A Garganta da Serpente
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A Tortura

(Raymundo Silveira)

"Abre essa xoxota, sua porra!" "Aaaaiiiiiiiiiiiiii!" "Vais contar quem foi que assaltou o Banco ou preferes que esta tua buceta fume mais cigarro com a ponta pra dentro?" "Não sei de nada. Já disse, não sei de nada!" Juliana fora presa durante o estouro de um "aparelho" na noite de um Sábado. Já era o final da tarde da terça-feira, mas ela não sabia. Aliás, não sabia de nada. Quantas horas já fazia que estava sendo torturada, se era dia, noite ou madrugada, até quando iria suportar aquele sofrimento e nem por que estava ali. Fora ao "aparelho" chamada, por telefone, pelo namorado. Sabia que ele atuava como guerrilheiro, mas ignorava completamente os detalhes das operações. Ele nunca lhe contava nada por medida de segurança. Segurança para ambos, dizia quando ela insistia em querer saber tudo. A "segurança" de Juliana foi uma viatura da repressão cheia de detetives que haviam interceptado o telefonema e a sequestraram. Tinha vinte anos, um filho de dois e meio e era separada.

Via-se agora estendida num catre imundo. Ao seu lado, quatro brutamontes, (quatro); dois seguravam-lhe e abriam as pernas; um terceiro sentava em cima da sua barriga e o outro lhe introduzia a ponta acesa de um cigarro na vagina. O que estava sentado em cima dela enchia-lhe a cara de porradas e repetia: "Fala logo sua puta; não me faz perder tempo porque tenho de levar minha filha ao cinema. Hoje está passando "O Mágico de Oz" e ela não quer perder por nada deste mundo. Mas se tu não falares, não pensa que vamos te deixar em paz. Vem chegando aí outra equipe de 'cirurgiões' muito mais habilidosa do que a nossa. Por isto, para o teu próprio bem, fala logo!" "Aaaaaaiiiiii!" Mais tapas, mais humilhações mais pontas de cigarro acesas na vagina. Havia um prazer perverso e doentio na face de cada um deles. O que introduzia a brasa do cigarro teve uma ereção e queria estuprá-la. Mas os outros três o impediram: "só depois que a puta falar os nomes dos cinco assaltantes".

Juliana fora presa em Dezembro de 1969. Havia pouco mais de um mês que fora assassinado o líder comunista Carlos Marighela. Alguns frades tinham sido presos e também estavam sendo submetidos a torturas. Ela podia ouvir os gritos deles a alguns metros de distância. "Por favor, eu não sei de nada. Perguntem àqueles homens que estão gritando. Eles devem saber aquilo que vocês querem. Me larguem". Um brilho de excitação feroz surgiu na face de cada torturador. "Ir perguntar a eles é?" E gargalhavam. "Se tu soubesses o que vamos fazer agora, contaria tudo bem depressa e eu ainda teria tempo de te comer antes de levar minha filha ao cinema. Teu filho está aí fora. Vai te preparando para te divertires um pouco enquanto assistes ao que vamos fazer com ele". "Nããããããooooooo!" E desmaiou. Atiraram-lhe baldes de água com gelo e a muito custo retomou a consciência. "Ronaldo, meu filho. Eu quero o meu filho." "Calma! Vais vê-lo já. Mas te prepara porque ele não está parecidinho nem um pouco com o Ronaldinho que estavas habituada a ver todos os dias". "Não, não! Parem. Eu conto tudo, tudo!" E desmaiou novamente.

Recuperou a consciência enquanto ouvia um dos torturadores a falar: "porra! Logo hoje que tenho de levar minha família a uma reunião natalina. Se esta égua não falar agora vou matá-la, mas a minha festa de Natal eu não vou perder por nada deste mundo." "Cara, mas a equipe do Zé da Mata não vem aí? Deixa com ele. Garanto que os agentes resolverão isto logo, logo!" '"É, mas depois vão nos gozar dizendo que somos umas merdas, que não somos machos, que não conseguimos dobrar uma...Uma... Vaca escrota". "Vamos experimentar um charuto aceso; se esta puta não falar eu acabo com ela".

Juliana resistiu. Mas ficou inválida para sempre. Não acabaram com ela simplesmente porque chegaram à conclusão que não sabia mesmo de nada. Isto é, não acabaram com o corpo dela, mas lhe destruíram a paz. Passaram-se quase trinta anos. O ex-namorado havia sido banido do território nacional e morreu no exílio. Ela estava agora com cinquenta e um, mas, apesar do inferno emocional, aparentava bem menos. Conheceu, pela Internet, uma pessoa num estado do Sul e namoraram várias horas todos os dias durante oito meses. Ficaram perdida e virtualmente apaixonados Mais tarde marcaram um encontro. Ele veio para a cidade dela e, de fato, se encontraram. Não! Não se tratava de nenhum dos torturadores. Era apenas o irmão de um deles.

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