A Garganta da Serpente
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O Vendedor de Vaidades

(Raymundo Silveira)

Manuel Ferreira tinha mais de um milhão e meio de unidades monetárias da vez e do dia em que isto aconteceu. Tinha também muita vontade de ganhar mais, um filho (o Bezim), e inúmeros inimigos. Por causa da sua fortuna se sentia com o direito de mandar em todos: no padre, no juiz, no médico, no advogado, no farmacêutico, no cachorro e na ralé; exatamente nesta ordem. Ralé, para ele, eram todas as pessoas que não tivessem dinheiro e nem os membros das categorias profissionais supracitadas. O que ele não tinha era compaixão para com o próximo, coragem de gastar e vontade de tomar banho. "Meu filho, seja tudo na vida: ladrão, caloteiro, estelionatário, assaltante, traficante, sequestrador, tudo enfim, exceto pobre!" - costumava aconselhar ao Bezim. Manuel Ferreira morreu aos 71 anos, de enfisema pulmonar; para quem não tem dicionário de mediquês aí por perto traduza estas duas palavras por "falta de ar". Quando já estava em vias de partir desta para melhor veio o padre. "Tenha fé seu Manuel". "Seu padre, já tenho fé demais - e fedia mesmo -, o que mais me faz falta agora é fôlego e dinheiro". Afora esta fala, pouco disse ao vigário; sua avareza era tamanha que evitava o sacramento da confissão a fim de economizar palavras. "Bezim, meu filho, olhe o que lhe disse; estás lembrado?" "Tô pai, é para ser tudo, menos pobre". "Isso mesmo meu filho". "Escute! O "cumpade" Zacaria ficou de me comprar umas vacas. Eu pedi cento e cinquenta por cabeça. Mas se ele "botar" cento e quarenta e nove e novecentos, venda. Menos nem um tos... - e tossia, sibilava, estertorava, ansiava - ..menos nem um... "cof, cof, cof", tos... tão!" Foram estas as suas últimas palavras.

Passou-se, passou-se e o Bezim seguiu à risca as recomendações paternas. Morava com a mulher, um filho de dez anos, o Júnior e uma filha de quinze, a Mariana numa água furtada imunda e exígua onde faltavam luz, água encanada e instalações sanitárias. Mas o milhão e meio do velho permanecia devidamente atualizado - naquele tempo havia uma expressão esquisita chamada correção monetária à qual ele recorrera a fim de manter intacto o seu capital/herança. A Mariana adoeceu e morreu de apendicite porque o SUSto daquele tempo - foi durante o governo dum político que tinha as iniciais parecidas com nome de inseticida - só servia para assustar os miseráveis. E tirar dinheiro para gastar com a saúde da filha, nem pensar. Todavia, do mesmo modo que o pai Manuel, Bezim achava que mandava em todo mundo: no padre, no juiz, no médico, no farmacêutico, no cachorro e na ralé. Exatamente nesta ordem. Foi então que ele passou a sentir o mesmo sintoma do pai: fome de mais dinheiro. "Ora, raciocinava, se tenho tudo em minhas mãos, o padre, o juiz, a patuleia, por que não utilizar isto para ganhar mais?" Primeiro, fez um trato com o coveiro: "para cada dente de ouro arrancado dos defuntos eu te dou dez unidades da vez e do dia. "Não seu Bezim, é muito pouco!" Pouco, pouco? Quer enriquecer às minhas custas é? Tu só tens o trabalho e pegar um alicate e...". "É, mas tem uns que eu tenho de escancarar a boca porque o ouro está lá detrás, num queixal". "Ora, estes tu corta logo a bochecha; eu pago a navalha". Com efeito, ganhou algum dinheiro durante um certo tempo. Mas sentia vontade de ter muito mais. Depois de tramar mil e um trambiques que iam desde a contravenção em grau leve aos crimes de sequestro mais hediondos, Bezim concluiu que tudo aquilo seria muito perigoso. Então teve uma ideia genial. "Porra, como não pensei nisto antes!" A ideia genial de Bezim era muito simples e eficaz. Boa demais para ser verdade. Consistia pura e simplesmente em vender vaidade. "Tu estás louco, homem - diziam as pessoas a quem ele propunha sociedade - quem é que vai comprar uma mercadoria tão abstrata?" "Ah é, é? Então não queres acreditar! Pois tu vais ver!" E Bezim passou a oferecer a sua mercadoria. Dos feios tirava e vendia fotos onde o cliente aparentava as feições do Marlom Brando. Mas não no tempo de "O Poderoso Chefão" - ele tinha clientes para este tipo também - mas no de "Sayonara". Para os que tinham vontade de ser Doutor, mandava fabricar "diplomas", e vendia como água mineral no deserto, a quem bebia e acordava de ressaca. Para os que ardiam de desejo de ser poeta, havia uma equipe de cordelistas especializada em fabricar poemas sob encomenda. Ele ficava com noventa por cento do apurado e pagava dez aos "poetas" de aluguel. Os clientes pagavam e ainda por cima ficavam tão felizes que o homenageavam pondo-o como sócio honorário das suas instituições. Quando ele estava para completar sessenta anos chamou o Júnior. "Júnior, meu filho, seja tudo na vida: cafetão, lunfardo, estelionatário, contraventor, sequestrador e até vendedor de vaidades, só não seja pobre. Hoje o Júnior possui muito dinheiro e acha que manda em todos: no padre, no juiz, no médico, no advogado, no farmacêutico, no cachorro e na ralé. Exatamente nesta ordem. Mas continua vendendo vaidades como cachaça em terreiro de macumba. Com o advento de um novo século o produto ficou tão inflacionado (inflação de demanda, como dizem os "homes" do Banco Central que ganharam fortunas com uma tal de desvalorização cambial), que o Júnior teve de inventar outros tipos de vaidade para vender.

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