Quando a vida se tornara para ele tão insuportável quanto uma
adaga etérea de ódio cravada no coração sofredor
de uma alma inocente, pregada em sua cruz de suprema desventura; quando os animais
racionais equivocadamente chamados de homens, afundados em suas ganâncias
torpes, apartaram de suas mentes insensatas a luz e a força espiritual
da suprema capacidade de sonhar a beleza sem limites e imposições,
na louçã e pueril castidade dos devaneios dos verdadeiros poetas;
quando a maltratada Terra, invadida pelo negro egoísmo e o perpétuo
desejo por dinheiro e mais dinheiro e por poder e mais poder, se fizera realmente
um orbe pleno de insensatez caótica e perversa, um certo alguém
ousou levantar seu espírito do lamaçal da mediocridade, atraindo
para si forças obscuras e antigas, forças desconhecidas cultivadas
apenas por poucos, forças geradas nos templos invisíveis dos segredos
milenares e obscuros do micro e do macrocosmo.
Embora ele vivesse numa época decadente onde a esperança agonizava,
isto não queria dizer que ele estivesse totalmente morto em vida. Por
esses tristes tempos, onde nada consolava, lia-se nos olhos de boa parte das
pessoas um horror calado pelos sonhos mortos, numa tristeza funérea de
dar dó. Ainda assim, ele, o grande solitário do nada, ainda sonhava,
mesmo naquele quarto mofado de janelas quase sempre fechadas e ar viciado, onde
vivia com sua eterna noiva, a senhorita solidão. Os poucos amigos leais
e confiáveis que o visitavam raramente eram apenas os percevejos, as
baratas e os vultos espectrais de eras remotas, sombras ancestrais perdidas
nas brumas sombrias do tempo, tentando comunicar-lhe doutrinas que o tempo esqueceu.
Seus sonhos eram tristes e estranhos como fragmentos sombrios tecidos pela
memória num mosaico de horror e estupefação diante do absurdo
da condição humana. Seus sonhos eram migalhas sobradas de aventuras
em mundos mais reais que a realidade nojenta em que ele e todos nós vegetamos
como flores mortas no húmus da Terra.
Ele era um estranho vivendo de um modo estranho, ao lado de gente muita estranha
, num mundo muito estranho. E quando ele viajava pelos vastos e infinitos mundos
de seus sonhos mais insanos, vestia a pele de um anjo caído, um anjo
sem asas. E sonhava, sonhava dentro de um sonho que talvez fosse mais real do
que a realidade mundana. Sonhava com o retorno deles, dos Antigos...
Quantos vezes, nas tardes de solidão enlouquecedora, ele ouvira em êxtase
supremo a música fantástica de Wagner, especialmente embevecido
por sua majestosa e esotérica "A Cavalgada das Valquírias"?...
Quantas vezes ele lera Nietzsche até quase morrer diante do trono da
loucura?...Quantas e quantas vezes ele bebeu na fonte de poetas antigos e loucos
como ele próprio?...
Seus deuses diferiam dos deuses dos seus contemporâneos. Seus deuses
eram antigos, de prístinas eras; sim, e esses deuses também foram
adorados por outros na aurora do mundo, em templos de sombras, no fundo do mar
ou no centro da terra, em rituais de mistérios inimagináveis,
quando então a vida era mais interessante que hoje, quando o aço
da espada solucionava todos os litígios e conflitos humanos, quando a
magia era um dom natural, e a lei, era a lei do mais forte, sem as covardias
e as imundícies dos dias atuais. E tais deuses, na verdade, eram deuses
das sombras do invisível ou provenientes das tumbas mofadas do abismo
do caos entre as dimensões superiores da natureza. Mas esses deuses desconhecidos
não eram tão medíocres quanto os demônios modernos,
do alvorecer das civilizações. Antes do animal estúpido
que hoje chamam homem perambular pela face da Terra, havia uma outra humanidade
numa era dourada. Na Lemúria, nas cidades e templos magníficos
naquela Era de Ouro, havia uma civilização de homens-deuses. Tais
deuses, numa guerra titânica, desceram aos abismos, e então se
tornaram deuses negros e sinistros, mas não como divindades torpes, como
os deuses do bem e do mal dos homens atuais, para quem só se pode sentir
desprezo e ojeriza, tampouco eram deuses obsoletos e sem nenhum valor poético.
Aqueles deuses estavam além do bem e do mal. Aqueles deuses eram da aurora
do mundo, alguns deles vieram das sombras das estrelas, outros dos mundos invisíveis
embutidos no nosso, e eram praticamente desconhecidos da História conhecida
e dos antropologos do materialismo. Eles, os deuses da aurora dos tempos,
das sombras dos mundos malditos, habitavam também os sonhos e devaneios
daquele homem em seu quarto, e ele então mergulhava em viagens além
da mente humana em cidades oníricas que se tornam tão reais como
os mundos que vem depois da morte.
Kryshlyth, o grande reino nebuloso além dos sonhos e além da
doce loucura, com sua geografia etérea e sempiterna é onde seus
deuses agora habitavam. Kryshlyth, um lugar que ele ouvira falar pela primeira
vez numa leitura de um certo livro antigo chamado "Manuscrito de Thule",
obra de conhecimento oculto milenar, traduzido do baixo latim para o português
por um místico e visionário de nome Dyh Ware Kare, um tomo extraordinário
e ao mesmo tempo assustador, contendo conjurações , segredos e
rituais terríveis demais para serem compreendidos por uma mente prosaica
da dita civilização moderna. O autor do livro maldito era um certo
monge e asceta, queimado vivo como herege na época da Inquisição.
Como o livro viera parar em sua mão era algo que talvez fosse mais do
que obra do acaso. Ele o encontrara enterrado nas areias da praia, hermeticamente
fechado dentro de uma espécie de pequeno baú ou arca, certa tarde
de verão, ao cair do crepúsculo, na costa sul da cidade portuária
onde vivia. Com muito esforço e com o auxílio de um pé-de-cabra
ele abrira a caixa, a qual ele levara até o casebre que alugara por uns
dias. Mas isso acontecera um bocado de tempo atrás...
Realmente, a cidade medíocre onde nascera, onde morava nos dias hodiernos,
era bem estranha, como, aliás, todas as cidades são. Parecia composta,
em sua essência, de uma hedionda fauna humana de loucura inominável,
cheia de pessoas que mais pareciam mortos-vivos ou demônios em carne e
osso, demônios humanos sedentos de dinheiro e poder. Os prédios,
os arranha-céus, não eram tão belos quanto as torres e
palácios da desconhecida e onírica Kryshlyth. Os prédios
cinzentos eram como túmulos de vivos, suas silhuetas grandes e escuras
como ogros gigantes destacando-se melancolicamente como um símbolo do
vil metal e do nada vezes nada vezes nada. E os poetas, mortos em suas tumbas
de delírios, não mais cantavam, a não ser sobre os espectros
que dançam nos grande fogos-fátuos da solidão da morte
e da loucura sem fim.
Mas um dia eles viriam, os deuses dele, Eles, os Antigos, e instalariam uma
nova ordem no mundo...e toda a terra apodrecida na corrupção mergulharia
fundo num caos sangrento de dor, violência e morte. E os Antigos Deuses
arrancariam todos os enfermiços cérebros humanos e os comeriam
como guloseimas divinas, insaciavelmente, da mesma maneira que fariam com as
almas dos inferiores humanos. E no altar da suprema loucura seriam adorados
todos os Antigos, inclusive aquele que viria primeiro, Yog-Sothoth... aquele
que abriria o portal, aquele que era a chave do portal, aquele que era o próprio
portal, o guardião e a entrada do portal. Já foi dito, em parágrafos
malditos, que os Antigos foram, os Antigos são, os Antigos serão...
Existia medo e submissão na cidade de desgraçados onde ele vivia
, e onde as noites eram muitas e vastas. Noites de vivos que vegetavam numa
vida insensata de rancor, paixão e ódio. Noites de vontades de
morrer, neste e nos outros mundos. Noites em que o pranto e o ranger de dentes
ecoavam como cantos em louvor a tudo de ruim que grassa neste eterno vale de
lágrimas.
Aquele homem estranho e solitário rezava todas as noites, para que um
dia os antigos deuses negros retornassem com seus corpos inomináveis
de sonhos e pesadelos, e fizessem a grande revolução da morte
libertadora e vingativa no mundo dos tolos mortais, e introduzissem em suas
mentes frágeis a admirável e terrível loucura sagrada que
só o êxtase da suprema liberdade espiritual em fúria concede
aos homens de pouca fé ou escravizados por uma fé fanática
ou mesmo aos loucos mais loucos que os próprios loucos. E toda religião
bastarda, fruto da quimera de velhacos travestidos de sacerdotes, verdadeiros
estelionatários espirituais safados, seria atirada no esgoto dos infernos...
Resolveu sair da toca, o seu quarto, seu refúgio, a fortaleza onde regava
os jardins de seus sonhos de um dia poder ser um semideus ou um deus também.
O quarto, o quarto de um homem pobre que não ligava para o dinheiro,
o quarto que era a sua caverna, e ele era como um neandertal moderno ou um xamã
primitivo. Sim! Ele tinha este direito, o de ser um titã da magia, um
asceta do ódio, o que quisesse numa era de trevas, de ignorância
espiritual. E se ele quisesse, ele pensava, poderia ser um demônio também.
Quando saiu de casa, o que encontrou pela cidade foi o horror em forma de mediocridade
e miserabilidade irritantes. Mediocridade em forma de horror, miséria
em todos os sentidos, um conjunto de fraquezas mentais e corporais acumulados
de pesadelos infinitos gerados pelo medo incutido pelos cérebros diabólicos
dos poderosos, dos políticos e dos demais vermes corruptos de sua cidade
infernal, de sua pátria infernal, de um sistema infernal.
Ele trouxera consigo o terrível livro, o maldito e abominável
Manuscrito de Thule. E recitara certas passagens terríveis...que decididamente
nunca deveriam ser lidas por mentes perturbadas...
Ele sabia que o portal abriria, mais cedo ou mais tarde, e enquanto isso as
energias negativas seriam enviadas a ele, aquele que ousara chamar um dos primeiros,
Yog-Sothoth. Sim, Yog-Sothoth, o veículo, a manifestação
exterior do caos primitivo...
Encontrou um mendigo, ex-empresário local arruinado pelo vício,
pelo jogo e pelas mulheres. "Tem um trocado aí, doutor", disse
o farrapo humano, estendendo a mão de pedinte.
Quando aquele mendigo, em um tempo não muito distante, era um dos homens
mais ricos da cidade, houve um homem fracassado que clamava por um mísero
ganha-pão, como faxineiro, pelo menos. E ele, o empresário que
agora era um mendigo, negara, alegando que em seu quadro de funcionários
não havia espaço para ociosos e loucos da sua laia. E o protagonista
desta história que não deveria ser contada jurou vingança...e
ele esperou, esperou...até que o dia chegasse.
E o dia chegou. Então agora ele sacou seu velho revólver comprado
de um velho vigia aposentado. Ele iria pagar caro, agora, o mendigo que fora
empresário. Não havia muita gente ali, naquela hora da noite,
naquele fim de semana, naquele feriado asqueroso onde o restante asqueroso da
população vivia momentos de um ócio imbecil, de modo que
sua sentença seria rápida e praticamente imperceptível.
O próximo sacrifício seria com um desses malditos políticos
que infestam o país, sempre com suas promessas demagógicas e eleitoreiras.
Depois seriam os magistrados, com suas manias de grandezas e seus desejos insanos
de serem como deuses da Terra. Em seguida os presunçosos catedráticos
e os ministros e clérigos, com suas arengas fastidiosas sobre um deus
único e tirano. Ele, o homem solitário, protagonista desta história
de horror e vingança, seria o anjo da anunciação do caos
e da morte naquela cidade de desgraçados. Mataria a todos, a todos...
Antes de sair fugindo noite adentro, ele gritou em júbilo diabólico
uma estranha algaravia que ele aprendera nas páginas mofadas do amaldiçoado
Manuscrito de Thule: "Fign! Yiiczn, Yog! Yog-Sothot, fingn! Yog-Sothot!.Ynim,
fgn nczoy iin aun ihk!!!..."
A esmola que ele concederia a todos seria a misericórdia negra da morte,
através do negro manjar da vingança, que deve ser comido frio,
após algum tempo de espera. Sim, a vingança (Yog-Sothoth foi o
primeiro a receber a oferenda), a vingança terrível. E as mortes
das vítimas, as imolações místicas, os holocaustos
mágicos com que agradaria os seus deuses desconhecidos, os Antigos Deuses,
os deuses das sombras da terra, os deuses dos sonhos nefandos e das sombras
da aurora do mundo, pois eles, os seus deuses são sem leis e sem moral,
pois estão acima de todas estas besteiras humanas, são divindades
além do bem e do mal, sabiam que matar ou morrer, às vezes, liberta
até mesmo os vermes humanos do lodo da Terra...