A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Senha Não Confere

(Raymundo Silveira)

Nunca anotou senhas. Tinha um recurso infalível para memorizá-las, ainda que trocasse a cada semana. Escolhia um dia especial dos meses terminados em BRO, seguido do ano corrente. Se necessário, invertia os algarismos ou as combinações. Como zelava bastante pela integridade das suas transações bancárias, atualizava os dados com frequência. Foi o que fez pouco antes de viajar para o exterior. Há muito tempo só utilizava o 12 de Outubro, o 15 de Novembro e o 25 de Dezembro. Por isso, para garantir ainda mais a segurança, decidiu pela data da Independência. E digitou duas vezes: 07091992. E viajou tranquilo. Com um cartão de crédito sem limite e com dinheiro suficiente apenas para as pequenas despesas dos primeiros dias.

Na noite do Sábado seguinte já estava em Paris há uma semana. Os Francos que restavam não chegavam sequer para o bilhete do metrô. Então, foi caminhando do hotel para a Operrá, onde havia um caixa eletrônico. Inseriu o cartão, digitou um número e esperou. "Senha não confere". Não se preocupou. Enganos acontecem. Retirou o card e inseriu novamente: "Senha não confere". Um leve sobressalto. Repetiu a operação meia dúzia de vezes com idêntico resultado. Começou a suar frio e a ter palpitações. Para aquela data já tinha contratado, e pagado antecipadamente, uma empresa de turismo para um programa especial: "Paris à Noite". Bebidas e alimentos não estavam incluídos no pacote. Pensou em desistir. Sentado no hall do hotel, via os demais integrantes do grupo, embarcando. Foi demais. Decidiu ir também.

No "Crazy Horse" a primeira providência foi perguntar, em inglês, se aceitavam cartões de crédito. Não falava francês. "Certainly, sir. But you need to type your password". "Seria possível testar antes? Um caixa eletrônico acabou de recusá-la". O garçom olhou-o desconfiado. E chamou o Maître. "Estou disposto a pagar mesmo sem ter consumido nada". "A moment, please". Trouxe o gerente. "A menos que faça qualquer despesa, infelizmente não é possível". "Faço, porra. Quero só pagar adiantado". Como ninguém conhecia este substantivo, acharam que era uma forma cordial de tratamento lá em "Buenos Aires". (Pensavam que a capital do Brasil era a terra do Gardel). Trouxeram a maquineta. Digitou 0791992, suplicando a todos os santos para que desta vez fosse bem sucedido. "Senha não confere". O gerente só suportou esperar pela terceira tentativa. "I'm so sorry, sir. You can't pay anything with this card. Try another one".

Desta vez não falou, só fez pensar: "Só se for o outro que a tua mãe me emprestou, your mother fucker". Passou a noite inteira sentado a uma mesa junto com dois casais. "Sou abstêmio e já jantei. Não quero comer nada. Também não bebo refrigerantes. Nem água!" Foi logo dizendo, com a cara amarrada, quando um dos companheiros perguntou se não gostaria de um aperitivo. Diante daquela grosseria ninguém mais ousou lhe dirigir qualquer palavra.

No dia seguinte, depois de uma manhã de "lutas e tempestades", conseguiu uma ligação pra casa. A cobrar, of course. "Estou desesperado. Não tenho um puto. Minha senha não é aceita em lugar algum!" "Aqui já é noite. E hoje é Domingo. Não há o que fazer. Que horror..." "Amanhã muito cedo vá ao Banco e conte tudo..." "Muito cedo, impossível. O Banco só abre às dez. E dez aqui, são três da tarde aí..." "Meu Deus, isso não pode estar acontecendo. Vou passar o tempo trancado no quarto. Não vou almoçar. Embora o hotel aceite vales, não sei se posso pagar depois. Até as diárias... A menos que... Nada! Aguardo o seu telefonema". A menos que a merda da senha fosse aceita, quis dizer. Mas não disse. Pra quê? Estava com mais ojeriza a esta palavra do que com ódio antecipado da sogra que diria quando voltasse (se voltasse): "Num disse? Bem que te avisei. Boa romaria faz..."

Às três e meia em ponto tocou o telefone. "A tua senha é a seguinte, anota aí..." "Não precisa. Basta dizer que eu sei logo se estou digitando certo". "Então tá... A numeração é 07091992". "É com esta mesmo que venho tentando desde Sábado à noite". "Tem certeza?" Este tem certeza, quando se tem mesmo, irrita mais do que pingo de goteira na testa de quem está deitado, morto de sono, e não consegue dormir. "Claro que tenho. Faz mais de dez anos que gravo, regravo e desagravo através de um método infalível, ora essa. A atual é Sete de Setembro de 1992". "O quê? Ficou louco?" "Fiquei não! É isto mesmo: 0791992". "Péra. Está err..." Já tinha desligado.

Estava caindo de fome. A última refeição tinha sido ao meio dia do Sábado. Então, decidiu ir mais uma vez à Operrá. No caminho, vários bistrôs. Ver as pessoas comendo e sentir o cheiro dos alimentos fazia-o salivar. Em cada esquina um espeto de kebab. Era louco por kebabs. Encheu-se de kebabs. Quer dizer, da fumaça deles. Encheu-se mesmo foi de esperanças. Faltou pouco pra não se ajoelhar aos pés do quiosque. "Não confere, não confere, não confere". Agora o desejo era o de destruí-lo a machadadas. Aliás, melhor a dinamite.

Subiu a Avenida da Ópera e foi ter a uma loja cujo gerente o conhecia. "Monsieur Marcel, está on vacation. Posso ser útil?" Podia, sim, seu viado. Mas não vai... Pediu água, mesmo sem estar com sede. Bebeu três copos para encher o estômago e tentar diminuir a dor da fome. A caminho do hotel, sentiu uma vontade louca de mijar. Entrou num bistrô. No topo da escada que dava acesso ao toalete, uma velha com cara de pitbull. "Vai só urinar ou..." "Só urinar". "Então são apenas cinco francos". Aliviou-se mesmo nas calças. Em pleno Boulevard des Italiens...

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br