Um ébrio é alguém que acha muito lógica a gargalhada
de um defunto se fingindo de morto, conquanto esteja convencido de que está
morto mesmo... Embora, às vezes ache que não está. Um sóbrio,
por sua vez, é aquele que, mesmo vendo com os próprios olhos um
cadáver morrendo de rir, não acredita ou finge ignorar. Dizem
não existirem bebuns que não sejam chatos, mas há os chatos
e cinquenta e nove minutos... Era um destes. Morreu de quê? Já
vinha doente? Tava com quantos anos? Peraí... Ele num tá morto,
não... Está rindo. Não é raro um morto rir, mas
esse tá vivo. Será que ninguém vê? O velório
era numa funerária. A família, constrangida, não se dispunha
a pô-lo no olho da rua: era filho de um figurão da política,
muito influente e amigo. Curioso, eu não bebera nada além de um
copo de água, mas vi o que vira o bebum: o morto, de fato, se sacudia
de tanto rir. E também não acreditava que estivesse morto.
Não sabia que atitude adotar. Cuidei estar sonhando. Depois de muito
pensar, tive uma ideia: afastei-me para um quarto isolado, tranquei-me
por dentro, dei corda num despertador e ajustei para alarmar dentro de cinco
minutos. Não. Não estava dormindo. Depois cogitei: talvez eu estivesse
bêbado quiném o bebum. E, apesar da minha longa experiência,
não me ocorria uma maneira de testar, com absoluta precisão, se
estava ou não embriagado. Tive outra ideia luminosa. Sentei-me
ao computador e redigi um texto sobre este tema, ou seja, como comprovar ou
afastar a embriaguez de alguém. Telefonei para o meu antigo professor
de redação, li o texto enquanto ele escutava com paciência
e deu o veredicto: fique tranquilo, você não está embriagado.
Se não tivesse feito o propósito de nunca mais beber, ia tomar
um drinque para ter a coragem do bebum e falar com um dos filhos ou com a viúva.
Meu único receio era me julgarem louco ou bêbado também.
Diante do impasse, enfim me dispus. Não podia ficar calado. Tinha de
falar com o mais velho de quem sou íntimo. Levei-o para um local afastado.
Reconheço que o momento é grave e só em dizer isso me sinto
idiota. Sei também o quanto já estás cheio da conversa
chata daquele bêbedo. Como sabes, não bebo há mais de cinco
anos. Espero, portanto, que me leves a sério e não presumas uma
recaída... O que há, amigo? Para que todo este arrodeio? Bem,
vou ser direto: estou vendo a mesma coisa que o bebum diz estar vendo.
E quem não está? Desculpa, aqui não tem cego. Todos estão
vendo. Então, não achas que... Que ele pode estar vivo? Absolutamente,
não. Só aquele bebo imbecil insiste nesta fantasia. Temos o atestado
de óbito. Foi redigido por dois médicos competentes e está
registrado em cartório. Não me venhas dizer que duvidas de um
atestado de óbito assinado por dois médicos idôneos. Bem,
talvez tenha sido tão imbecil quanto ele... Afinal não devia ter
me deixado influenciar pelas asneiras ditas por um embriagado. Ainda assim,
ousaria insistir: deves chamar outro médico para examinar o cadáver
do teu pai. O que é isso, homem! Deixa-me cheirar tua boca... Só
podes ter bebido. Ou, como tu próprio disseste, se deixado influenciar
pela conversa daquele bêbedo chato. Vou mandar pô-lo pra fora, embora
correndo o risco do ressentimento dos pais... Tudo bem, espero não ter
contribuído para tornar mais doloroso este momento tão difícil...
Não. Resolvi te atender. Menos por não ter certeza do óbito,
mas para te dar uma demonstração da minha consideração
por ti e pela tua amizade.
Está morto, sim, não há dúvida. Rir ou deixar de
rir não é sinal de vida ou morte. Alguém acaso já
viu um gato vivo rindo? Diante de argumento tão sólido ninguém
ousou contestar... Ou quase ninguém. Eita, doutorzinho incompetente...
Onde já se viu precisar de médico pra saber que um morto tá
vivo? Assim que eu cheguei vi logo... Foi a gota d'água: o bêbado
foi retirado quase à força do recinto. Enfim, todos viram o defunto
rindo. Só o ébrio ousou dizer, que estava vivo. Conquanto pudesse
também estar convencido de que estivesse morto. Não se tocou mais
neste assunto, mesmo depois do enterro.
(13/11/2005)