"Assim tenho continuado a viver por muitos anos,
sozinho e cansado de mim mesmo - desejando a morte,
contudo não morrendo nunca - , mortal imortal."
Mary Shelley
Meu nome é Natanael Albuquerque de Almeida. Sei que estou morrendo, e
agora que estou às portas da morte, e as dores insuportáveis estão
começando a me torturar como punhais invisíveis em meus nervos,
em minha carne, em minha mente perturbada, vou contar tudo. Vou morrer dentro
em breve, eu sei. Mas não temo a morte, porque sei que ela é apenas
uma outra porta que se abre para minha consciência imortal, sempre e sempre
sedenta de existir além do tempo, além da vida, neste e nos incontáveis
mundos que surjam.
A história que vou contar é a minha história. No entanto,
devo advertir: trata-se de uma história insólita, inaudita, aterrorizante.
Vou contá-la rabiscando-a neste velho caderno, não como uma carta
ou diário para a posteridade, mas como um terrível relato de loucura
e extravagância de um homem que foi além dos sonhos e das futilidades
da realidade da vigília, passando por processos mentais indizíveis.
Sabem, confesso que sou um tanto nervoso. Todavia, insano com certeza não
sou. Pelo menos no sentido comum da palavra.
Na minha opinião, as complexidades da mente humana ainda nem começaram
a ser estudadas pela pueril humanidade; nós, seres humanos, ainda engatinhamos
como crianças num quarto escuro, tateando as paredes do labirinto tenebroso
da ignorância psicológica e espiritual, e sob esse véu de
obtusidade contumaz repousa solene, em recônditos escaninhos psíquicos
,um conhecimento oculto quase insuportável que certamente nos levará
à consciência espiritual verdadeira ou à loucura aviltante
e degenerativa de uma nova forma de visão mística da realidade
das coisas. Resta saber, se nós, tolos e prosaicos viventes teremos,
algum dia, a coragem, a ousadia de erguer tal véu e reconhecer as verdades
eternas e assustadoras.
Sofro de um terrível mal psicológico. Trata-se de alguma coisa
horripilante parecida com distúrbios do sono, mais precisamente com sonhos
e pesadelos horrendos e por demais vívidos, acompanhados amiúde
de uma espécie de estranho sonambulismo, numa inconsciência delirante
de absurdos caóticos em aventuras mentais inquietantes, em ao mesmo tempo
em vivências físicas bizarras.
Muitas noites eu perambulei pelos bosques sombrios, em estado sonambúlico,
através das névoas frias da noite, em conversas fantásticas,
em monólogos insanos, em filosofias diabólicas. Como um fantasma
vivo, eu era como um andarilho da meia-noite, em peregrinação
pelas trevas silenciosas.
Inúmeros tratamentos psiquiátricos frustrantes em clínicas
especializadas foram o suficiente para que eu tivesse a certeza de que se trata
de uma estranha alienação deveras incurável.
E para completar meu inferno mental, havia algo que me consumia: o maldito
vício das drogas alucinógenas, particularmente o LSD e a psilocibina
dos chás de cogumelos que eu mesmo colhia de excrementos bovinos, preparando-os
devidamente durante o dia; estes últimos os mais usados por mim na época,
devido à falta de dinheiro em que me via constantemente, já que
eu considerava o trabalho como uma atividade reservada estritamente para os
ineptos e boçais de visão espiritual tacanha, os chamados normais
da sociedade putrescente.
Descendo de uma linhagem de homens excêntricos sedentos do conhecimento
das coisas espirituais e ocultas. Sou o remanescente de uma família burguesa
depravada que perdeu toda a sua fortuna em orgias sexuais e drogas na vã
tentativa de transcender as fúteis coisas materiais e terrenas.
Meu pai e minha mãe, antes de se suicidarem, pertenciam a uma ordem
esotérica, uma irmandade secreta adoradora de deuses-sátiros provenientes
do mundo invisível que nos cerca ou coexiste com a nossa dimensão
carnal. Nesta sociedade secreta ocorriam secretos rituais de magia, num frenesi
de captar uma minúscula parte da realidade oculta que nos cerca.
Lembro que em minha infância eu fui levado com meus pais aos sombrios
bosques nas encostas das colinas da decadente e arcaica cidade de Barbatana
do Sul. Em minha inocência infantil, eu me lembro de ter visto nas névoas
frias da mata seres invisíveis à visão do adulto comum. Disseram-me então que eu tinha uma espécie de dom: o de
ver, através dos olhos da mente, os pequenos seres ocultos da natureza
que brincam e dançam em cascatas e flores, em festas secretas de júbilo
e farra espirituais magníficas, ao som lamuriante da música dos
ventos. Tal capacidade, segundo o hierofante do culto secreto, requeria uma
iniciação na solidão da mata fechada, sob o luar mortiço
de uma grande lua cheia azulada, e então, certa noite, eu fui deixado
adrede por meus pais com ele, para que o ritual começasse. Infelizmente,
meus pais não sabiam (ou sabiam e não queriam me dizer?) do caráter
sórdido desse ritual pervertido. Tampouco que seria algo mais que um
ritual mágico de iniciação. E então, após
ingerir drogas e chás alucinógenos a mando do hierofante pervertido,
fui vítima de seus desejos imundos de pedófilo. Perdi minha inocência
entre lágrimas secretas de amarguras e ressentimentos, envergonhando-me
de mim mesmo.
Meus pais nunca souberam (ou será que souberam e ficaram calados?),
porque guardei o terrível segredo em meu sofrido coração
de menino. O trauma foi aliviando de certa forma a medida em que eu me tornava
adulto e consumia mais e mais drogas e substâncias alucinógenas.
Enfim, o tempo passou ainda mais e acabei casando com Constanza, uma certa
virago de olhos azuis que eu conhecera certa tarde de outono, a beira do grande
e tristonho lago. Após casarmos, Constanza praticamente me sustentava
com seus trabalhos de artesanato, já que eu vivia mergulhado nos sonhos
das drogas e dos devaneios das horas de ócio. No começo, nossa
união aparentava ser promissora, depois veio o tédio, as discussões,
os problemas de convivência, e o nosso castelo de amor desmoronou em meio
a uma tormenta de brigas e insultos constantes.
Ouçam meu segredo: certa noite fria e chuvosa de inverno, dormindo em
minha modesta vivenda com minha mau-humorada esposa Constanza, numa casa a beira
do grande e sorumbático lago na provinciana e antiga Barbatana do Sul,
cansado do tédio e monotonia da existência terrena, deslizei magicamente
minha alma soturna para fora da realidade prosaica de um mundo detestável,
insensível e monótono, onde tudo é vendido e comprado,
até mesmo as flores dos funerais.
Lembro que o vento zunia lá fora, agitando as folhas dos salgueiros
tristonhos, como que entoando uma canção sinistra. O melancólico
lago também parecia gritar de ódio com o barulho de suas ondas
furiosas. Lembro que eu tomara uma dose excessiva de calmantes misturada com
algumas doses de conhaque e chá de cogumelos, pois meu estado de nervos
era deplorável e minha depressão se fazia forte.
Minha esposa parece que me deixara há duas semanas, após uma
discussão tola, mas eu não lembrava de muita coisa.
Sim, então eu ousei!...Ousei investigar as terras além do sono
e dos sonhos, numa tentativa de suprimir a loucura banal do mundo da vigília.
Ousei sair de um ramerrão sem sentido que insensatos descrentes afirmam
tratar-se de vida.
Atravessei as dimensões do sono, varando com meu corpo imaterial universos
proibidos. Atravessei o vácuo entre os muitos mundos, girando em vórtices
oníricos, em vertigens astrais multicoloridas e indescritíveis.
Um novo e exótico panorama surgia ante minha consciência perdida
nos vapores do sono.
Então perambulei no maravilhoso corpo imaterial por uma floresta escura
e avistei, entre as brumas oníricas, um arcaico templo de mistérios
ocultos, esotéricos. Era um templo muito antigo, em estilo grego, cheio
de heras e sombras. E parecia estar quase em ruínas.
Para lá me dirigi com insana curiosidade, esquecendo-me das agruras
e amarguras da vida na Terra, na medíocre cidade onde eu vivia quando
em vigília, onde eu vegetava como uma flor-cadáver, perdido em
esperanças que já nasciam mortas, verdadeiros abortos de devaneios
tolos.
As sombras que habitavam aquele templo onírico eram sombras de um passado
ignoto, desconhecido por tolos ortodoxos como arqueólogos e historiadores
de visão assaz tacanha.
Canções sinistras chegaram aos meus ouvidos astrais, canções
de morte e horror, de um tempo primitivo, onde a barbárie e a magia negra
imperavam num império de terror e violência sanguinária.
Fragmentos de uma civilização que um dia existiu na Terra, mas
que agora, somente existia no mundo além das fronteiras esotéricas
dos sonhos...
Deuses arcaicos, oriundos dos túmulos dos séculos, na forma de
ícones sombrios, emanavam um quê de maldade imemorial sem limites.
De alguma forma eu sabia o nome de cada um deus representado nas estátuas.
Eu vi suas configurações de faunos, e então compreendi
tudo. Contemplei com assombro o sombrio e metamórfico Zugthulhulglos,
o inimaginável e perverso Zadatoth-Rá, o negro e necrófago
Gadabra-Drabyathylon, o carniceiro Czuluhltulgramatus, entre outras deidades
malignas extrafísicas quase totalmente desconhecidas para uma parcela
ignóbil e sã da torpe humanidade...
Vi que no templo de sombras arcaicas, livros antigos, papiros velhos, manuscritos
de eras imemoriais guardavam segredos de uma sabedoria mágica incompreensível
demais para os tolos homens que apodrecem no mundo corrupto da vigília.
Sim, eu li as terríveis e abomináveis peças literárias
de sabedoria profana e diabólica, tais como o lendário Necronomicon,
o maldito Líber Ivonis, e o horrendo De Vermiis Mysteriis, entre outros
livros.
Encontrei, diante de um oráculo, um sacerdote de feições
sombrias que me contou segredos esotéricos terríveis, que não
consigo lembrar direito. Ele me disse algo aziago como "o que está
embaixo é como o que está em cima; a mente é o reflexo
da alma e a alma é o reflexo da mente; e nas profundidades abissais da
consciência, jaz uma força negra, um poder egóico infernal."
Depois sai do templo, levando um outro livro, um grande livro de ciência
profana cujo título não ouso dizer, indo parar na onírica
cidade de Zarkália, onde os sonhos são reais, selvagens e livres.
Lá eu fui rei por um dia, lá eu fui guerreiro e com minha espada
flamejante derrotei os terríveis Slatztaaks - um povo dos grandes pântanos
da terra onírica de Thars, gente primitiva de pele parda e suja com suas
toscas lanças - impedindo-os de conquistar a sonial Zarkália,
com seus palácios de mármores cintilantes e torres gigantescas
e minaretes incrustados de diamantes e rubis.
Acordei com o despertador tocando e o cão do vizinho ladrando e os sinos
imbecis da igreja tocando, como se chamasse um rebanho boçal para a continuação
de um estado de coisas absurdo e caótico.
Eu estava de volta ao mundo detestável e corrupto da realidade física,
tornando-me outra vez uma simples ameba humana como os demais. O sonho acabara.
E novamente eu estava num planeta onde a chave para tudo jaz na morte, num mundo
onde todos são escravos de todos, e a alforria somente surge além
do túmulo. Sim, num mundo cinzento onde os sonhos não são
levados a sério, a não ser pelos poetas e por um imbecil sonhador
como eu.
Retornei aos meus dias de monotonia, tédio e tristeza sem fim, rezando
para que um dia eu volte a perambular por aquele reino desconhecido além
das fronteiras esotéricas dos sonhos, a magnífica cidade de Zarkália,
onde os sonhos são reais, selvagens e livres...
Então, após os resquícios das névoas do sono dissiparem,
eu lembrei, com o mais profundo terror, o que havia de fato acontecido, o que
eu havia feito na semana anterior. O horror dominou-me o espírito.
Deus do céu! Minha alma estava condenada: agora eu estava às
portas da condenação do inferno!...
Santo Deus! Agora eu começava a me lembrar de tudo...Eu matara, num
acesso de cólera, minha pobre esposa Constanza. Eu a matara, ali mesmo,
no pequeno cais de minha morada, talvez em meio a minhas alucinações
ou andanças sonambúlicas, batendo com o remo em sua cabeça
como se batesse num maldito Slatztaaks, e lançando-a nas águas
escuras e gélidas do grande e tristonho lago de Barbatana do Sul...
Os malditos vizinhos chamaram a Polícia!... Já ouço as
sirenes...e agora, meu Deus, o que farei?...E aquela minha jornada etérea
por mundos intangíveis? E as drogas e os chás alucinógenos?
Teriam tido eles a estranha capacidade de abrir, como chaves mentais místicas,
os portais mágicos daqueles reinos de horror e aventuras estranhas, muito
além das fronteiras esotéricas dos sonhos?... Não havia
outra solução a não ser beber o líquido escuro do
frasco.
Às vezes um homem vive como um rato e morre como um rato.Tenho esperança
que a estricnina me liberte definitivamente do mundo da vigília (já
sinto pontadas da dor lancinante, aguilhões do inferno a me torturar),
e então, liberto do ergástulo da carne, talvez eu fuja do Érebo
e encontre aquele mundo estranho muito além das fronteiras esotéricas
dos sonhos, nas infinitas plagas da eternidade...longe deste sórdido
mundo físico, entre todos os outros, o pior dos mundos, um mundo soez,
realmente baixo chamado Terra.