A Garganta da Serpente
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Em Maio, Sob A Cegueira

(Raymundo Silveira)

No dia em que o menino nasceu, o calor demorou a aparecer. Parecia presságio, no entanto, o parto não teve complicações. A mãe, devota de Nossa Senhora, já tivera outras três. Todas meninas, também chegadas na hora do frio. O pai ajudava. Quando veio a primeira, teve aflição. Daí em diante ganhou experiência. Era até capaz de prever o tempo que faltava, pelo tamanho da abertura. Aparada a criança, a primeira coisa que fazia, era apalpar a genitália, antes mesmo de cortar o cordão umbilical. Daquela vez não conteve um grito de alegria. Sempre quis ter um filho homem. Fez-se a sua vontade. Aliás, a vontade de todos: a mulher e as filhas também queriam um menino. Mas o primeiro a reconhecer foi ele. As outras só ficaram sabendo ao ouvir o alarido da sua felicidade.

A mais velha se aproximou para receber o irmão. E, ao dar banho, constatou uma criança forte, de bom peso, do tamanho do cãozinho, que criavam com a fartura das sobras. Radiante, apalpava os bracinhos, as pernas e beijava cada dedo, com carinho maternal. Desenhava a face, sentindo o perfil. Depois, limpou a boca, o nariz, os olhos, os ouvidos. E sorriu, surpresa, quando o bebê segurou firme o seu indicador. Uma feliz coincidência, pensou. E aquela família simples reconheceu que chegara o que faltava.

Moravam em pleno sertão . Eram autossuficientes. Plantavam e colhiam os alimentos. Teciam as próprias roupas. Andavam de pés descalços. Muito rezavam. O violão passava de mão em mão. A música era o único passatempo. Preenchia o lazer, enfeitava a casa. Nada mais faltava. À medida que o irmão crescia, as irmãs ajudavam na educação. Ensinaram como distinguir melhor o mundo ao redor, usando todos os sentidos. A desenvolver um raciocínio rápido. E, acima de tudo, cultivar uma intuição, quase um sexto sentido, que os fazia perceber a alma das coisas. Assim, desde cedo, ele aprendeu a reconhecer cheiro de fumaça e a saber que onde ela estava, o fogo também estaria. Cada alimento era identificado pelo sabor e pelo odor. Os utensílios domésticos, principalmente pelo tato. Os animais, pelo som que emitiam, pela textura da pelagem, ou das penas. Como os outros, apurou o olfato. Sentia o prenúncio da chuva no ar. E, como eles, adorava sentir as gotas na face, no corpo, rindo de contente, pela generosidade do seu Deus.

Contudo, aos poucos uma diferença se insinuou entre eles. O menino tinha uma estranheza, umas alucinações, de doido, que ocorriam sempre nas horas quentes. Apavorado, gritava à mãe que as coisas pareciam querer avançar sobre ele. Podia senti-las, de uma maneira inexplicável, sem pegar nelas, sem ouvir, sem cheirar, sem nada. E chorava, o pobrezinho, agarrado a quem perto dele estivesse. E escondia a cabeça até se acalmar. Nas horas frias, o delírio parecia dormir. E ele se aquietava. Voltava a se comportar como todos.

A princípio ficaram bastante preocupados. Porém, com o tempo, acabaram se habituando a conviver com essa inquietude. A vida corria simples. Trabalho e alegria se misturavam. Andavam sempre juntos e de mãos dadas. Tocavam guitarra, cantavam, assobiavam. A felicidade parecia morar ali.

Entretanto, a criança sofria a diferença, calada. E pedia a Deus que o livrasse da tormenta. Desesperado, passou a praticar atos, que faziam diminuir as aparições: voltava o rosto, o mais que podia, em direção à fonte de calor. E assim ficava, além do suportável. Aquilo era uma tortura. Mas, permitia um certo tempo sem a angústia das ocorrências. No mais, vivia esperando o tempo passar depressa, para chegar logo a hora do frio. Não suportava ficar sozinho a não ser quando o sereno caia, uma brisa fresca soprava e aquela quentura infernal desaparecia. Só então ele se sentia igual aos pais e às irmãs, pois as miragens desapareciam. Enquanto isto continuava esperando um milagre. O fim daquelas odiosas sensações.

A salvação veio de uma descoberta ao acaso. Era o tempo das novenas da Padroeira. Maio, "fins d'água". Foi um detalhe tão simples, tão fácil, mas, que mudou seu entendimento da vida. Começou no fervor da oração, quando, compenetrado, se entregava de coração ao louvor da Santa. Percebeu que quando fazia isso, mesmo durante o período quente, como num passe de mágica, deixava de ter as temíveis alucinações. E fez deste hábito o seu ideal. Adotava rotineiramente aquela atitude. O quanto suportasse, obstinadamente, com a certeza de ter encontrado o caminho. E, quanto mais praticava, mais se igualava aos outros e mais realizado se sentia. Até que, finalmente, chegou à perfeição de conseguir permanecer de olhos fechados e enxergar pra sempre a escuridão.

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