A Garganta da Serpente
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A estrela e os sonhos

(Rogério Silvério de Farias)

"Eu vo-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante."
Nietzsche

Pela janela do meu quarto, eu posso vê-la a brilhar em misteriosa e maravilhosa luz, ela, aquela estranha e esplendorosa estrela no veludo negro do céu da noite silenciosa, a noite silenciosa e sinistra e cheia de sombras e medos, tão aterrorizante quanto a outra noite, a noite profunda no coração dos homens. A luz daquela estranha estrela cintila de um modo assombrosamente mágico, como se quisesse revelar-me algo ou então me hipnotizar, talvez querendo salvar-me de uma melancolia atroz que me consome como um veneno lento e de efeitos tantálicos, tirar-me de um desejo funéreo e inquietante, um desejo terrível de morte, de extinção total.

E durante horas e horas a fio eu a contemplo solitariamente, ela, aquela misteriosa e estranha estrela, tristemente debruçado na janela e vencido por uma insônia que me consome os nervos. Horas a fio eu fico a contemplá-la, pensativo, imaginando um mundo mais interessante do que este em que nós, insignificantes mortais, vivemos, imaginando um mundo onde os sonhos sejam selvagens e livres como os ventos que sopram nos desertos mais solitários. Faço demasiado esforço para imaginar um planeta melhor, não tão sórdido e repulsivo como se tornou a Terra, onde seus habitantes doentios se destroem e se matam como animais mais animais que os próprios animais.

Faz duas noites que não consigo dormir. Que dádiva seria morre dormindo!...E absolutamente não tenho receio de morrer, pois de algum modo sei que sou eterno e não morrerei nunca. Nem eu, nem meus sonhos. O planeta tornou-se uma grande esfera de loucura e devastação, onde o crime, a corrupção, as guerras e o ódio vigoram, plenos em seus reinados.

Já é quase de madrugada, e o velho relógio do meu quarto, com seu tique-taque monótono e enlouquecido, parece-me querer dizer que o tempo é como um veneno lento no coração dos homens, os homens que lutam, os homens que se matam incessantemente por poder, nada mais que poder.

Começa a ventar. Gélido vento sul que vem lá das bandas da histórica Laguna, a cidade a beira-mar. As folhas do salgueiro melancólico se agitam como pequenas criaturas vivas, e bem acima do salgueiro lúgubre, no alto do céu, sobre o brejo feio, fedorento e sinistro nos arrabaldes da cidade, onde valsam fantasmas inebriados de tantas amarguras, onde jaz enterrado um pequeno templo erigido em tempos arcaicos, ela, aquela estrela estranha, continua brilhando aziaga, aquela estrela distante, aquela estrela misteriosa que parece querer dizer-me algo que eu jamais, jamais compreenderei, a não ser quando estiver viajando entre as brumas eternas dos sonhos ou nos mundos que se seguem após a morte, nas regiões onde a alma encontra o seu lar. No brejo, os sapos verdes que idolatram a deusa noite coaxam solenes num coral uníssono semelhante ao dos pequenos demônios loucos que dançam invisíveis na face escura da lua.

Chegou em minha mente uma onda invisível de fluxos místicos de uma nova esperança no porvir; aqui, na Terra, sou carne e sangue, mas um dia, um dia serei todo sonhos, e então viajarei sem culpas ou medos, eternamente, pelos infinitos reinos cósmicos, assim como viajo em meus esporádicos passeios oníricos, quando então o sono vence a minha dor e o meu tédio e a minha tristeza.

Uma tristeza ou nostalgia se apossa de mim quase sempre, todas as noites. Brilham lágrimas nas comissuras de meus olhos cansados. Todo o meu pranto é um rio que murmura canções de tristeza e loucuras. Elas, as lágrimas, como minúsculas cachoeiras do dissabor, brilham do mesmo modo triste como brilha aquela estranha estrela, aquela pequenina estrela, lá no alto do firmamento tingido de negro pela deusa noite.

Meu corpo está cansado. Minha alma está cansada. Meu espírito já não quer mais cavalgar no cavalo do corpo. Talvez eu durma, agora, já que o sono me chama. O sono me acena como um velho amigo, com suas doces promessas de sonhos iridescentes e cheios de aventuras, em regiões proibidas para a sanidade de uma pessoa dita normal deste mundo anormal que chamam Terra.

E dentro de minha aflição, eu me deito na velha cama e cerro as pálpebras. E quando fecho os olhos, uma porta se abre com o sono, e durmo com o desejo vivo de que ele, o sono, traga-me um eterno sonhar. E que por aquela porta do sono, eu entre, eu entre e me perca nas regiões onde a alma encontra o seu lar.

Atravessando os portais dourados dos sonhos, eu, em meu corpo de sonhos, vislumbro um outro mundo. Uma cidade de torres imensas, douradas. Um povo de pele amarela e olhares oblíquos, desconfiados, murmurejando na praça. Sábios com suas túnicas negras e seus segredos esotéricos. Sacerdotisas lânguidas, dentre as quais destaca-se Sybilla, por quem logo me apaixonei. Jardins perfumados onde crescem papoulas vermelhas. Minaretes e palácios fantásticos. Imponentes castelos vermelhos, templos misteriosos de mármore e jade. E perto desta cidade onírica, que de algum modo sei chamar-se Yeath-Oorkay, ladeando-a, um mar, um grande e plácido mar de um azul bem claro e cintilante como os olhos de Sybilla, um mar cujas ondas batem suavemente nas encostas e nos precipícios negros sobre os quais ficam partes da cidade situada naquelas regiões onde a alma encontra o seu lar. Um mar, um mar cheio de mistérios, um mar onde passeiam como plumas prateadas, caravelas e navios de velhos marinheiros de tempos esquecidos, onde sereias e ninfas concupiscentes bailam sensualmente nas marolas e nas cristas das ondas espumantes, algumas das formosas criaturas montadas em golfinhos violáceos e divertidos.

Pela manhã acordo-me entristecido e amargo, pois já não estou mais em Yeath-Oorkay, a cidade de meus sonhos. Estou de volta a um mundo sujo e corrupto onde a solução para tudo jaz na morte, onde o cálculo final para a equação da vida encontra-se no túmulo. Um mundo onde se mata ou se morre por quase nada ou por quase tudo.

Profundamente deprimido me ergo do leito como um zumbi de seu túmulo. O dia é uma promessa viva de dor, tédio e loucura sem fim. O dia é uma catacumba negra a ser visitada por um anjo caído e bêbado. Sei que o dia só me trará sofrimento, monotonia e absurdos caóticos, mas à noite aquela estrela é minha.

Abro a porta de minha casa e saio a perambular. A cidade degenerada começa a acordar vagarosamente, como um cadáver redivivo. Logo paro num bar e tomo um café, talvez para afugentar o mau-humor. O homem gordo e suarento atrás do balcão, especialmente repulsivo, me olha de um jeito assaz circunspecto que me gela a alma. Não há indícios de felicidade em seus olhos. Um ser meio morto, vegetando na lama pútrida psicológica de um ramerrão sem sentido. Novamente caminhando pelas ruas, os primeiros operários, os primeiros carros, os primeiros ônibus, os primeiros transeuntes, as pessoas, enfim, formam uma grande legião de miseráveis, infelizes como aquele dono do bar.

A miserável catedral católica tange seus sinos como a chamar um rebanho de ovelhas para o matadouro de um sistema de vida embrutecido. Não há esperança alguma de redenção para as almas que se consomem nas cidades de um mundo sórdido e corrupto.

Retorno para casa ao cair do crepúsculo.

Espero a noite chegar, debruçado indolentemente na janela. Espero aquela estrela brilhar, como a me chamar para o mundo dos sonhos. Espero a minha estrelinha querida, que lá no alto do céu brilha sempre e sempre para mim.

Logo ela vem, a noite, a noite com sua escuridão demoníaca, amaldiçoando o dia e os homens que padecem nas cidades.

Ela surge, aquela estranha estrela, a minha estrelinha querida. E fico a observá-la poeticamente, triste e preso em minha solidão, até vir o sono e os sonhos.

Durante noites e noites eu busquei por Yeath-Oorkay, a cidade onírica daquelas regiões onde a alma encontra seu lar, mas não a encontrei.

Um velho andarilho que encontrei nas fímbrias de um sonho louco, disse-me que eu nunca mais iria encontrar Yeath-Oorkay, nunca mais, não enquanto eu ainda estivesse preso a matéria, ao mundo sórdido onde eu vegetava no inferno da vigília. O ancião disse-me também para que eu tomasse cuidado com os mistérios e horrores além dos portões de Yeath-Oorkay, a magnífica cidade onírica, nas regiões onde a alma encontra seu lar. Sim, pois em Yeath-Oorkay não havia apenas coisas belas e aprazíveis, havia coisas sinistras, sombrias, também.

Todas as manhãs eu acordava frustrado, e lágrimas tombavam de meus olhos cansados. Vinte anos se passaram sem que eu encontrasse nos sonhos aquela misteriosa cidade chamada Yeath-Oorkay.

Até que um dia, no insano e caótico mundo da vigília, encontrei um certo mendigo sentado no banco de uma praça, meio que vencido pela loucura e pela bebida, que me disse que também visitara Yeath-Oorkay em sonhos, no passado. Aquele mendigo me lembrava o andarilho que encontrei certa vez nas fímbrias de um sonho louco. Agora todos os seus sonhos estavam mortos, mas mesmo assim o mendigo me incentivou e receitou um exótico e poderoso narcótico somente fornecido pelos marujos loucos ou sonhadores do porto da cidade vizinha a minha, uma substância poderosa que abriria o portão dourado além dos sonhos e do sono, e então eu entraria em Yeath-Oorkay novamente e quando bem entendesse. Mas de certa forma era perigoso, porque o fascínio em Yeath-Oorkay era imenso, e eu poderia não nunca mais voltar ao mundo real, o mundo da vigília. Nunca mais.

Consegui a substância narcótica e a ingeri numa noite fria de outono. Dizem que essa droga é feita de um cogumelo negro que brota em túmulos de crianças que se suicidaram de tanta tristeza numa sexta-feira a meia-noite.

Na janela, eu contemplava a estrela estranha, que de algum modo ajudava no velho ritual do sono e dos sonhos. Logo vieram os efeitos da narcose, e então adormeci e viajei entre as brumas azuis dos sonhos, caindo em vórtices etéricos e astrais, chegando até aquelas regiões onde a alma encontra seu lar.

Tornei a encontrar Yeath-Oorkay em várias noites, com seus estranhos habitantes de olhos oblíquos e desconfiados.

Nesta noite em que escrevo esta carta que deixarei sobre o criado-mudo a quem interessar possa, tomarei uma grande quantidade do poderoso narcótico. Acredito que nunca mais voltarei a este mundo horrível de miséria, dor e aflição. Creio que é o meu momento final. Voltarei a Yeath-Oorkay, nas regiões onde a alma encontra seu lar. Lá viverei os seus mistérios e perigos, lá tornarei a encontrar minha lânguida e sensual Sybilla, com seus olhos azuis e mágicos e seus lábios amplos sedentos de beijos lascivos. De lá nunca mais retornarei, tenho certeza. Nunca mais. Nunca mais voltarei ao sórdido mundo dos mortais. Mas uma parte da minha essência ou alma continuará, continuará no sombrio universo dos homens, nos infinitos espaços siderais, brilhando, brilhando como uma nova e estranha estrela a encantar e hipnotizar um outro poeta esquecido, um poeta afundado no tédio, na dor e na tristeza, num quarto com uma janela aberta para um céu noturno e estrelado.

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