"Parada! Diminua o fluxo de oxigênio, rápido. Duas ampolas
de bicarbonato. Ventimask... Não! Cânula traqueal... Correndo!"
"Calma doutor, aqui não há ninguém movida a eletricidade,
não". "Vá-se à porra... Faça depressa
o que estou dizendo e cale a boca!" A paciente foi admitida no centro cirúrgico,
sorrindo, a fim de ser submetida a uma operação cesariana com
hora marcada. Eliana tinha trinta e um anos e estava grávida do segundo
filho; o primeiro também nasceu através de cesárea. Durante
o pré-natal indagou ao Dr. Vinicius quais seriam as chances de vir a
ter o seu segundo bebê por via vaginal. O médico mostrou-lhe os
fatores favoráveis e os desfavoráveis. Entre estes últimos
o perigo de uma ruptura do útero. A decisão ficou para os últimos
meses da gravidez e seria tomada somente por Eliana após ouvir o marido
e outras explicações detalhadas do obstetra, inclusive a exibição
de dados estatísticos. Como era enfermeira, participou ativamente, interagindo
com o seu médico e discutindo, inclusive, detalhes técnicos. Sua
opção preferencial era pelo parto natural, porém como era
possuidora de uma personalidade madura, sensata, ponderada, jamais se arriscaria
a uma resolução precipitada, nem muito menos caprichosa. Mesmo
detendo subsídios técnicos para impor a sua escolha, jamais agiria
levianamente.
O ambiente na sala de operações, que dois minutos antes era de
total descontração, mudou bruscamente para uma situação
parecida com o que deveria se passar dentro da cabine de uma aeronave preste
a se espatifar contra uma montanha, depois que Eliana parou de respirar. Não
havia ninguém naquele recinto que estivesse com os batimentos cardíacos
a menos de 140 por minuto. O Dr. Vinicius estava na iminência de entrar
em pânico, pois os seus argumentos foram decisivos a fim de que a paciente
optasse por operação cesariana. Não se havia sequer esperado
pela vigência de contrações próprias do trabalho
de parto. Lá fora se concentravam Renato, o marido, o pai, a mãe
e dois irmãos de Eliana esperando a passagem do bebê em direção
ao berçário, como se estivessem num centro de estética
aguardando que ela terminasse de receber uma massagem nos cabelos.
Renato nunca deixou de acompanhar a esposa às consultas. "Mas doutor
Vinicius, não seria mais sensato se esperássemos que ela pelo
menos começasse a sentir as dores?" Não, Renato. Não
neste caso. Ela teve uma pequena infecção na parede abdominal
durante o pós-operatório da primeira cirurgia que, por sinal,
demorou muito a ser executada. Não sabemos exatamente como estão
as condições da cicatriz do útero. Ademais, nunca se pode
prever em que situação, a que horas e onde estaremos eu e a minha
equipe naquele momento imprevisível; como você sabe, assisto muitas
parturientes." "Desculpe, doutor, mas estive lendo que as primeiras
contrações são decisivas para um bom amadurecimento dos
pulmões do nenê e..." "Bem, minha querida, já
que você pensa assim, esperaremos; não queria infundir-lhe nenhum
temor, mas é minha obrigação preveni-la de que no caso
de surgir alguma complicação - principalmente da gravidade de
uma ruptura do útero - você deverá me isentar de qualquer
responsabilidade." "E quanto à anestesia, o senhor acha que
os riscos são os mesmos daquela que eu receberia se o parto fosse normal?"
"Bem neste caso posso afirmar com segurança que são absolutamente
iguais".
Havia três minutos que Eliana parara de respirar. Os lábios e as
unhas estavam da cor de uma azeitona roxa. A injeção de bicarbonato
de sódio não perecia ter surtido efeito algum. Dr. Marcelo, o
anestesista, tentava introduzir a cânula na traqueia de Eliana,
mas ainda não havia conseguido; como esta fosse portadora de um pescoço
demasiado curto, esta manobra se tornava um pouco mais difícil. "Outra
cânula, rápido. Esta não presta!" O doutor Vinicius
estava prestes a descalçar as luvas e a interferir, embora não
soubesse como e o que fazer, então decidiu logo que seria inútil.
Neste momento ele começou a sentir fortes dores à altura do peito
esquerdo e a respirar com um certo desconforto. Doutor Marcelo, o anestesista,
exibia sinais de estresse intenso, mas não perdia o controle da situação.
O médico auxiliar chamava-se Marco Antônio e era o único
que parecia absolutamente calmo, embora estivesse também com o coração
a 140 batimentos por minuto. Enquanto isto o eletrocardiograma do monitor passou
a exibir sinais de grave arritmia.
"Bem doutor, se o senhor fala assim, claro que estou decidida - me submeterei
à cesárea." "Ótimo. Vamos marcar, então,
para domingo próximo pela manhã. Antes, porém, gostaria
que você fizesse mais um ultrassom apenas para avaliarmos o grau de maturidade
e o estado do feto. Como hoje é quinta-feira há bastante tempo.
Enquanto isto, tratarei de convocar a minha equipe". "E quem será
o anestesista?" "Deixe este detalhe comigo. Posso responder pela qualificação
de todos os meus auxiliares".
Havia mais de cinco minutos que Eliana não respirava. O monitor eletrocardiográfico
exibia agora um traçado típico de fibrilação ventricular
- o último estágio antes de uma parada cardíaca. O Dr.
Vinicius, além da dor, suava frio, encontrava-se lívido e a falta
de ar aumentara. "Passei a cânula, dê-me a conexão com
o oxigênio, mas mantenha a pressão inicial; nada de abrir a válvula
e..." Neste exato instante o monitor do eletrocardiograma exibiu uma única
linha configurando ausência completa de qualquer batimento do coração.
"Parada cardíaca", gritou o doutor Marcelo, também na
iminência de entrar em pânico. Marco Antônio, o auxiliar,
pediu calma, se dirigindo mais ao pessoal da enfermagem do que aos seus próprios
colegas, pois sabia da inutilidade das suas palavras. "Por favor, tragam-me
um costótomo". Costótomo é uma tesoura muito
fornida destinada a cortar ossos. "Estás maluco? Para que queres
um costótomo?" "Doutor Vinicius, desculpe-me, mas saia daqui.
O senhor não passa bem. Deixe tudo comigo".
Marco Antônio apanhou o bisturi e fez uma longa incisão na pele
sobre o lado esquerdo do peito de Eliana. Depois apanhou o costótomo,
cortou quatro costelas, afastou músculos e outras estruturas moles e
introduziu a mão direita diretamente no tórax da paciente, apanhando
o coração e passando a executar massagens ritmadas. Enquanto isto,
Marcelo continuava a tomar medidas extremas a fim de tentar corrigir a parada
respiratória. Foram mais três minutos que pareceram a eternidade.
A única pessoa que mantinha a calma era o doutor que se encontrava literalmente
com o coração na mão. Coração da paciente,
sim, mas na mão dele. Depois deste tempo o monitor passou a exibir pequenos
sinais de atividade cardíaca e após mais dois minutos voltou a
assinalar batimentos no mesmo ritmo inicial. A respiração também
se restabeleceu. Restava apenas aguardar se teriam havido ou não danos
irreversíveis no cérebro da paciente devidos ao longo período
que passou sem receber oxigênio. Somente o tempo diria se ela voltaria
a ser a mesma Eliana ou se viraria uma planta.
(29/04/2004)