A Garganta da Serpente
  • aumentar a fonte
  • diminuir a fonte
  • versão para impressão
  • recomende esta página

Além das fronteiras esotéricas dos sonhos

(Rogério Silvério de Farias)

"Assim tenho continuado a viver por muitos anos,
sozinho e cansado de mim mesmo - desejando a morte,
contudo não morrendo nunca - , mortal imortal."
Mary Shelley

Meu nome é Natanael Albuquerque de Almeida. Sei que estou morrendo, e agora que estou às portas da morte, e as dores insuportáveis estão começando a me torturar como punhais invisíveis em meus nervos, em minha carne, em minha mente perturbada, vou contar tudo. Vou morrer dentro em breve, eu sei. Mas não temo a morte, porque sei que ela é apenas uma outra porta que se abre para minha consciência imortal, sempre e sempre sedenta de existir além do tempo, além da vida, neste e nos incontáveis mundos que surjam.

A história que vou contar é a minha história. No entanto, devo advertir: trata-se de uma história insólita, inaudita, aterrorizante.

Vou contá-la rabiscando-a neste velho caderno, não como uma carta ou diário para a posteridade, mas como um terrível relato de loucura e extravagância de um homem que foi além dos sonhos e das futilidades da realidade da vigília, passando por processos mentais indizíveis.

Sabem, confesso que sou um tanto nervoso. Todavia, insano com certeza não sou. Pelo menos no sentido comum da palavra.

Na minha opinião, as complexidades da mente humana ainda nem começaram a ser estudadas pela pueril humanidade; nós, seres humanos, ainda engatinhamos como crianças num quarto escuro, tateando as paredes do labirinto tenebroso da ignorância psicológica e espiritual, e sob esse véu de obtusidade contumaz repousa solene, em recônditos escaninhos psíquicos ,um conhecimento oculto quase insuportável que certamente nos levará à consciência espiritual verdadeira ou à loucura aviltante e degenerativa de uma nova forma de visão mística da realidade das coisas. Resta saber, se nós, tolos e prosaicos viventes teremos, algum dia, a coragem, a ousadia de erguer tal véu e reconhecer as verdades eternas e assustadoras.

Sofro de um terrível mal psicológico. Trata-se de alguma coisa horripilante parecida com distúrbios do sono, mais precisamente com sonhos e pesadelos horrendos e por demais vívidos, acompanhados amiúde de uma espécie de estranho sonambulismo, numa inconsciência delirante de absurdos caóticos em aventuras mentais inquietantes, em ao mesmo tempo em vivências físicas bizarras.

Muitas noites eu perambulei pelos bosques sombrios, em estado sonambúlico, através das névoas frias da noite, em conversas fantásticas, em monólogos insanos, em filosofias diabólicas. Como um fantasma vivo, eu era como um andarilho da meia-noite, em peregrinação pelas trevas silenciosas.

Inúmeros tratamentos psiquiátricos frustrantes em clínicas especializadas foram o suficiente para que eu tivesse a certeza de que se trata de uma estranha alienação deveras incurável.

E para completar meu inferno mental, havia algo que me consumia: o maldito vício das drogas alucinógenas, particularmente o LSD e a psilocibina dos chás de cogumelos que eu mesmo colhia de excrementos bovinos, preparando-os devidamente durante o dia; estes últimos os mais usados por mim na época, devido à falta de dinheiro em que me via constantemente, já que eu considerava o trabalho como uma atividade reservada estritamente para os ineptos e boçais de visão espiritual tacanha, os chamados normais da sociedade putrescente.

Descendo de uma linhagem de homens excêntricos sedentos do conhecimento das coisas espirituais e ocultas. Sou o remanescente de uma família burguesa depravada que perdeu toda a sua fortuna em orgias sexuais e drogas na vã tentativa de transcender as fúteis coisas materiais e terrenas.

Meu pai e minha mãe, antes de se suicidarem, pertenciam a uma ordem esotérica, uma irmandade secreta adoradora de deuses-sátiros provenientes do mundo invisível que nos cerca ou coexiste com a nossa dimensão carnal. Nesta sociedade secreta ocorriam secretos rituais de magia, num frenesi de captar uma minúscula parte da realidade oculta que nos cerca.

Lembro que em minha infância eu fui levado com meus pais aos sombrios bosques nas encostas das colinas da decadente e arcaica cidade de Barbatana do Sul. Em minha inocência infantil, eu me lembro de ter visto nas névoas frias da mata seres invisíveis à visão do adulto comum. Disseram-me então que eu tinha uma espécie de dom: o de ver, através dos olhos da mente, os pequenos seres ocultos da natureza que brincam e dançam em cascatas e flores, em festas secretas de júbilo e farra espirituais magníficas, ao som lamuriante da música dos ventos. Tal capacidade, segundo o hierofante do culto secreto, requeria uma iniciação na solidão da mata fechada, sob o luar mortiço de uma grande lua cheia azulada, e então, certa noite, eu fui deixado adrede por meus pais com ele, para que o ritual começasse. Infelizmente, meus pais não sabiam (ou sabiam e não queriam me dizer?) do caráter sórdido desse ritual pervertido. Tampouco que seria algo mais que um ritual mágico de iniciação. E então, após ingerir drogas e chás alucinógenos a mando do hierofante pervertido, fui vítima de seus desejos imundos de pedófilo. Perdi minha inocência entre lágrimas secretas de amarguras e ressentimentos, envergonhando-me de mim mesmo.

Meus pais nunca souberam (ou será que souberam e ficaram calados?), porque guardei o terrível segredo em meu sofrido coração de menino. O trauma foi aliviando de certa forma a medida em que eu me tornava adulto e consumia mais e mais drogas e substâncias alucinógenas.

Enfim, o tempo passou ainda mais e acabei casando com Constanza, uma certa virago de olhos azuis que eu conhecera certa tarde de outono, a beira do grande e tristonho lago. Após casarmos, Constanza praticamente me sustentava com seus trabalhos de artesanato, já que eu vivia mergulhado nos sonhos das drogas e dos devaneios das horas de ócio. No começo, nossa união aparentava ser promissora, depois veio o tédio, as discussões, os problemas de convivência, e o nosso castelo de amor desmoronou em meio a uma tormenta de brigas e insultos constantes.

Ouçam meu segredo: certa noite fria e chuvosa de inverno, dormindo em minha modesta vivenda com minha mau-humorada esposa Constanza, numa casa a beira do grande e sorumbático lago na provinciana e antiga Barbatana do Sul, cansado do tédio e monotonia da existência terrena, deslizei magicamente minha alma soturna para fora da realidade prosaica de um mundo detestável, insensível e monótono, onde tudo é vendido e comprado, até mesmo as flores dos funerais.

Lembro que o vento zunia lá fora, agitando as folhas dos salgueiros tristonhos, como que entoando uma canção sinistra. O melancólico lago também parecia gritar de ódio com o barulho de suas ondas furiosas. Lembro que eu tomara uma dose excessiva de calmantes misturada com algumas doses de conhaque e chá de cogumelos, pois meu estado de nervos era deplorável e minha depressão se fazia forte.

Minha esposa parece que me deixara há duas semanas, após uma discussão tola, mas eu não lembrava de muita coisa.

Sim, então eu ousei!...Ousei investigar as terras além do sono e dos sonhos, numa tentativa de suprimir a loucura banal do mundo da vigília. Ousei sair de um ramerrão sem sentido que insensatos descrentes afirmam tratar-se de vida.

Atravessei as dimensões do sono, varando com meu corpo imaterial universos proibidos. Atravessei o vácuo entre os muitos mundos, girando em vórtices oníricos, em vertigens astrais multicoloridas e indescritíveis. Um novo e exótico panorama surgia ante minha consciência perdida nos vapores do sono.

Então perambulei no maravilhoso corpo imaterial por uma floresta escura e avistei, entre as brumas oníricas, um arcaico templo de mistérios ocultos, esotéricos. Era um templo muito antigo, em estilo grego, cheio de heras e sombras. E parecia estar quase em ruínas.

Para lá me dirigi com insana curiosidade, esquecendo-me das agruras e amarguras da vida na Terra, na medíocre cidade onde eu vivia quando em vigília, onde eu vegetava como uma flor-cadáver, perdido em esperanças que já nasciam mortas, verdadeiros abortos de devaneios tolos.

As sombras que habitavam aquele templo onírico eram sombras de um passado ignoto, desconhecido por tolos ortodoxos como arqueólogos e historiadores de visão assaz tacanha.

Canções sinistras chegaram aos meus ouvidos astrais, canções de morte e horror, de um tempo primitivo, onde a barbárie e a magia negra imperavam num império de terror e violência sanguinária. Fragmentos de uma civilização que um dia existiu na Terra, mas que agora, somente existia no mundo além das fronteiras esotéricas dos sonhos...

Deuses arcaicos, oriundos dos túmulos dos séculos, na forma de ícones sombrios, emanavam um quê de maldade imemorial sem limites. De alguma forma eu sabia o nome de cada um deus representado nas estátuas. Eu vi suas configurações de faunos, e então compreendi tudo. Contemplei com assombro o sombrio e metamórfico Zugthulhulglos, o inimaginável e perverso Zadatoth-Rá, o negro e necrófago Gadabra-Drabyathylon, o carniceiro Czuluhltulgramatus, entre outras deidades malignas extrafísicas quase totalmente desconhecidas para uma parcela ignóbil e sã da torpe humanidade...

Vi que no templo de sombras arcaicas, livros antigos, papiros velhos, manuscritos de eras imemoriais guardavam segredos de uma sabedoria mágica incompreensível demais para os tolos homens que apodrecem no mundo corrupto da vigília. Sim, eu li as terríveis e abomináveis peças literárias de sabedoria profana e diabólica, tais como o lendário Necronomicon, o maldito Líber Ivonis, e o horrendo De Vermiis Mysteriis, entre outros livros.

Encontrei, diante de um oráculo, um sacerdote de feições sombrias que me contou segredos esotéricos terríveis, que não consigo lembrar direito. Ele me disse algo aziago como "o que está embaixo é como o que está em cima; a mente é o reflexo da alma e a alma é o reflexo da mente; e nas profundidades abissais da consciência, jaz uma força negra, um poder egóico infernal."

Depois sai do templo, levando um outro livro, um grande livro de ciência profana cujo título não ouso dizer, indo parar na onírica cidade de Zarkália, onde os sonhos são reais, selvagens e livres. Lá eu fui rei por um dia, lá eu fui guerreiro e com minha espada flamejante derrotei os terríveis Slatztaaks - um povo dos grandes pântanos da terra onírica de Thars, gente primitiva de pele parda e suja com suas toscas lanças - impedindo-os de conquistar a sonial Zarkália, com seus palácios de mármores cintilantes e torres gigantescas e minaretes incrustados de diamantes e rubis.

Acordei com o despertador tocando e o cão do vizinho ladrando e os sinos imbecis da igreja tocando, como se chamasse um rebanho boçal para a continuação de um estado de coisas absurdo e caótico.

Eu estava de volta ao mundo detestável e corrupto da realidade física, tornando-me outra vez uma simples ameba humana como os demais. O sonho acabara. E novamente eu estava num planeta onde a chave para tudo jaz na morte, num mundo onde todos são escravos de todos, e a alforria somente surge além do túmulo. Sim, num mundo cinzento onde os sonhos não são levados a sério, a não ser pelos poetas e por um imbecil sonhador como eu.

Retornei aos meus dias de monotonia, tédio e tristeza sem fim, rezando para que um dia eu volte a perambular por aquele reino desconhecido além das fronteiras esotéricas dos sonhos, a magnífica cidade de Zarkália, onde os sonhos são reais, selvagens e livres...

Então, após os resquícios das névoas do sono dissiparem, eu lembrei, com o mais profundo terror, o que havia de fato acontecido, o que eu havia feito na semana anterior. O horror dominou-me o espírito.

Deus do céu! Minha alma estava condenada: agora eu estava às portas da condenação do inferno!...

Santo Deus! Agora eu começava a me lembrar de tudo...Eu matara, num acesso de cólera, minha pobre esposa Constanza. Eu a matara, ali mesmo, no pequeno cais de minha morada, talvez em meio a minhas alucinações ou andanças sonambúlicas, batendo com o remo em sua cabeça como se batesse num maldito Slatztaaks, e lançando-a nas águas escuras e gélidas do grande e tristonho lago de Barbatana do Sul...

Os malditos vizinhos chamaram a Polícia!... Já ouço as sirenes...e agora, meu Deus, o que farei?...E aquela minha jornada etérea por mundos intangíveis? E as drogas e os chás alucinógenos? Teriam tido eles a estranha capacidade de abrir, como chaves mentais místicas, os portais mágicos daqueles reinos de horror e aventuras estranhas, muito além das fronteiras esotéricas dos sonhos?... Não havia outra solução a não ser beber o líquido escuro do frasco.

Às vezes um homem vive como um rato e morre como um rato.Tenho esperança que a estricnina me liberte definitivamente do mundo da vigília (já sinto pontadas da dor lancinante, aguilhões do inferno a me torturar), e então, liberto do ergástulo da carne, talvez eu fuja do Érebo e encontre aquele mundo estranho muito além das fronteiras esotéricas dos sonhos, nas infinitas plagas da eternidade...longe deste sórdido mundo físico, entre todos os outros, o pior dos mundos, um mundo soez, realmente baixo chamado Terra.

menu
Lista dos 2201 contos em ordem alfabética por:
Prenome do autor:
Título do conto:

Últimos contos inseridos:
Copyright © 1999-2020 - A Garganta da Serpente
http://www.gargantadaserpente.com.br