Pela vidraça suja da janela de seu quarto, o jovem Walter Castro podia
vê-lo, aquele monstro gigantesco, antigo, de mistérios e segredos
arcaicos, com suas ondas quase sempre em fúria incontida. O Atlântico,
com o imemorial rugido de suas ondas enfeitiçava-o numa melancolia sinistra,
principalmente à noite, quando então as estrelas brilhavam estranhamente
no céu e refletiam seus brilhos fantasmagóricos na superfície
caótica do vasto corpo líquido do monstro que se chama oceano.
Em terra firme, as sombras eram como fantasmas fugitivos da luz, convidando
os poetas e os pescadores bebuns a sonhar com sereias e basiliscos fantásticos
das sombras sempiternas dos mares do mundo e do inferno, em delírios
oníricos inimagináveis.
Castro estava em sua casa, no topo do morro mais alto, defronte à mágica
e pequena baía da "Prainha". E para ele o mar era uma entidade
viva e furiosa, que um dia levara o corpo de sua irmã para as suas profundezas
e a alma para as profundezas do outro mar, o mar da morte. Foi por isso que
Castro abandonou sua prancha e nunca mais surfou depois que sua irmã
morreu. Nunca mais.
Fazia um bom tempo que Castro morava ali, no Farol de Santa Marta, um refúgio
paradisíaco do litoral sul de Santa Catarina. Sua família tinha
sido enterrada ali, no pequeno cemitério ao lado da igrejinha, onde em
noites de lua cheia os antigos pescadores juravam que viam estranhos vultos,
bailando diabolicamente no ar, entre estranhas luzes fosforescentes de uma tonalidade
escarlate e opressora..
Castro era descendente de uma leva de imigrantes alemães que, um dia,
no passado remoto e indelével, atravessou com denodo ariano a selva líquida
do Atlântico na sôfrega busca por dias melhores no país-continente
chamado Brasil, onde negros, índios e brancos miscigenaram-se em espírito
e carne ao som quase mágico de atabaques e maracás, ouvindo o
místico som das matas e das ondas, sob luares lânguidos e lascivos.
Seu avô havia sido soldado nazista, mas desertara ao apaixonar-se por
uma antropologa, a avó de Castro, uma açoriana de olhos
azuis e estranhos que lecionava em Lisboa. Eles fugiram para o Brasil em 1942,
quando se apaixoraram. O avô de Castro era um trânsfuga da guerra
e do ódio racial estúpido. Seu avô e sua avó, a açoriana
de nome Helena, nutriam um interesse comum por certos conhecimentos antigos,
cultivados por povos e tribos desde o alvorecer da humanidade; era como um hobby,
um passatempo de certa forma assustador para eles.
De algum modo o avô de Castro pressentira a derrocada do totalitarismo
de Hitler, após o demônio fracassar em seus planos sórdidos
de dominar o mundo.
As filhas, entre elas Sofia, a mãe de Castro, praticamente foram criadas
por uma tia solteirona, irmã de sua avó, em Laguna, que posteriormente
desapareceu misteriosamente. Seu avô e sua avó não podiam
ser importunados em seus estranhos estudos, contara a mãe de Castro,
quando ela ainda era viva.
Foi na tarde fria e chuvosa do domingo de Abril de 1999 que o horror em sua
forma sobrenatural iniciou. Castro encontrou no sótão o pequeno
baú, num nicho secreto atrás de uma estante. Em seu interior Castro
encontrou um caderno antigo, roído pelo tempo e pelas traças.
Era, com efeito, um canhenho ou diário de experiências ocultas,
realizadas por seu avô, em conjunto com sua avó. Com esforço,
Castro conseguiu ler alguns parágrafos, já que o papel estava
com bolor e mofo.
"18 de Fevereiro. Que país extraordinário é o Brasil.
E o lugar onde moramos é ideal para o que pretendemos fazer, eu e minha
adorada Helena. Brevemente recomeçaremos nossas experiências fantásticas
com o oculto!...
24 de Fevereiro. Estamos estabelecidos no Farol de Santa Marta, que foi construído
por Franceses. Estamos embevecidos com o lugar; trata-se de um lugar mágico,
logo percebemos. As forças do mar e da terra aqui se encontram e se concentram,
e é como se formassem um vórtice etérico interdimensional,
invisível aos olhos profanos. Há épocas, particularmente
certas noites, em que posso sentir que a quarta dimensão abre-se e toca
o plano dos mortais. Trata-se de uma verdadeira encruzilhada sutil de dimensões.
Aqui o mundo invisível dos espíritos e das criaturas sobrenaturais
se encontra com o plano físico. É o local ideal para o que pretendemos...A
Magia do caos e a Teurgia do Inferno!...
27 de Fevereiro. O calor está terrível, nesta época, aqui
no Farol. Os pescadores do lugar dizem que em Abril começa a esfriar
e ventar muito. Tomara. Sinto saudade de Berlin...Ah, em Berlin era impossível
um calor desses do Brasil...
02 de Março. Eu e Helena estamos exultantes. Realmente o Farol é
portador de magníficas forças espirituais. Estamos trabalhando
duro nas pesquisas esotéricas. Entre leituras e anotações
passamos os dias e as noites, e há também os exercícios
e cerimônias místicas que fazemos em silêncio, na escuridão
de nosso quarto. Trabalho como carpinteiro para manter as aparências de
que luto pela sobrevivência, para disfarçar. Tenho dinheiro o suficiente
para sobreviver sem trabalhar, no entanto, não quero que desconfiem de
nós. Precisamos de sossego para continuar nossos experimentos psíquicos,
embora o povo do lugar seja muito curioso e bisbilhoteiro...
10 de março. Logo abriremos o portal entre as dimensões. É
questão de tempo.
13 de março. Eu e Helena descobrimos, através de leituras de vários
livros antigos de magia que trouxemos conosco, que há dois caminhos para
que eles, os Antigos Deuses Escuros retornem definitivamente ao plano físico;
eles já estiveram aqui, em tempos remotos, quando o homem ainda não
tinha apodrecido sua mente e seu espírito, e eles vagaram pela face da
Terra, em reinos esquecidos. É sinistro, eu sei, mas eles voltarão,
os Antigos Deuses da Escuridão. E então, com eles ao nosso lado,
eu e Helena seremos coroados reis do mundo, juntamente com eles, é claro.
Um novo império será erguido neste mundo, o império dos
Antigos Deuses do Escuro. Nem Átila e nem o tolo Hitler seriam capazes
de compreender a força dos Escuros. Toda a terra será transformada
num caos definitivo de horror e morte, e então eles, os Escuros, reinarão
com magia e força, e os homens então rastejarão como vermes
mortais que são ante a presença desses deuses. Pode parecer loucura,
mas nossa aliança com os Escuros em breve estará consumada.
20 de março. Ele virá primeiro. Ele, Shugara, o deus-cão
dos infernos tetradimensionais, o deus-cão do ódio e da guerra,
esfolador de corpos e almas. Sim, eu e Helena traremos Shugara, e em seguida
os outros Escuros virão, através dos caminhos adormecidos da mente,
pelos vórtices místicos e etéricos do mundo tetradimensional,
e Shugara se encarregará de trazer os outros Escuros...E eles todos virão,
Atazoth, Athusir, Budsturga e Gaubni, eles, os outros deuses da escuridão,
aqueles que foram adorados em eras passadas, na juventude aterradora do mundo...Eu
e Helena seremos o casal de um novo Éden, um paraíso escuro de
onde brotará uma raça mais forte, adoradora das escuras forças
dos mundos invisíveis.
02 de abril. Gaubni será o último a vir. Quando as estrelas Dabih,
Naos e Algol estiverem alinhadas corretamente, eles virão, e todo homem
e toda mulher rastejará e clamará por misericórdia aos
Deuses Escuros, que lavarão a terra com o sangue dos sacrifícios
humanos, numa apoteose de dor, carnificina e morte!
14 de abril. Comecei a preparar o ritual, que será no final do ano. Para
nosso assombro, descobrimos uma caverna secreta perto da praia do Mocó,
aqui no Farol. Fica no alto de uma montanha rochosa, atrás de uma rocha
em forma de bigorna. Eu e Helena sentimos misticamente que tivemos uma vida
passada aqui, encarnados como indígenas da era Pré-Colombiana,
talvez como índios da tribo carijó ou outros povos sambaquianos.
Presumo que estamos preparando este ritual há muito tempo, desde encarnações
passadas, em sucessivas reencarnações aqui mesmo, neste lugar
maravilhoso que é o Farol de Santa Marta, onde fluem mágicas energias.
28 de abril. Precisamos ser mais rápidos! Não há tempo
a perder. Eu e Helena enviamos nossa filha Sofia para Laguna, para que tenhamos
um tempo ainda maior. Diremos que temos muito trabalho na carpintaria e coisa
e tal. A irmã celibatária de Helena, Maria, cuidará da
criança, antes do ritual. Ela o fará sem saber; se nos atrapalhar,
teremos que matá-la, ainda mais que ela nos tem achado estranhos demais.
Acredito que Maria pensa que estamos loucos, eu e Helena.
29 de abril. Conseguimos, com certo marinheiro português, que nos enviou
pelo correio os livros que precisávamos para o nosso estudo. "As
Clavículas de Salomão", "O Enchiridion do Papa Leão",
"Os Segredos do Grande e Pequeno Alberto", o lendário "Necronomicon",
e o mais terrível de todos, aquele que faltava para completarmos nossos
estudos, aquele livro assustador, escrito com sangue humano em páginas
de pele humana: o maldito, o pavoroso, o quase impronunciável "Grimório
Infernal", do insano mago negro Theophillus Marbas, um livro para abrir
a consciência ou enlouquecer de vez... Com o "Grimório Infernal"
teremos as fórmulas e os encantamentos para abrirmos os portais e trazer
novamente e para sempre os Antigos Deuses da Escuridão.
Por um instante Castro parou de ler as assustadoras anotações
no canhenho de seu estranho avô. Engoliu em seco. Então
era verdade que o seu avô era dado a prática de magias e conjurações!
Continuou lendo...
03 de maio. Começa a fazer frio, aqui, no Farol de Santa Marta. Sopra
um vento forte todas as tarde. Parece que estamos em Berlin novamente. Estou
começando a adorar este lugar de magia, mistério e encantamento.
15 de maio. Construímos um verdadeiro templo na Caverna da Bigorna.O
momento se aproxima. Tudo está quase pronto.
20 de maio. Tivemos que matar Maria, a irmã de Helena. Ela descobriu,
numa visita ao Farol, que iremos matar nossa outra filha, a mais nova, irmã
de Sofia, oferecendo-a em holocausto aos Escuros. Ela nos chamou de loucos,
disse que iria avisar as autoridades de Laguna. Helena esfaqueou-a pelas costas.
Enterramos Maria no porão de nossa casa. Trouxemos nossa filha de volta,
mentindo para ela sobre uma viagem de Maria até os Açores. Sofia
ficou em Laguna, adolescente que é, só pensa em rapazes e festas.
Não desconfia de nada. Ficou na casa dos pais de uma amiga, em Tubarão.
05 de junho. Um frio de lascar!....É chegada a hora do ritual de sacrifício
humano. Levamos nossa filha para um passeio nas montanhas do Farol. Era um entardecer
vermelho como o fogo do inferno. Quando entramos na caverna, começou
a chover forte. Vento e chuva e frio. Beijamos a face cândida de nossa
querida filha. Ela não sabe que pretendemos degolar seu pescoço
com a faca que eu trouxe debaixo do paletó. Helena embebeu o lenço
com tricolometano. Nossa filha mais nova, Edla, desmaiou. E então...o
sangue jorrou, para que os portais fossem abertos... Entoei os cântigos
e as invocações...Santo Deus, agora não podemos voltar
atrás!...Eles virão, os deuses negros...
Castro parou de ler outra vez. Estava pálido como um defunto na essa
de um velório. Então seus avós foram loucos, visionários,
fanáticos, obcecados por ocultismo e dados a práticas sinistras
e assassinas. Era por isso que minha mãe não gostava de falar
neles. E foi por isso que de geração em geração
nossa família foi odiada, aqui, no paradisíaco Farol de Santa
Marta, e por isso passamos a viver taciturnos e arredios, solitários
na vida e no tempo.
Castrou retomou a leitura, os olhos esbugalhados.
23 de julho. Os nossos chakras estão começando a ser ativados,
nossa consciência altera-se com a chegada da noite. Estamos vendo vultos
nas sombras. Um deles, pela silhueta, pude reconhecer. É Shugara, o esfolador.
Ele é como o das gravuras do Grimório Maldito. Podemos vê-los
através de nossa clarividência despertada, certamente. Em breve
eu e Helena seremos os novos Adão e Eva num paraíso comandado
pelos Antigos Escuros...
03 de agosto. Maldição! Está tudo dando errado. Helena
começou a enlouquecer repentinamente!...As autoridades de Laguna desconfiaram
de algo e andam nos investigando. Há comentários e fofocas na
vila do Farol, querem nos linchar, acusam-nos estupidamente de "alemães
nazistas" e bruxos secretos de Hitler!...Há meia hora atrás
alguém, provavelmente um estúpido pescador desta comunidade, atirou
uma pedra em nossa casa, que quebrou o vidro da janela e atingiu a cabeça
de Helena, que se já estava insana, agora a tendência é
abismar-se nas profundezas negras da loucura. E quanto aos Deuses Escuros? Por
que não vieram? O que houve de errado?...Praga dos infernos! Estou com
uma terrível dor de cabeça. Estou começando a ouvir vozes,
terríveis vozes do Além!Vozes e um rosnar, um rosnar maldito que
sei ser de Shugara, o Deus esfolador da Escuridão...Agora eu sei, os
Escuros, os Deuses do Escuro! Eles não querem acordos ou pacto conosco,
reles mortais!...Eles nos enganaram, e eles estão irados conosco, porque
algo não deu certo, talvez a intervenção da divina providência,
e então o portal não foi de todo aberto...parece que só
abrirá por instantes, em determinadas horas e épocas...Os Escuros
agora poderão vir, mas não poderão ficar muito tempo no
mundo tridimensional de Euclides, ou seja, o plano físico...Ai!, vou
parar de escrever esta anotações. Estou com uma forte dor de cabeça...É
insuportável...Acho que vou me matar....não tenho saída...a
polícia já bate a porta...o povo do Farol de Santa Marta grita
na rua, querem linchar a mim e minha Helena, que nesse momento está tendo
uma espécie de convulsão ou ataque epilético no chão...Meu
Deus, o que fizemos? Deu tudo errado!...O maldito "Grimório Infernal"!Aquelas
páginas maldita foram feitas para enganar pessoas como eu e Helena...O
livro basfemo é uma armadilha para almas incautas!...Vou pegar a velha
garrucha e por um fim nisso tudo...Matarei minha Helena e depois atirarei em
minha têmpora...Adeus...Esconderei este caderno, para que a polícia
não descubra...e para que as gerações futuras de minha
família saiba a loucura que fizemos...Os Deuses Escuros...eles... não
são deuses...eles são...DEMÔNIOS!...Vou me matar porque
sei que logo eles virão...eles virão com a noite...Deus perdoai-nos...Adeus...Adeus....
Castro engoliu em seco, um calafrio deslizou por sua coluna. Estava abismado
com o que lera até então. Era loucura, tudo aquilo...E então
ele rasgou as páginas daquele diário aterrador. Foi quando ele
ouviu um ruído na noite. No sótão havia uma pequena janela,
a qual abriu-se numa violenta e fria lufada.
Castro ficou enregelado... sentia uma presença, uma presença invisível,
cruel e maligna... talvez fossem eles, os Deuses da Escuridão...Os portais,
eles se abriram outra vez...Sim, eram eles... invisíveis e sinistros...
eles vieram com a noite...
- Oh, meu Deus, é ele que se aproxima primeiro...Oh, Jesus Cristo, salva-me!...É
ele, Shugara!...
Castro gritou até enlouquecer.
Algumas pessoas da comunidade do Farol acordaram de madrugada assustadas; juravam
que ouviram gritos horripilantes de desespero e pavor, em meio a estrondos de
trovões e luzes de relâmpagos.
Na manhã seguinte, alguns surfistas e pescadores que passavam pela frente
da casa observaram atônitos a janela aberta da água-furtada, e
na frente da casa, estatelado e morto ao chão, o cadáver esfolado
de Walter Castro.
Um surfista de vasta cabeleira loira comentou com um pescador ao seu lado:
- Zé Corseira, precisamos telefonar pra polícia! O cara ali deve
ter se matado...
O pescador, meio assustado, respondeu:
- É, temos mesmo, cabeludo! Mas duvido que o cara ali se matou! Ele ta
todo esfolado! Aquele alemão ali, morto, era um cara estranho! Na família
dele só tinha louco. Esse alemão ali, então... Raramente
saía de casa, ainda mais que ele era o último de sua estranha
família. Esse cara vivia quase o tempo todo enfurnado em casa...Vamos
no posto policial chamar a polícia...Esses vagabundos de fora vem aqui
pro Farol só pra aprontar...