Para ele o tempo não existia. Certo, percebia quando era manhã,
tarde e noite. Mas a manhã seguinte não era o dia seguinte, e
sim, a mesma manhã. Que se continuava com a mesma tarde e a mesma noite.
Comparado com um indivíduo comum, aparentava cerca de quarenta e poucos
anos. Mas sempre foi assim. As variações de alguns verbos aqui
empregados só serão válidas para o narrador e para os demais
personagens dessa história. Para ele o verbo ser, por exemplo, só
possuía uma flexão: sou. Conquanto, para terceiros, também
fosse seja, és, é e sois. Excepcionalmente, se estivesse
acompanhado, poderia vir a ser somos e são. Já com o verbo
estar não era bem assim... Portanto, um sujeito (não sujeito ao
tempo) singularíssimo. Ninguém poderia dizer que fosse mortal,
pois para falar da prova concreta, teria de ser no presente. Não faria
sentido dizer: você será defunto. Pois não possuía
futuro. Então, só haveria lógica quando alguém,
ao se referir à sua condição de morto, dissesse: você
é defunto. Como a sintaxe e a semântica proíbem essa
expressão, pelo menos gramaticalmente, era imortal. Conheci-o numa comemoração
de aniversário. Frequentava essas festas por duas razões:
vanglória e carência afetiva.
Já tive idade suficiente para ser seu neto, filho, irmão. Hoje,
tenho para ser seu pai. Aparentemente, somos apenas bons amigos. Conheço,
por conseguinte, traços marcantes da sua personalidade. Às vezes
ficamos noites inteiras a conversar. Por mim, ficaria mais. Porém, quando
está preste, segundo ele, a "hojecer", sai ou me manda
embora. As manhãs de sono são sagradas. Certa vez começou
a chover. Encontrávamo-nos no caramanchão, e um cheiro charmoso
de chão enxaguado pela chuva enchia-nos de natureza. Falávamos
da vida. Dizia eu: não passa de uma viagem sem origem nem destino. Logo,
a familiaridade entre os semelhantes deveria ser igual à de eventuais
passageiros durante uma jornada. Não penso assim. Se tivesse de fazer
alguma comparação, faria com um hospício. No meu caso,
com um sanatório onde sou um interno perpétuo a assistir à
chegada e à partida dos enfermos. Então, entre mim e os demais
pacientes praticamente inexiste qualquer afetividade. Sou apenas o espectador
de um filme cuja exibição nunca termina. Embora, não tenha
de ser necessariamente assim do ponto de vista deles.Você, por exemplo,
se considera meu amigo. E esse comportamento é unilateralmente pertinente.
Ou seja, você é meu amigo. Quanto a mim, não posso ser seu
amigo. Isso, de modo algum compromete o nosso relacionamento. Talvez a metáfora
pareça presunçosa, mas na verdade, para você eu sou uma
espécie de divindade: um deus, se preferir. Para seu consolo, um deus
às avessas. Isto é, antes de ser reverenciado, reverencio. Pois,
como já demonstrei, sou um alienado efetivo, enquanto vocês são
interinos.
Tenho algumas vantagens. Enquanto competem desesperadamente entre si por algum
lugar de destaque, eu não preciso competir. A perenidade me é
favorável, neste aspecto. Pois quem é eterno não se preocupa
com o amanhã. Simplesmente porque o amanhã inexiste. Como inexistiu
o ontem. E não sentes tédio? Talvez, mas o que representa o tédio
diante do sofrimento dos outros homens vendo o tempo escoar com uma irreversibilidade
implacável? Qual a importância do tédio quando lhes assisto,
desesperados, tentando inutilmente, senão vencê-lo, pelo menos
acompanhá-lo? Nada mais ridículo. E uma crueldade mórbida
me diverte quando assisto a essa correria. Há tanto prazer em deleitar-me
durante uma tarde inteira com esse burlesco Grand prix, que compensa permanecer
um dia inteiro sentindo tédio. Aliás, quase nunca o sinto: basta
fomentar em mim próprio o desejo de apreciar este espetáculo.
Certamente, cuida, não sem um pouco de razão, que sou impiedoso.
Veja a outra face da moeda. Em verdade, poucos prefeririam estar no meu lugar.
Vocês possuem, em maior ou menor grau, três virtudes. Então,
de certo modo, são felizes. A maioria tem Fé. Eu sequer a imagino.
Se ter fé for acreditar em algo transcendental, não a tenho nem
posso ter. Não há azo nem acaso. Todos têm esperança,
salvo em situações excepcionais, como numa doença grave
do humor. Jamais experimento tal sensação. Um quando, para
vocês, significa vida. Para mim, um quando não passa de
um advérbio tão banal quanto um como. Caridade é
um palavrão. Quem a pratica geralmente o faz para aplacar a dor da consciência.
Eu não preciso aplacar nada. Simplesmente ignoro o vocábulo remorso.
Então, é impossível sentir a paz que vocês sentem
quando a praticam ou fingem praticá-la.
Meu amigo e eu ficamos pensativos. Meditando sobre as suas últimas palavras,
daria tudo para saber o que ele meditava. Enquanto isso, a chuva chapinhava
chorosa sobre a chapa cheia d'água girandolando no ralo do jardim. Você
sofre? Veja. O maior castigo de existir é a consciência da morte.
Deste mal eu não sofro, pois ignoro se vou morrer. Depois deste sentimento,
a dor maior é o anseio das coisas e das causas inexoráveis. A
nostalgia do que jamais existiu. O desejo de que tudo tivesse sido diferente
e melhor. A saudade de não ter sido o que não se foi. Sob este
aspecto, também não sofro, pois não tenho passado. Mas
seria leviandade declarar que não me atormento. Como todas as pessoas,
estou sujeito a dores físicas e emocionais. Não preciso competir,
mas sinto necessidade de me autoafirmar; de ter autoestima. Ou não
seria humano. Como nem sempre isso é possível, sinto frustrações.
Logo, também sofro. O que é a Primavera? Um lugar. Um caminho
arborizado e orlado de flores, por onde viajo e, às vezes, me detenho.
Para depois continuar por outros menos floridos, mais chuvosos, ou menos úmidos.
Então, as estações do ano de vocês, para mim são
estações ferroviárias. O que para os outros é tempo,
para mim é espaço.
Já estava quase "hojecendo". Como ainda chovia, cuidei
que não percebera. O parto do sol seria mais demorado. Aproveitei. O
que mais incomoda um homem sem tempo? Não comemorar aniversários,
logo, não receber presentes. Não saber o significado das palavras
reveillon, século, calendário, agenda, nem da frase feliz ano
novo. Não ter direito de passar na frente numa fila. Não se
aposentar. E o que mais dá prazer, descontando presenciar o espetáculo
da competição alheia e não temer a morte? Não ter
de esperar o fim do mês para receber salário, nem o fim de semana
para ir à praia ou ao cinema. Ignorar o que significam as expressões
"ficar velho" e "bug do milênio". Não precisar
fazer a barba, não cortar o cabelo, nem aparar as unhas...