A Garganta da Serpente
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Angela

(Renata S. Guilger)

Era a noite da sua formatura. Finalmente, depois de três anos, aquele dia chegara. Por alguns momentos, Angela nem conseguia acreditar que dali a algumas horas tudo estaria acabado. Parecia irreal que um momento tão esperado tivesse finalmente chegado, e enquanto ela se arrumava, vagarosamente, examinava seu rosto no espelho e verificava cada cicatriz invisível que o tempo deixara em sua alma.

Foram três anos.Trinta e seis meses. Mil e noventa e cinco dias. Vinte e quatro mil, cento e noventa e duas horas. Nem nas férias Angela conseguia fugir de tudo o que a perseguia. Mas agora seria sua derrocada. Seu momento de provar que, apesar de tudo, ela conseguira chegar até ali, e estaria livre. Para sempre. Agora não viveria mais sob a influência daquele homem, que por várias vezes quase conseguiu acabar com a sua vida, mas que no final saíra derrotado. Porque Angela era vitoriosa, e sempre soube disso. Aprendeu desde pequena a ter paciência para esperar pela vitória, e ela não falhara.

Tudo começou com sua mãe. A mãe de Angela, de quem ela mal se lembrava, levou sua vida ao fundo do poço, através de vários erros cometidos durante anos. Um desses erros havia sido seu envolvimento com um homem orgulhoso, egoísta e cruel, cujas mãos foram responsáveis por tornar Angela órfã aos quatro anos de idade. Porém, Angela só tomou conhecimento da história de sua mãe quando fez quinze anos e passou a frequentar uma escola local. O destino, bastante irônico às vezes, levou àquela escola o mesmo homem, primeiro professor e em seguida diretor. Quando os olhos dos dois se cruzaram pela primeira vez, Angela não sentiu nada especial, mas o homem imediatamente reconhecera a menina, que mal havia deixado de ser um bebê da última vez que a vira.

Angela sofreu por anos. Durante todo aquele tempo, foi obrigada a viver no silêncio. Desde que o conhecera, desde que ele a encostara na parede na saída do primeiro dia de aula, num canto escuro atrás da escola, ela desejou que seus passos nunca tivessem se cruzado. Angela nunca havia sido ameaçada antes. Nunca havia sido desafiada, nunca fora tão acuada, tão agredida, e nunca imaginou que pudesse ser obrigada a conviver com isso todos os dias. Conheceu um lado de sua mãe do qual não sentiu orgulho. Conheceu um homem mau, que a manipulou, que aos poucos arrancou tudo dela, que a fez sentir tanto medo que tornou incapaz qualquer reação. Conheceu carinhos que a enojaram, conheceu o sexo através do estupro, conheceu o silêncio pesado que rasgava sua alma diariamente, e só fez tudo isso para proteger a si mesma daquele louco. Um homem completamente insano. Angela só suportou todo o sofrimento calada porque tinha certeza de que um dia poderia se vingar. E em nome de sua mãe, havia jurado que faria isso.

E agora havia acabado. Seriam as últimas horas em que precisaria demonstrar respeito àquele homem, que mantinha um cargo na escola. E já tinha tudo planejado. Na hora da festa, colocaria o plano em prática. Havia economizado por dois anos, havia juntado seus trocados conseguidos com muito suor, e inúmeros programas depois, ali estava seu brinquedinho. Aquela arma era o que Angela mais prezava naquele momento. Seu instrumento para a liberdade. Para sua vingança, e a vingança de sua mãe.

A roupa fora estrategicamente escolhida, e nela havia um local especial, onde a arma seria guardada, longe dos olhos e pronta para ser usada assim que Angela achasse conveniente. O relógio avisou que os minutos estavam se esgotando, e Angela se apressou, saindo de casa e tomando o táxi que a esperava havia já meia hora. Com um sorriso no rosto, ela seguiu para o salão. O sorriso foi interpretado pelo taxista como a usual felicidade pela formatura, mas dentro de Angela, a felicidade explodia graças a conquistas muito maiores.

Ela saboreou cada minuto, cada pequeno instante daquela noite pomposa e cerimoniosa em que pôde olhar para o homem de cabeça erguida, certa de que ali acertariam as contas, daquela noite não passaria. Sua satisfação tornava-se cada vez maior ao olhar aquele homem, sentado na mesa comprida à frente dos formandos, sem a mais remota possibilidade de fazer algo contra ela.

E quando tudo acabar, Angela pensou, eu estarei livre.

A noite correu como num filme, com cenas cortadas, direto para o clímax. Centenas de pessoas aos poucos foram se dando conta de que algo acontecia ali, e aos poucos todos ficaram cientes daquela garota bonita, recém formada, que permanecia em pé, numa postura perfeita, com a arma apontada para o rosto do diretor da escola, que havia acabado de ser homenageado por sua conduta exemplar no cargo que ocupava.

O salão todo parecia estar em silêncio. Nos ouvidos de Angela só entravam sons do passado, sons que a machucavam, enquanto ela continuava ali, paralisada, no meio de um salão inteiro também paralisado, que observava e esperava o pior, sem fazer nada. O rosto do professor, agora diretor, foi passando de agressivo a espantado, e logo Angela percebeu que ele estava em pânico. E por um momento sua mão balançou, um momento de hesitação tão pequeno que foi perceptível apenas para ela, e pela primeira vez veio à sua mente aquela primeira cena. O beco atrás da escola, onde Angela ficara esperando, até que o diretor - na época professor - passou e ela o agarrou. Beijou-o com força, com fome, como vira tantas vezes sua mãe fazendo com diferentes homens, e aquele havia sido o seu último. Disse a ele coisas das quais não se recordava claramente, mas sabia que depois daquele dia, o homem passou a viver com medo. Angela não parou, Angela continuou ameaçando e manipulando aquele homem, criando para os dois uma vida paralela, aproveitando tudo o que sua mãe não pudera aproveitar depois que ele se afastou dela, onze anos antes.

O tempo parecia não passar, e Angela via na frente dos seus olhos sua vida, sua verdadeira caminhada que a levara àquele momento, ali parada, na frente do homem que aceitou tudo o que lhe foi imposto porque precisava manter seu emprego e sustentar sua família. Uma denúncia de abuso sexual por parte da garota arruinaria sua vida inteira. Jamais imaginou que a filha daquela mulher com quem se envolvera há tanto tempo tivesse seguido os mesmos passos de loucura da mãe, e tivesse esperado por anos pelo momento de acabar com ele.

Até que, sem pressa e sem desgrudar os olhos do homem, Angela afrouxou o braço tenso e trouxe a arma para perto do próprio rosto. Com os olhos firmes, ela apontou o cano da arma para si, encostando os lábios coloridos pelo batom no cano gelado, sentindo na espinha um arrepio que a fez fechar os olhos. Não de medo, mas de um prazer estranho. E ali, no momento mais rápido de sua vida, lembrou-se da mãe, que cometera suicídio após ter sido abandonada por um cliente com o qual passara a se relacionar. Agora, mais lúcida do que nunca, Angela entendeu tudo. Sua vida e seus atos finalmente fizeram sentido, e ela finalmente tornou-se livre.

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