A Garganta da Serpente
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Malditas Verdades - Benditas Mentiras

(Raymundo Silveira)

Aconteceu nos idos de 1968. Meu amigo era baixo e entroncado. Naquele tempo, a polícia não costumava falar, antes de atirar. Nem depois! Era Outubro. Andávamos a pichar as paredes da cidade. Tubos de spray, com tinta preta e vermelha, nas mãos. E não era arte de rua, a que hoje chamam Grafitismo. Era pichação mesmo. De revolta. De precisar fazer alguma coisa. A juventude, dentro de mim, mandava agir. Embora, confesso: eu me pelasse de medo. Qualquer ruído que lembrasse um veículo e já me jogava no chão, certo de que vinha bala. Ele tinha o corpo fechado. Surdo a tudo, assobiava seu medo enquanto escrevia nas paredes palavras gentis contra o Governo. A revolta, que em reuniões indignadas, discutíamos e projetávamos, repetida em eco, veladamente: "Abaixo a Ditadura". Noite exagerada. De correria. De pulsar acelerado. De nos sentirmos brasileiros. No fim, o corriqueiro prêmio: comer um "cai duro", com suco de maracujá. Depois, merecidamente, dormir.

No dia seguinte fui colher os frutos da glória. Saborear a repercussão. Revisitar o perigo. Voltar ao local do crime. Mas, uma surpresa estúpida me esperava. O crime virou castigo! Tudo, absolutamente tudo o que o meu companheiro pichara, expressava exatamente o contrário do nosso trato. "Abaixo a Ditadura" transformou-se em: "Viva 1964". "O povo, unido, jamais será vencido" tinha se travestido em: "Brasil, ame-o ou deixe-o". Era um traidor. Meu amigo, comparsa de tantas aventuras, era um traidor nojento! Um agente da repressão, infiltrado no movimento estudantil.

Quando o encontrei, mais tarde, o inimigo, além de tudo, correu. Covarde! Foi a prova definitiva. Não havia mais dúvida: o baixinho era "dedo duro". Depois, voltou a se aproximar, sorrateiro, e se fazendo de inocente, me perguntou, com cara assustada, o que estava acontecendo. Fiquei paralisado, sem saber o que dizer. Esperava, a todo momento, que chegassem os homens para me prender. "Nada, baixinho. Não está acontecendo nada". "Então por que tá me olhando com esta cara de cobrador de vigarista?" Um de nós estava doido. Eu não, porque sabia onde estava, o que ia fazer, o que tinha acontecido de madrugada e o que tinha visto pela manhã. Então era isso mesmo: o coitado estava maluco. Dei conversa, deixei que se abrisse: Disse que me acreditou sendo seguido. Por isso tinha se escondido. Pra não piorar ainda mais as coisas, ficou observando de longe. Então, em nome das incontáveis horas de amizade, resolvi dar um crédito de confiança. Contei o que se passava. "Que brincadeira besta é essa?" "Brincadeira, é? Então vai dar uma olhada ali na Faculdade de Direito. Vê com teus próprios olhos o que está escrito nas paredes". Eu vigiando a chegada de policiais, me tremendo de medo e aquele assobio. Se era hora de assobiar!

Não vou descrever sua reação. Basta dizer que ele voltou mais amarelo do que uma flor de algodão. Pensando melhor, ele vinha mesmo era da cor do próprio algodão. "Pelo amor de Deus, eu nunca escrevi aquilo! Acredita em mim! Foi algum cabra safado, da direita, que apagou tudo e escreveu de novo. Algum sacana reacionário e..." Quem se tremia era ele. Muito mais do que eu, na noite anterior. Ficamos de bate boca. De dúvida e juramento. De lembrar anos de cumplicidade e provas irrefutáveis. Talvez houvesse uma razão psicológica, ou mesmo comportamental pra isso tudo. Um caso raro , parecido com dislexia, sei lá. Muito difícil de acreditar... Então, pra tirar a teima ficou combinado um ato extremo: pichar o prédio do INPS, vizinho à Secretaria de Polícia. O local era vigiado quase o tempo todo. O risco ia ser só dele. Se aparecesse algum agente da repressão ia se entregar sozinho. Dizer que nem me conhecia. Que eu estava passando ali por acaso. Fiquei com pena. Quase desistia. Mas era uma luta muito perigosa, para ser compartilhada com alguém suspeito de traição. Tive de aceitar.

Na hora combinada, a delegacia parecia uma trincheira. Só na calçada, havia uns dez homens, armados até os dentes. Disfarçadamente contornamos o prédio da Prefeitura, que ficava quase em frente. Eu queria surpreender o baixinho, mandando pichar ali mesmo, para o caso dele ter armado alguma arapuca contra mim. Mas tive pena. A situação era muito perigosa. Estava exigindo demais. Não fosse aquela dúvida... Precisava acabar com ela, ou não dormiria tranquilo. Seguimos para o local combinado. Na mão, o papel com a ordem pra ser transcrita : "Fora, gorilas fascistas!"

Desta vez ele não assobiava. Pelo contrário: parecia muito assustado. Sacou o spray do bolso da calça e pichou. Fui conferir com uma lanterna bem forte: Estampado ali, claramente, em letras vermelhas, garrafais, o descalabro: "Pra frente Brasil!" Quando, estarrecido, me virei para o baixinho, uma bala passou zunindo e se incrustou na parede, a poucos palmos das nossas cabeças. Ambos disparamos em rumos opostos, como foi acertado, se a coisa apertasse. Ele desapareceu dentro de um ônibus. Foi a última vez que o vi.

Soube, através de outros companheiros, que acabou sendo preso. E que na prisão sofreu todas as humilhações e maldades, que um ser humano pudesse experimentar. Torturado até a exaustão. Repetidas vezes. Dia e noite. Até que já não sabia quem era, nem o que era coragem, ou lealdade. Vomitou nomes e endereços. Na dor, gritava detalhes. Na súplica de que parassem, entregou tudo o que sabia. Finalmente, quando já não sobrava mais nada, jogaram o fardo na rua, com a recomendação de que sumisse, pois a próxima etapa seria a morte. Parentes o mandaram para o exterior, onde vegetou, anos e anos, o desespero de ter sido infiel aos seus ideais.

Entretanto, sua angústia poderia ter sido evitada, se certos fatos fossem confrontados. A dolorida verdade é que os policiais nunca conseguiram utilizar as informações. Pelo contrário, elas precipitaram uma confusão, tamanha, que causou um rombo na inteligência dos repressores. Eram verdadeiras, mas ao mesmo tempo não eram. Estavam todas invertidas. Muitos companheiros escaparam das garras da ditadura apenas por este motivo. Essa artimanha da sorte, essa sarcástica lição ao presunçoso poder, embora involuntária, foi a remissão do infeliz que, contudo, só ficou sabendo do ocorrido depois de mais de vinte anos de angústia e culpa. Só depois da anistia, quando ele retornou ao Brasil. Mas, aí já era tarde. Ele era só a sombra do que poderia ter sido. Sua alma foi lavada. Mas a mancha permaneceu. Renitente, sequela de se carregar pro resto da vida.

Perdi a conta do tempo. Nem lembro quantos anos se passaram. Mas, ao saber que finalmente iria se casar, me deu vontade de reencontrar o passado. Resolvi aparecer, mesmo sem convite. Cheguei cedo, para que ele me visse. Sabia que iria gostar. Sentei bem no banco da frente. A noiva estava quase bonita, de vestido curto. Não era nenhuma menina. A preleção do padre durou pouco: Falou sobre amores construtivos e aquelas coisas que se falam em casamentos. Eu mal ouvia. Fiquei lembrando a juventude. Logo chegou a hora tão esperada. Aquela que todos estavam ali para testemunhar. Ver meu amigo ali, com a fisionomia radiante de felicidade, me fez muito bem "É de sua livre e espontânea vontade, aceitar a Maria Helena como sua legítima esposa, sendo sempre fiel, na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte os separe?" Então, transparecendo todo o seu amor pela futura esposa, que o esperara por tantos anos, ouvi aquela voz, embargada de emoção, dar a resposta mais importante de sua vida: Não!

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