A Garganta da Serpente
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As Exéquias de Juvenal Sampaio

(Raymundo Silveira)

"Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
"
Fernando Pessoa (Álvaro de Campos): Lisbon Revisited

O dia da morte de Juvenal Sampaio, funcionário público aposentado, foi como se muitas pessoas tivessem recebido, um prêmio da loteria. Começando por ele mesmo, afinal livre de uma sofrida doença crônica, que se arrastava por quase dois anos. Foi um presente especial também para aqueles que ficaram. Os diretores do Plano de Saúde, preocupados com as enormes despesas, respiraram aliviados. Também a paciência dos médicos já ultrapassara o limite, pelas aporrinhações, dia e noite. Era um caso perdido, chato e pouco rendoso. Mesmo a empresa funerária, há muito tempo ansiava pelo dia de faturar aquele serviço,tantas vezes adiado. E a Seguridade Social, a partir de agora, pagaria apenas uma pensão, parte do salário integral no seu último mês de trabalho. Quanto aos vizinhos, esses ficariam livres dos gemidos contínuos.

Mas, quem ganhou mesmo o "prêmio acumulado da Sena" foi a sua família. Especialmente a esposa, enfim desembaraçada daquele estorvo. A casa voltaria a respirar ares de gente sadia.O quarto em que o marido agonizara e morrera, agora seria aproveitado como silo ou despensa. Ela e os filhos poderiam voltar a se divertir como pessoas normais, que ninguém é de ferro. E, principalmente, a "bolada" do seguro de vida do finado equivalia a dar um verdadeiro chute na miséria. A maior dificuldade da viúva era não deixar transparecer aquela fisionomia de felicidade. Por causa disto, usava óculos escuros e teve de pingar colírio, para fingir lágrimas.. "Nos olhos,querida, nos olhos", dizia a irmã. Como se houvesse outra cavidade do corpo onde se pudesse pingar colírio.

Na missa de corpo presente, quando da elevação, foi preciso que alguém a avisasse para se ajoelhar. Obedeceu muito a contragosto. Queria evitar o estrago causado às meias , inauguradas naquela ocasião. Durante o velório, acontecera um ligeiro incidente, mas este foi logo abafado. Eram os gritos de um rapaz e de uma moça. Ninguém sabia do que se tratava. Pensaram que fossem de desespero. Não era nada disto. Era o acerto de contas entre o filho mais jovem e sua irmã . "O Toyota é meu, sua égua!" "Ra ra ra, só digo que tu és macho se repetires isto outra vez". "O Toyota é meu, sua puta!" "Te cala seu viado, vou te mostrar quem é a verdadeira dona do carro logo depois do enterro".

"Aceite os meus mais sentidos pêsames, madame. A perda de Juvenal é irreparável", dizia o agiota, a quem ele devia uma considerável importância. Os juros já ultrapassavam o montante do principal e ele sabia da bolada que a viúva iria receber. "Senhora, quero me solidarizar com a sua dor neste momento tão grave e tão sofrido", falou o senhorio da casa onde moravam. Aluguel defasado. Contava como certa a mudança da viúva para casa própria. No mais foram abraços de amigas, que em voz alta ofereciam solidariedade, mas segredavam parabéns pela libertação.

Naquele momento, apenas uma coisa a preocupava. Os gastos durante a longa enfermidade do esposo foram enormes; na farmácia a conta já passava de cinco mil. Se bem que o Plano de Saúde cobriria uma parte das despesas com medicamentos. E aquele funeral faustoso. Para que o enorme catafalco? Puro desperdício. O caixão poderia ter saído bem mais em conta, não fosse de madeira de lei, forrado de tecido caro. Afinal, quem diabo iria saber se o tecido era cetim, brim barato, ou até mesmo estopa? A empresa funerária não esperaria que ela recebesse o pecúlio. De onde tiraria o dinheiro? Da sua poupança? Como ficariam o açougueiro, o supermercado e, principalmente, o salão de beleza? E quando, afinal, terminaria aquela cerimônia chata que parecia nunca ter fim?

Apenas um vivente sofria naquela ocasião. Seus lamentos de dor e de saudade podiam ser escutados por toda a casa e até nas suas imediações. Procurava Juvenal, como um desesperado: no seu leito, no banheiro, na sala de jantar, na sala de visitas, em cada metro quadrado da casa. Nos primeiros três dias recusou qualquer alimento. Só os seus gemidos pareciam dar conta de que naquela residência havia morrido alguém. "Que gato mais chato, se continuar com estas lamúrias idiotas, some com ele daqui .E dá pra quem quiser". A empregada levou o importuno para o seu próprio barraco. E assim cessaram por completo os únicos resquícios de sentimentos e dor pela morte de Juvenal. E os aborrecimentos advindos da evocação da sua doença e das chateações que foram aquelas exéquias. A memória dele ainda ficaria viva por alguns meses. Mas foi só enquanto duraram as formalidades para o recebimento do seguro.

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