A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Eu bato na nova, ou bato na velha?

(Raymundo Silveira)

"Padre Nogueira, Padre Nogueira, eu bato na nova ou bato na velha?" Aquela já era a undécima vez que o Sacristão Benedito Silvestre berrava estas palavras à porta do quarto de dormir do vigário, Padre Manuel Nogueira, enquanto faziam coro com o seu alarido, pancadas na porta que ele aplicava com os nós dos dedos. O vigário tinha um sono muito "pesado", mas já despertara à terceira ou quarta investida contra o seu sossego àquela hora da madrugada. À princípio imaginou tratar-se de um pesadelo. Tal qual o padre José Miguéis, aquele do "Crime do Padre Amaro", Nogueira costumava ir se deitar logo após um lauto jantar, embora nem sempre peixe fizesse parte do cardápio. Felizmente ainda não tinha tido nenhuma ameaça de surto apoplético como o inditoso vigário de Leiria, embora as beatas que lhe preparavam as refeições ficassem sempre preocupadas dado o volume de alimentos que o cura costumava devorar. "Padre Nogueira, ô Padre Nogueira! Eu bato na nova ou bato na velha?" Quando percebeu que se tratava de um fato concreto e reconheceu a voz do Sacristão, Nogueira, a princípio, supusera que o seu auxiliar havia enlouquecido, por causa disto evitou falar qualquer coisa de imediato temendo incrementar-lhe a fúria. Depois lembrou que moravam com ele, duas mulheres, uma irmã de cinquenta e cinco e uma meia irmã de vinte e oito anos. Ficou ainda mais preocupado, temendo pela sorte das duas senhoras e só então abriu a porta. "O que aconteceu, Bené?" "É que o senhor ontem não me avisou se era para bater a chamada da missa no sino na hora nova ou na velha e eu não dormi preocupado, então..." Hora Nova e Hora Velha era como os habitantes do vilarejo se referiam às mudanças do horário de verão. O Padre Nogueira só então caiu em si e sentiu um misto de frustração e de indignação contra o auxiliar. "Bené, como tu te atreves a vir aqui às quatro da manhã..." "Quatro, não, cinco. Quatro só se for na velha, porque na nova..." "E eu quero lá saber se é nova ou velha, Bené. O que sei é que vieste perturbar o meu sono. Devias ter-me perguntado isto ontem, às oito, na hora do jantar" "Mas ontem às oito eram oito mesmo, já hoje não serão mais. Hoje só serão oito horas se for na velha, porque na nova..." "Vaitimbora daqui seu idiota, vai bater na senhora tua avó" "Quer dizer então que é pra bater na velha?" O padre não disse mais nada. Limitou-se a fechar, com violência, a porta na cara do sacristão.

O Padre Nogueira tinha dois ideais em sua vida: um imediato e outro que ele pretendia que fosse o mais remoto possível. Seus projetos não tinham o mesmo substrato, mas ambos se relacionavam com o "eterno". O primeiro ideal já estava se concretizando aqui mesmo na Terra e o outro, ele esperava que se processasse no Paraíso. O primeiro Ideal do Padre Nogueira, como se disse, encontrava-se em plena vigência - era a "eterna comilança". E o segundo - aquele que ele desejava que estivesse ainda muito distante - a "eterna bem-aventurança". Com efeito, o vigário, excetuando os atos por ele julgados indispensáveis para alcançar a segunda meta, só pensava em comida. Quando ele completara vinte e cinco anos de vida "comendotal" - um adjetivo cuja etimologia resultava da junção das palavras comensal e sacerdotal -, fora presenteado pelos seus paroquianos com um enorme frizer, e estes mesmos cuidavam para que estivesse sempre abastecido com filés minhons, costelas mindinho, alcatras, maminhas, costeletas de cordeiro, coxões de porco, frangos, peixes, ovos e outras vitualhas perecíveis. Uma ração rotineira do Padre consistia apenas de duas partes: uma entrada e um prato principal. A primeira compunha-se de três ou quatro bifes de meio quilo cada um, ou um frango e meio desossado ou ainda duas terrinas de maionese de peixe. Como prato principal ele devorava um pernil de porco inteirinho ou dois quilos de peixe assado no forno ou cozido num molho com muito creme de leite. Não era à toa, portanto, que ele, com um metro e sessenta e seis centímetros de altura, pesasse cento e quarenta quilos. Era vítima frequente das chacotas dos próprios colegas. "Padre Clemente, o senhor não viu o Padre Nogueira?" Perguntou, certa manhã, o alfaiate. "Hoje ainda não, por quê?" "Estou cortando uma batina para ele e tenho de tomar-lhe algumas medidas" "Você não tem geladeira, homem?" "Tenho sim, por quê?" "Tire as medidas por ela, é o manequim mais adequado pra ele!"

Padre Nogueira viveu mais oito anos depois daquela madrugada em que mandou o Bené bater na velha, digo, na avó dele. Sofria de diabete e fora terminantemente proibido de comer massas e doces. As beatas escondiam, mas ele também fazia o mesmo e, nas madrugadas retirava de detrás de livros, de gavetas e até de dentro de imagens de santos, bocados de pães, biscoitos, chocolates e devorava tudo duma só vez. Pouco antes de morrer veio o colega e ele confessou haver praticado todos os pecados capitais - exceto o da gula - e que se arrependia amargamente. Comungou e recebeu a extrema unção que agora já havia sido rebatizada de unção dos enfermos. Depois o confessor pediu que ele pronunciasse suas últimas palavras. "A Mariinha está aí?" "Está não Nogueira, foi na casa dos pais dela". "A Estela está aí?" "Não Nogueira, também saiu; foi à igreja". "A Das Dores está aí?" "Está, sim". "Pois me faz um favor, Clemente, diz a ela que ponha só duas latas de creme de leite no meu peixe. Preciso fazer dieta!" E expirou.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br