Aconteceu nos idos de 1968. Meu amigo era baixo e entroncado. Naquele tempo,
a polícia não costumava falar, antes de atirar. Nem depois! Era
Outubro. Andávamos a pichar as paredes da cidade. Tubos de spray, com
tinta preta e vermelha, nas mãos. E não era arte de rua, a que
hoje chamam Grafitismo. Era pichação mesmo. De revolta. De precisar
fazer alguma coisa. A juventude, dentro de mim, mandava agir. Embora, confesso:
eu me pelasse de medo. Qualquer ruído que lembrasse um veículo
e já me jogava no chão, certo de que vinha bala. Ele tinha o corpo
fechado. Surdo a tudo, assobiava seu medo enquanto escrevia nas paredes palavras
gentis contra o Governo. A revolta, que em reuniões indignadas, discutíamos
e projetávamos, repetida em eco, veladamente: "Abaixo a Ditadura".
Noite exagerada. De correria. De pulsar acelerado. De nos sentirmos brasileiros.
No fim, o corriqueiro prêmio: comer um "cai duro", com suco
de maracujá. Depois, merecidamente, dormir.
No dia seguinte fui colher os frutos da glória. Saborear a repercussão.
Revisitar o perigo. Voltar ao local do crime. Mas, uma surpresa estúpida
me esperava. O crime virou castigo! Tudo, absolutamente tudo o que o meu companheiro
pichara, expressava exatamente o contrário do nosso trato. "Abaixo
a Ditadura" transformou-se em: "Viva 1964". "O povo, unido,
jamais será vencido" tinha se travestido em: "Brasil, ame-o
ou deixe-o". Era um traidor. Meu amigo, comparsa de tantas aventuras, era
um traidor nojento! Um agente da repressão, infiltrado no movimento estudantil.
Quando o encontrei, mais tarde, o inimigo, além de tudo, correu. Covarde!
Foi a prova definitiva. Não havia mais dúvida: o baixinho era
"dedo duro". Depois, voltou a se aproximar, sorrateiro, e se fazendo
de inocente, me perguntou, com cara assustada, o que estava acontecendo. Fiquei
paralisado, sem saber o que dizer. Esperava, a todo momento, que chegassem os
homens para me prender. "Nada, baixinho. Não está acontecendo
nada". "Então por que tá me olhando com esta cara de
cobrador de vigarista?" Um de nós estava doido. Eu não, porque
sabia onde estava, o que ia fazer, o que tinha acontecido de madrugada e o que
tinha visto pela manhã. Então era isso mesmo: o coitado estava
maluco. Dei conversa, deixei que se abrisse: Disse que me acreditou sendo seguido.
Por isso tinha se escondido. Pra não piorar ainda mais as coisas, ficou
observando de longe. Então, em nome das incontáveis horas de amizade,
resolvi dar um crédito de confiança. Contei o que se passava.
"Que brincadeira besta é essa?" "Brincadeira, é?
Então vai dar uma olhada ali na Faculdade de Direito. Vê com teus
próprios olhos o que está escrito nas paredes". Eu vigiando
a chegada de policiais, me tremendo de medo e aquele assobio. Se era hora de
assobiar!
Não vou descrever sua reação. Basta dizer que ele voltou
mais amarelo do que uma flor de algodão. Pensando melhor, ele vinha mesmo
era da cor do próprio algodão. "Pelo amor de Deus, eu nunca
escrevi aquilo! Acredita em mim! Foi algum cabra safado, da direita, que apagou
tudo e escreveu de novo. Algum sacana reacionário e..." Quem se
tremia era ele. Muito mais do que eu, na noite anterior. Ficamos de bate boca.
De dúvida e juramento. De lembrar anos de cumplicidade e provas irrefutáveis.
Talvez houvesse uma razão psicológica, ou mesmo comportamental
pra isso tudo. Um caso raro , parecido com dislexia, sei lá. Muito difícil
de acreditar... Então, pra tirar a teima ficou combinado um ato extremo:
pichar o prédio do INPS, vizinho à Secretaria de Polícia.
O local era vigiado quase o tempo todo. O risco ia ser só dele. Se aparecesse
algum agente da repressão ia se entregar sozinho. Dizer que nem me conhecia.
Que eu estava passando ali por acaso. Fiquei com pena. Quase desistia. Mas era
uma luta muito perigosa, para ser compartilhada com alguém suspeito de
traição. Tive de aceitar.
Na hora combinada, a delegacia parecia uma trincheira. Só na calçada,
havia uns dez homens, armados até os dentes. Disfarçadamente contornamos
o prédio da Prefeitura, que ficava quase em frente. Eu queria surpreender
o baixinho, mandando pichar ali mesmo, para o caso dele ter armado alguma arapuca
contra mim. Mas tive pena. A situação era muito perigosa. Estava
exigindo demais. Não fosse aquela dúvida... Precisava acabar com
ela, ou não dormiria tranquilo. Seguimos para o local combinado.
Na mão, o papel com a ordem pra ser transcrita : "Fora, gorilas
fascistas!"
Desta vez ele não assobiava. Pelo contrário: parecia muito assustado.
Sacou o spray do bolso da calça e pichou. Fui conferir com uma lanterna
bem forte: Estampado ali, claramente, em letras vermelhas, garrafais, o descalabro:
"Pra frente Brasil!" Quando, estarrecido, me virei para o baixinho,
uma bala passou zunindo e se incrustou na parede, a poucos palmos das nossas
cabeças. Ambos disparamos em rumos opostos, como foi acertado, se a coisa
apertasse. Ele desapareceu dentro de um ônibus. Foi a última vez
que o vi.
Soube, através de outros companheiros, que acabou sendo preso. E que
na prisão sofreu todas as humilhações e maldades, que um
ser humano pudesse experimentar. Torturado até a exaustão. Repetidas
vezes. Dia e noite. Até que já não sabia quem era, nem
o que era coragem, ou lealdade. Vomitou nomes e endereços. Na dor, gritava
detalhes. Na súplica de que parassem, entregou tudo o que sabia. Finalmente,
quando já não sobrava mais nada, jogaram o fardo na rua, com a
recomendação de que sumisse, pois a próxima etapa seria
a morte. Parentes o mandaram para o exterior, onde vegetou, anos e anos, o desespero
de ter sido infiel aos seus ideais.
Entretanto, sua angústia poderia ter sido evitada, se certos fatos fossem
confrontados. A dolorida verdade é que os policiais nunca conseguiram
utilizar as informações. Pelo contrário, elas precipitaram
uma confusão, tamanha, que causou um rombo na inteligência dos
repressores. Eram verdadeiras, mas ao mesmo tempo não eram. Estavam todas
invertidas. Muitos companheiros escaparam das garras da ditadura apenas por
este motivo. Essa artimanha da sorte, essa sarcástica lição
ao presunçoso poder, embora involuntária, foi a remissão
do infeliz que, contudo, só ficou sabendo do ocorrido depois de mais
de vinte anos de angústia e culpa. Só depois da anistia, quando
ele retornou ao Brasil. Mas, aí já era tarde. Ele era só
a sombra do que poderia ter sido. Sua alma foi lavada. Mas a mancha permaneceu.
Renitente, sequela de se carregar pro resto da vida.
Perdi a conta do tempo. Nem lembro quantos anos se passaram. Mas, ao saber
que finalmente iria se casar, me deu vontade de reencontrar o passado. Resolvi
aparecer, mesmo sem convite. Cheguei cedo, para que ele me visse. Sabia que
iria gostar. Sentei bem no banco da frente. A noiva estava quase bonita, de
vestido curto. Não era nenhuma menina. A preleção do padre
durou pouco: Falou sobre amores construtivos e aquelas coisas que se falam em
casamentos. Eu mal ouvia. Fiquei lembrando a juventude. Logo chegou a hora tão
esperada. Aquela que todos estavam ali para testemunhar. Ver meu amigo ali,
com a fisionomia radiante de felicidade, me fez muito bem "É de
sua livre e espontânea vontade, aceitar a Maria Helena como sua legítima
esposa, sendo sempre fiel, na saúde e na doença, na alegria e
na tristeza, até que a morte os separe?" Então, transparecendo
todo o seu amor pela futura esposa, que o esperara por tantos anos, ouvi aquela
voz, embargada de emoção, dar a resposta mais importante de sua
vida: Não!