"Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante."
Nietzsche
Pela janela do meu quarto, eu posso vê-la a brilhar em misteriosa e maravilhosa
luz, ela, aquela estranha e esplendorosa estrela no veludo negro do céu
da noite silenciosa, a noite silenciosa e sinistra e cheia de sombras e medos,
tão aterrorizante quanto a outra noite, a noite profunda no coração
dos homens. A luz daquela estranha estrela cintila de um modo assombrosamente
mágico, como se quisesse revelar-me algo ou então me hipnotizar,
talvez querendo salvar-me de uma melancolia atroz que me consome como um veneno
lento e de efeitos tantálicos, tirar-me de um desejo funéreo e
inquietante, um desejo terrível de morte, de extinção total.
E durante horas e horas a fio eu a contemplo solitariamente, ela, aquela misteriosa
e estranha estrela, tristemente debruçado na janela e vencido por uma
insônia que me consome os nervos. Horas a fio eu fico a contemplá-la,
pensativo, imaginando um mundo mais interessante do que este em que nós,
insignificantes mortais, vivemos, imaginando um mundo onde os sonhos sejam selvagens
e livres como os ventos que sopram nos desertos mais solitários. Faço
demasiado esforço para imaginar um planeta melhor, não tão
sórdido e repulsivo como se tornou a Terra, onde seus habitantes doentios
se destroem e se matam como animais mais animais que os próprios animais.
Faz duas noites que não consigo dormir. Que dádiva seria morre
dormindo!...E absolutamente não tenho receio de morrer, pois de algum
modo sei que sou eterno e não morrerei nunca. Nem eu, nem meus sonhos.
O planeta tornou-se uma grande esfera de loucura e devastação,
onde o crime, a corrupção, as guerras e o ódio vigoram,
plenos em seus reinados.
Já é quase de madrugada, e o velho relógio do meu quarto,
com seu tique-taque monótono e enlouquecido, parece-me querer dizer que
o tempo é como um veneno lento no coração dos homens, os
homens que lutam, os homens que se matam incessantemente por poder, nada mais
que poder.
Começa a ventar. Gélido vento sul que vem lá das bandas
da histórica Laguna, a cidade a beira-mar. As folhas do salgueiro melancólico
se agitam como pequenas criaturas vivas, e bem acima do salgueiro lúgubre,
no alto do céu, sobre o brejo feio, fedorento e sinistro nos arrabaldes
da cidade, onde valsam fantasmas inebriados de tantas amarguras, onde jaz enterrado
um pequeno templo erigido em tempos arcaicos, ela, aquela estrela estranha,
continua brilhando aziaga, aquela estrela distante, aquela estrela misteriosa
que parece querer dizer-me algo que eu jamais, jamais compreenderei, a não
ser quando estiver viajando entre as brumas eternas dos sonhos ou nos mundos
que se seguem após a morte, nas regiões onde a alma encontra o
seu lar. No brejo, os sapos verdes que idolatram a deusa noite coaxam solenes
num coral uníssono semelhante ao dos pequenos demônios loucos que
dançam invisíveis na face escura da lua.
Chegou em minha mente uma onda invisível de fluxos místicos de
uma nova esperança no porvir; aqui, na Terra, sou carne e sangue, mas
um dia, um dia serei todo sonhos, e então viajarei sem culpas ou medos,
eternamente, pelos infinitos reinos cósmicos, assim como viajo em meus
esporádicos passeios oníricos, quando então o sono vence
a minha dor e o meu tédio e a minha tristeza.
Uma tristeza ou nostalgia se apossa de mim quase sempre, todas as noites. Brilham
lágrimas nas comissuras de meus olhos cansados. Todo o meu pranto é
um rio que murmura canções de tristeza e loucuras. Elas, as lágrimas,
como minúsculas cachoeiras do dissabor, brilham do mesmo modo triste
como brilha aquela estranha estrela, aquela pequenina estrela, lá no
alto do firmamento tingido de negro pela deusa noite.
Meu corpo está cansado. Minha alma está cansada. Meu espírito
já não quer mais cavalgar no cavalo do corpo. Talvez eu durma,
agora, já que o sono me chama. O sono me acena como um velho amigo, com
suas doces promessas de sonhos iridescentes e cheios de aventuras, em regiões
proibidas para a sanidade de uma pessoa dita normal deste mundo anormal que
chamam Terra.
E dentro de minha aflição, eu me deito na velha cama e cerro as
pálpebras. E quando fecho os olhos, uma porta se abre com o sono, e durmo
com o desejo vivo de que ele, o sono, traga-me um eterno sonhar. E que por aquela
porta do sono, eu entre, eu entre e me perca nas regiões onde a alma
encontra o seu lar.
Atravessando os portais dourados dos sonhos, eu, em meu corpo de sonhos, vislumbro
um outro mundo. Uma cidade de torres imensas, douradas. Um povo de pele amarela
e olhares oblíquos, desconfiados, murmurejando na praça. Sábios
com suas túnicas negras e seus segredos esotéricos. Sacerdotisas
lânguidas, dentre as quais destaca-se Sybilla, por quem logo me apaixonei.
Jardins perfumados onde crescem papoulas vermelhas. Minaretes e palácios
fantásticos. Imponentes castelos vermelhos, templos misteriosos de mármore
e jade. E perto desta cidade onírica, que de algum modo sei chamar-se
Yeath-Oorkay, ladeando-a, um mar, um grande e plácido mar de um azul
bem claro e cintilante como os olhos de Sybilla, um mar cujas ondas batem suavemente
nas encostas e nos precipícios negros sobre os quais ficam partes da
cidade situada naquelas regiões onde a alma encontra o seu lar. Um mar,
um mar cheio de mistérios, um mar onde passeiam como plumas prateadas,
caravelas e navios de velhos marinheiros de tempos esquecidos, onde sereias
e ninfas concupiscentes bailam sensualmente nas marolas e nas cristas das ondas
espumantes, algumas das formosas criaturas montadas em golfinhos violáceos
e divertidos.
Pela manhã acordo-me entristecido e amargo, pois já não
estou mais em Yeath-Oorkay, a cidade de meus sonhos. Estou de volta a um mundo
sujo e corrupto onde a solução para tudo jaz na morte, onde o
cálculo final para a equação da vida encontra-se no túmulo.
Um mundo onde se mata ou se morre por quase nada ou por quase tudo.
Profundamente deprimido me ergo do leito como um zumbi de seu túmulo.
O dia é uma promessa viva de dor, tédio e loucura sem fim. O dia
é uma catacumba negra a ser visitada por um anjo caído e bêbado.
Sei que o dia só me trará sofrimento, monotonia e absurdos caóticos,
mas à noite aquela estrela é minha.
Abro a porta de minha casa e saio a perambular. A cidade degenerada começa
a acordar vagarosamente, como um cadáver redivivo. Logo paro num bar
e tomo um café, talvez para afugentar o mau-humor. O homem gordo e suarento
atrás do balcão, especialmente repulsivo, me olha de um jeito
assaz circunspecto que me gela a alma. Não há indícios
de felicidade em seus olhos. Um ser meio morto, vegetando na lama pútrida
psicológica de um ramerrão sem sentido. Novamente caminhando pelas
ruas, os primeiros operários, os primeiros carros, os primeiros ônibus,
os primeiros transeuntes, as pessoas, enfim, formam uma grande legião
de miseráveis, infelizes como aquele dono do bar.
A miserável catedral católica tange seus sinos como a chamar um
rebanho de ovelhas para o matadouro de um sistema de vida embrutecido. Não
há esperança alguma de redenção para as almas que
se consomem nas cidades de um mundo sórdido e corrupto.
Retorno para casa ao cair do crepúsculo.
Espero a noite chegar, debruçado indolentemente na janela. Espero aquela
estrela brilhar, como a me chamar para o mundo dos sonhos. Espero a minha estrelinha
querida, que lá no alto do céu brilha sempre e sempre para mim.
Logo ela vem, a noite, a noite com sua escuridão demoníaca, amaldiçoando
o dia e os homens que padecem nas cidades.
Ela surge, aquela estranha estrela, a minha estrelinha querida. E fico a observá-la
poeticamente, triste e preso em minha solidão, até vir o sono
e os sonhos.
Durante noites e noites eu busquei por Yeath-Oorkay, a cidade onírica
daquelas regiões onde a alma encontra seu lar, mas não a encontrei.
Um velho andarilho que encontrei nas fímbrias de um sonho louco, disse-me
que eu nunca mais iria encontrar Yeath-Oorkay, nunca mais, não enquanto
eu ainda estivesse preso a matéria, ao mundo sórdido onde eu vegetava
no inferno da vigília. O ancião disse-me também para que
eu tomasse cuidado com os mistérios e horrores além dos portões
de Yeath-Oorkay, a magnífica cidade onírica, nas regiões
onde a alma encontra seu lar. Sim, pois em Yeath-Oorkay não havia apenas
coisas belas e aprazíveis, havia coisas sinistras, sombrias, também.
Todas as manhãs eu acordava frustrado, e lágrimas tombavam de
meus olhos cansados. Vinte anos se passaram sem que eu encontrasse nos sonhos
aquela misteriosa cidade chamada Yeath-Oorkay.
Até que um dia, no insano e caótico mundo da vigília, encontrei
um certo mendigo sentado no banco de uma praça, meio que vencido pela
loucura e pela bebida, que me disse que também visitara Yeath-Oorkay
em sonhos, no passado. Aquele mendigo me lembrava o andarilho que encontrei
certa vez nas fímbrias de um sonho louco. Agora todos os seus sonhos
estavam mortos, mas mesmo assim o mendigo me incentivou e receitou um exótico
e poderoso narcótico somente fornecido pelos marujos loucos ou sonhadores
do porto da cidade vizinha a minha, uma substância poderosa que abriria
o portão dourado além dos sonhos e do sono, e então eu
entraria em Yeath-Oorkay novamente e quando bem entendesse. Mas de certa forma
era perigoso, porque o fascínio em Yeath-Oorkay era imenso, e eu poderia
não nunca mais voltar ao mundo real, o mundo da vigília. Nunca
mais.
Consegui a substância narcótica e a ingeri numa noite fria de outono.
Dizem que essa droga é feita de um cogumelo negro que brota em túmulos
de crianças que se suicidaram de tanta tristeza numa sexta-feira a meia-noite.
Na janela, eu contemplava a estrela estranha, que de algum modo ajudava no velho
ritual do sono e dos sonhos. Logo vieram os efeitos da narcose, e então
adormeci e viajei entre as brumas azuis dos sonhos, caindo em vórtices
etéricos e astrais, chegando até aquelas regiões onde a
alma encontra seu lar.
Tornei a encontrar Yeath-Oorkay em várias noites, com seus estranhos
habitantes de olhos oblíquos e desconfiados.
Nesta noite em que escrevo esta carta que deixarei sobre o criado-mudo a quem
interessar possa, tomarei uma grande quantidade do poderoso narcótico.
Acredito que nunca mais voltarei a este mundo horrível de miséria,
dor e aflição. Creio que é o meu momento final. Voltarei
a Yeath-Oorkay, nas regiões onde a alma encontra seu lar. Lá viverei
os seus mistérios e perigos, lá tornarei a encontrar minha lânguida
e sensual Sybilla, com seus olhos azuis e mágicos e seus lábios
amplos sedentos de beijos lascivos. De lá nunca mais retornarei, tenho
certeza. Nunca mais. Nunca mais voltarei ao sórdido mundo dos mortais.
Mas uma parte da minha essência ou alma continuará, continuará
no sombrio universo dos homens, nos infinitos espaços siderais, brilhando,
brilhando como uma nova e estranha estrela a encantar e hipnotizar um outro
poeta esquecido, um poeta afundado no tédio, na dor e na tristeza, num
quarto com uma janela aberta para um céu noturno e estrelado.