mas teve paciência. De onde ele tirou, não se sabe, mas, com efeito, teve muita paciência.

Certo dia o "Soranius Ephesius" de putada, digo deputado, iria operar uma "bitola estreita" - como ele chamava, entre os mais íntimos, uma operação de Períneo -, na mulher do Prefeito da cidade. O pai da moça achou que agora ou nunca seria o dia da "devolução do presente". Conseguiu, através do seu prestígio e, se desfazendo dos últimos bens, arrebanhar repórteres famosos dos jornais, da televisão e do rádio. Com o auxílio do detetive "abridor de latrinas" foi possível cronometrar todo o ato cirúrgico. Quando aquele sinalizou através de um walk talk o momento exato, avançou para dentro do hospital acompanhado de toda a equipe - composta inclusive de cinegrafistas - e, de lá, para o Centro Cirúrgico". Empurrou a porta com força. O operador, nu, se masturbava rente ao local operado da operada.

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