A Garganta da Serpente
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O retorno dos antigos

(Rogério Silvério de Farias)

Quando a vida se tornara para ele tão insuportável quanto uma adaga etérea de ódio cravada no coração sofredor de uma alma inocente, pregada em sua cruz de suprema desventura; quando os animais racionais equivocadamente chamados de homens, afundados em suas ganâncias torpes, apartaram de suas mentes insensatas a luz e a força espiritual da suprema capacidade de sonhar a beleza sem limites e imposições, na louçã e pueril castidade dos devaneios dos verdadeiros poetas; quando a maltratada Terra, invadida pelo negro egoísmo e o perpétuo desejo por dinheiro e mais dinheiro e por poder e mais poder, se fizera realmente um orbe pleno de insensatez caótica e perversa, um certo alguém ousou levantar seu espírito do lamaçal da mediocridade, atraindo para si forças obscuras e antigas, forças desconhecidas cultivadas apenas por poucos, forças geradas nos templos invisíveis dos segredos milenares e obscuros do micro e do macrocosmo.

Embora ele vivesse numa época decadente onde a esperança agonizava, isto não queria dizer que ele estivesse totalmente morto em vida. Por esses tristes tempos, onde nada consolava, lia-se nos olhos de boa parte das pessoas um horror calado pelos sonhos mortos, numa tristeza funérea de dar dó. Ainda assim, ele, o grande solitário do nada, ainda sonhava, mesmo naquele quarto mofado de janelas quase sempre fechadas e ar viciado, onde vivia com sua eterna noiva, a senhorita solidão. Os poucos amigos leais e confiáveis que o visitavam raramente eram apenas os percevejos, as baratas e os vultos espectrais de eras remotas, sombras ancestrais perdidas nas brumas sombrias do tempo, tentando comunicar-lhe doutrinas que o tempo esqueceu.

Seus sonhos eram tristes e estranhos como fragmentos sombrios tecidos pela memória num mosaico de horror e estupefação diante do absurdo da condição humana. Seus sonhos eram migalhas sobradas de aventuras em mundos mais reais que a realidade nojenta em que ele e todos nós vegetamos como flores mortas no húmus da Terra.

Ele era um estranho vivendo de um modo estranho, ao lado de gente muita estranha , num mundo muito estranho. E quando ele viajava pelos vastos e infinitos mundos de seus sonhos mais insanos, vestia a pele de um anjo caído, um anjo sem asas. E sonhava, sonhava dentro de um sonho que talvez fosse mais real do que a realidade mundana. Sonhava com o retorno deles, dos Antigos...

Quantos vezes, nas tardes de solidão enlouquecedora, ele ouvira em êxtase supremo a música fantástica de Wagner, especialmente embevecido por sua majestosa e esotérica "A Cavalgada das Valquírias"?... Quantas vezes ele lera Nietzsche até quase morrer diante do trono da loucura?...Quantas e quantas vezes ele bebeu na fonte de poetas antigos e loucos como ele próprio?...

Seus deuses diferiam dos deuses dos seus contemporâneos. Seus deuses eram antigos, de prístinas eras; sim, e esses deuses também foram adorados por outros na aurora do mundo, em templos de sombras, no fundo do mar ou no centro da terra, em rituais de mistérios inimagináveis, quando então a vida era mais interessante que hoje, quando o aço da espada solucionava todos os litígios e conflitos humanos, quando a magia era um dom natural, e a lei, era a lei do mais forte, sem as covardias e as imundícies dos dias atuais. E tais deuses, na verdade, eram deuses das sombras do invisível ou provenientes das tumbas mofadas do abismo do caos entre as dimensões superiores da natureza. Mas esses deuses desconhecidos não eram tão medíocres quanto os demônios modernos, do alvorecer das civilizações. Antes do animal estúpido que hoje chamam homem perambular pela face da Terra, havia uma outra humanidade numa era dourada. Na Lemúria, nas cidades e templos magníficos naquela Era de Ouro, havia uma civilização de homens-deuses. Tais deuses, numa guerra titânica, desceram aos abismos, e então se tornaram deuses negros e sinistros, mas não como divindades torpes, como os deuses do bem e do mal dos homens atuais, para quem só se pode sentir desprezo e ojeriza, tampouco eram deuses obsoletos e sem nenhum valor poético. Aqueles deuses estavam além do bem e do mal. Aqueles deuses eram da aurora do mundo, alguns deles vieram das sombras das estrelas, outros dos mundos invisíveis embutidos no nosso, e eram praticamente desconhecidos da História conhecida e dos antropologos do materialismo. Eles, os deuses da aurora dos tempos, das sombras dos mundos malditos, habitavam também os sonhos e devaneios daquele homem em seu quarto, e ele então mergulhava em viagens além da mente humana em cidades oníricas que se tornam tão reais como os mundos que vem depois da morte.

Kryshlyth, o grande reino nebuloso além dos sonhos e além da doce loucura, com sua geografia etérea e sempiterna é onde seus deuses agora habitavam. Kryshlyth, um lugar que ele ouvira falar pela primeira vez numa leitura de um certo livro antigo chamado "Manuscrito de Thule", obra de conhecimento oculto milenar, traduzido do baixo latim para o português por um místico e visionário de nome Dyh Ware Kare, um tomo extraordinário e ao mesmo tempo assustador, contendo conjurações , segredos e rituais terríveis demais para serem compreendidos por uma mente prosaica da dita civilização moderna. O autor do livro maldito era um certo monge e asceta, queimado vivo como herege na época da Inquisição. Como o livro viera parar em sua mão era algo que talvez fosse mais do que obra do acaso. Ele o encontrara enterrado nas areias da praia, hermeticamente fechado dentro de uma espécie de pequeno baú ou arca, certa tarde de verão, ao cair do crepúsculo, na costa sul da cidade portuária onde vivia. Com muito esforço e com o auxílio de um pé-de-cabra ele abrira a caixa, a qual ele levara até o casebre que alugara por uns dias. Mas isso acontecera um bocado de tempo atrás...

Realmente, a cidade medíocre onde nascera, onde morava nos dias hodiernos, era bem estranha, como, aliás, todas as cidades são. Parecia composta, em sua essência, de uma hedionda fauna humana de loucura inominável, cheia de pessoas que mais pareciam mortos-vivos ou demônios em carne e osso, demônios humanos sedentos de dinheiro e poder. Os prédios, os arranha-céus, não eram tão belos quanto as torres e palácios da desconhecida e onírica Kryshlyth. Os prédios cinzentos eram como túmulos de vivos, suas silhuetas grandes e escuras como ogros gigantes destacando-se melancolicamente como um símbolo do vil metal e do nada vezes nada vezes nada. E os poetas, mortos em suas tumbas de delírios, não mais cantavam, a não ser sobre os espectros que dançam nos grande fogos-fátuos da solidão da morte e da loucura sem fim.

Mas um dia eles viriam, os deuses dele, Eles, os Antigos, e instalariam uma nova ordem no mundo...e toda a terra apodrecida na corrupção mergulharia fundo num caos sangrento de dor, violência e morte. E os Antigos Deuses arrancariam todos os enfermiços cérebros humanos e os comeriam como guloseimas divinas, insaciavelmente, da mesma maneira que fariam com as almas dos inferiores humanos. E no altar da suprema loucura seriam adorados todos os Antigos, inclusive aquele que viria primeiro, Yog-Sothoth... aquele que abriria o portal, aquele que era a chave do portal, aquele que era o próprio portal, o guardião e a entrada do portal. Já foi dito, em parágrafos malditos, que os Antigos foram, os Antigos são, os Antigos serão...

Existia medo e submissão na cidade de desgraçados onde ele vivia , e onde as noites eram muitas e vastas. Noites de vivos que vegetavam numa vida insensata de rancor, paixão e ódio. Noites de vontades de morrer, neste e nos outros mundos. Noites em que o pranto e o ranger de dentes ecoavam como cantos em louvor a tudo de ruim que grassa neste eterno vale de lágrimas.

Aquele homem estranho e solitário rezava todas as noites, para que um dia os antigos deuses negros retornassem com seus corpos inomináveis de sonhos e pesadelos, e fizessem a grande revolução da morte libertadora e vingativa no mundo dos tolos mortais, e introduzissem em suas mentes frágeis a admirável e terrível loucura sagrada que só o êxtase da suprema liberdade espiritual em fúria concede aos homens de pouca fé ou escravizados por uma fé fanática ou mesmo aos loucos mais loucos que os próprios loucos. E toda religião bastarda, fruto da quimera de velhacos travestidos de sacerdotes, verdadeiros estelionatários espirituais safados, seria atirada no esgoto dos infernos...

Resolveu sair da toca, o seu quarto, seu refúgio, a fortaleza onde regava os jardins de seus sonhos de um dia poder ser um semideus ou um deus também. O quarto, o quarto de um homem pobre que não ligava para o dinheiro, o quarto que era a sua caverna, e ele era como um neandertal moderno ou um xamã primitivo. Sim! Ele tinha este direito, o de ser um titã da magia, um asceta do ódio, o que quisesse numa era de trevas, de ignorância espiritual. E se ele quisesse, ele pensava, poderia ser um demônio também.

Quando saiu de casa, o que encontrou pela cidade foi o horror em forma de mediocridade e miserabilidade irritantes. Mediocridade em forma de horror, miséria em todos os sentidos, um conjunto de fraquezas mentais e corporais acumulados de pesadelos infinitos gerados pelo medo incutido pelos cérebros diabólicos dos poderosos, dos políticos e dos demais vermes corruptos de sua cidade infernal, de sua pátria infernal, de um sistema infernal.

Ele trouxera consigo o terrível livro, o maldito e abominável Manuscrito de Thule. E recitara certas passagens terríveis...que decididamente nunca deveriam ser lidas por mentes perturbadas...

Ele sabia que o portal abriria, mais cedo ou mais tarde, e enquanto isso as energias negativas seriam enviadas a ele, aquele que ousara chamar um dos primeiros, Yog-Sothoth. Sim, Yog-Sothoth, o veículo, a manifestação exterior do caos primitivo...

Encontrou um mendigo, ex-empresário local arruinado pelo vício, pelo jogo e pelas mulheres. "Tem um trocado aí, doutor", disse o farrapo humano, estendendo a mão de pedinte.

Quando aquele mendigo, em um tempo não muito distante, era um dos homens mais ricos da cidade, houve um homem fracassado que clamava por um mísero ganha-pão, como faxineiro, pelo menos. E ele, o empresário que agora era um mendigo, negara, alegando que em seu quadro de funcionários não havia espaço para ociosos e loucos da sua laia. E o protagonista desta história que não deveria ser contada jurou vingança...e ele esperou, esperou...até que o dia chegasse.

E o dia chegou. Então agora ele sacou seu velho revólver comprado de um velho vigia aposentado. Ele iria pagar caro, agora, o mendigo que fora empresário. Não havia muita gente ali, naquela hora da noite, naquele fim de semana, naquele feriado asqueroso onde o restante asqueroso da população vivia momentos de um ócio imbecil, de modo que sua sentença seria rápida e praticamente imperceptível. O próximo sacrifício seria com um desses malditos políticos que infestam o país, sempre com suas promessas demagógicas e eleitoreiras. Depois seriam os magistrados, com suas manias de grandezas e seus desejos insanos de serem como deuses da Terra. Em seguida os presunçosos catedráticos e os ministros e clérigos, com suas arengas fastidiosas sobre um deus único e tirano. Ele, o homem solitário, protagonista desta história de horror e vingança, seria o anjo da anunciação do caos e da morte naquela cidade de desgraçados. Mataria a todos, a todos...

Antes de sair fugindo noite adentro, ele gritou em júbilo diabólico uma estranha algaravia que ele aprendera nas páginas mofadas do amaldiçoado Manuscrito de Thule: "Fign! Yiiczn, Yog! Yog-Sothot, fingn! Yog-Sothot!.Ynim, fgn nczoy iin aun ihk!!!..."

A esmola que ele concederia a todos seria a misericórdia negra da morte, através do negro manjar da vingança, que deve ser comido frio, após algum tempo de espera. Sim, a vingança (Yog-Sothoth foi o primeiro a receber a oferenda), a vingança terrível. E as mortes das vítimas, as imolações místicas, os holocaustos mágicos com que agradaria os seus deuses desconhecidos, os Antigos Deuses, os deuses das sombras da terra, os deuses dos sonhos nefandos e das sombras da aurora do mundo, pois eles, os seus deuses são sem leis e sem moral, pois estão acima de todas estas besteiras humanas, são divindades além do bem e do mal, sabiam que matar ou morrer, às vezes, liberta até mesmo os vermes humanos do lodo da Terra...

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