A Garganta da Serpente
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O Muro

(Raymundo Silveira)

Alguns passos depois de haver dobrado a esquina olhou pra trás. O homem também dobrou. Logo ao sair do hospital pressentiu estar sendo seguida. Nunca saía sozinha à noite, mas naquelas circunstâncias não havia como evitar. A chuva torrencial impedira de sair antes. Os ônibus estavam em greve. Por isso mesmo, e por causa da chuva, não havia táxis. O telefone da recepção estava bloqueado para chamadas; apenas recebia. Ainda faltavam vinte para as dez da noite. Morava a apenas quatro quadras de distância. A certeza de acompanhar outros transeuntes encorajou a ir a pé. Estava redondamente enganada. Vivalma. Só percebeu o homem caminhando a uns cem metros atrás quando se voltou por acaso. A princípio, imaginou se tratar de alguém na mesma situação. Apressou o passo e olhou outra vez para trás. O homem também apressara o seu. Procurou encontrar alguma casa onde bater à porta, porém só havia muros a cercar terrenos baldios.

O coração disparou e as pernas começaram a tremer. Além disso, pareciam pesar meia tonelada. Cada passada uma tortura. Lembrou-se do sonho que tivera há poucos dias correndo atrás da filha pequena em vias de ser esmagada pelo trem. No sonho, por mais que tentasse correr e se desesperasse, não conseguia sair do lugar. A sensação agora era a mesma. Sentia que se continuasse a caminhar naquele ritmo o estranho a alcançaria em poucos segundos. Ainda assim abreviou os passos e olhou, de novo, para trás. O homem também desacelerou. A angústia era tão intensa que não lhe permitia o menor traço de raciocínio. Então, decidiu parar, se entregar de vez e oferecer todo o dinheiro e o relógio. Contudo, um pensamento a aterrorizou: e se ele além do dinheiro e do relógio decidisse estuprá-la e depois matá-la? As cenas do chuveiro em “Psicose” entraram na mente juntas com um irreprimível pânico. Decidiu, então, correr enquanto olhava pra trás. O estranho também corria. Agora, as pernas, além de pesadas, doíam como se estivessem sendo transfixadas por parafusos. Iguais aos que usara ao fraturar o fêmur, ainda quando criança. Tentou gritar. Nenhum som escapava da garganta. Suava gelo, sentia falta de ar e o coração a sair pela boca. Estacou abruptamente por absoluta incapacidade de se mover. O homem correu para ela. “Dona, pelo amor de Deus eu lhe peço: deixe-me acompanhá-la!” “Quê?” “O muro, dona!”- e se tremia todo. “Que muro?” “O muro do cemitério: estamos prestes a passar por ele e eu sinto muito medo de alma, dona. Ainda mais a esta hora!”

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