A Garganta da Serpente
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Psicose À Francesa

(Raymundo Silveira)

Não dormia há uma semana. Não comia há nove dias. Não se banhava nem se barbeava há doze. Permanecia trancafiado por conta própria, em uma água furtada próxima a Montmartre, sempre deitado de costas com o olhar fixo no teto. Já tivera ideais, planos, projetos e, finalmente, ilusões. Agora nada mais restava. Sua única fonte de prazer era as masturbações compulsivas, praticadas a intervalos cada vez mais frequentes, quase sempre sob o domínio de mórbidas fantasias. Ora ejaculava sobre "vísceras de um cadáver de mulher em adiantado estado de putrefação". Outras vezes o fazia imaginando-se alvejado no próprio ventre pelos tiros disparados de uma pistola empunhada por uma prostituta despida. Noutras, ainda, as parceiras imaginárias eram a sua irmã ou mesmo a mãe.

Eventualmente, levantava-se para urinar, mas na maioria das vezes fazia isto no próprio leito. Morava sozinho no cubículo miserável de um prédio quase em ruínas situado na Rue de Dunkerque, cujo aluguel há quatro meses não pagava por absoluta carência de fundos, ânimo, interesse, conveniência e perspectiva de consequências. Tudo lhe era indiferente, exceto os atos solitários obsessivos. Baratas e até mesmo ratazanas, não muito raramente, passavam-lhe sobre o corpo, mas ele permanecia absolutamente apático também quanto a isto. No domingo pela manhã desceu ao rés do chão, portando um volumoso saco plástico de cor parda e deixou o prédio, dirigindo-se à Gare du Nord onde entrou no métro, chamando a atenção de todos os passageiros. Desceu em Barbès Rochecouart, fez conexão para La Chapelle, onde apeou. Subiu a escadaria do Sacré Coeur e entrou na Basílica no instante exato em que o coro entoava o Cântico da Comunhão:

"Le pain du ciel nous est donné/ C'est Lá le banquet véritable/ L'agneau pour nous s'est immole/ Et Dieu nous invite a Sa table!"

Pegou a longa fila de fiéis e - ao chegar a sua vez -, comungou sem afetar nem dissimular piedade. Deixou a Basílica, antes do término da celebração, pela mesma porta por onde entrara. Desceu metade da escadaria onde parou e se masturbou publicamente para quem quisesse olhar, aconchegando o misterioso saco plástico contra o peito com a outra mão. Retirou o preservativo cuidando para que o sêmen ficasse aí recolhido; deu um nó e pôs no bolso direito da calça. Quando estava abotoando a braguilha, o coro ainda cantava a aclamação eucarística:

"Dieu caché, je Vous adore en Ce sacrement ! / Je ne vois qu'un peu de pain, mais je crois pourtant:/ Qui pourrait douter de Vous, maitre souverain,/ Quand Ce corps nous fut livre deVos propres mains?"

Desceu os degraus restantes. Voltou a tomar o métro em La Chapelle e seguiu para Père Lachaise. Pegou um mapa à entrada do cemitério, continuou a andar, orientando-se por ele, até alcançar o túmulo de Edith Piaf. Retirou um minúsculo "walkman" do bolso traseiro; colocou os "headphones"; acionou a tecla "play" e os sons de "La Vie en Rose" ecoaram em seus ouvidos a todo o volume. Pegou o preservativo e rasgou-o bruscamente, despejando todo o seu conteúdo sobre o jazigo da cantora, onde também se sentou.

Quando a música terminou, levantou-se e saiu serenamente do campo santo como se houvera acabado de fazer uma prece pela alma da artista Tornou à estação do métro procurando orientação pela linha Galliéni/Pont de Levallois. Seguiu em direção ao terminal Becon, mas desceu em St-Lazare. Essa estação é movimentadíssima, mas os olhares do público eram-lhe completamente indiferentes. Saiu da Gare pelo portão que dá acesso à Rue de Rome, por onde seguiu, após dobrar à esquerda. Foi ter à Rue St-Lazare e, através dela, chegou ao Bouleverd Haussmann. No cruzamento deste com St-Augustin, virou novamente à esquerda e continuou andando até chegar ao Bd Malesherbes, ao longo do qual, após cerca de três quartos de hora de caminhada, alcançou a Place de la Concorde.

Urinou, despreocupadamente, dentro de um recipiente de vidro, junto ao obelisco, encoberto parcialmente pela fonte, após atravessar, perigosamente, um caótico fluxo de veículos que circulam em alta velocidade naquelas imediações. Aproximou-se da estátua símbolo da cidade de Lille - quase em frente à entrada de acesso para os Esgotos -, aspergindo-a com urina em todas as direções. Seguiu pelos Champs-Elysées até a Etoile onde pôs o misterioso saco plástico junto à pira perpétua em homenagem ao Soldado Desconhecido. Desceu para o subterrâneo e embarcou outra vez no métro em direção a Nation, mas desceu na estação de Bir Hakeim. Subiu para a Avenue de Suffren e dirigiu-se para a Torre Eiffel. Entrou no elevador e saiu no segundo estágio. Aproximando-se da amurada de proteção - e nem sequer reparando na paisagem deslumbrante diante de si -, elevou-se se sustendo nos próprios braços, sentou-se de costas e deixou-se cair no vazio.

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