A Garganta da Serpente
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Olhos de Serpente

(Rodrigo Sena Magalhães)

Aquela cidade lhe trazia recordações do seu tempo de criança. Os pés descalços a correr pelas ruas de terra batida, o cabelo loiro e liso balançando com as lufadas do vento carregado de poeira vermelha, o vestido de retalhos e o broche torto que ela havia achado no lixo próximo à sua casa de porta e janela. Ela também lembrou do telhado velho que quando chovia deixava a casa alagada, fazendo sair das frestas do assoalho um batalhão de baratas e ratos. Lembrava dos gritos de sua madrasta, uma gorda que cheirava a polvilho azedo e gordura de porco. - "Venha logo sua vagabundinha, a casa está um chiqueiro e eu não tenho tempo pra arrumar!"

Ela estava parada e diante seus olhos, passava aquele filme de terror que fora sua infância. Vinte anos haviam passado, e aquelas imagens eram reais, pareciam estar acontecendo naquele momento. Uma lágrima teimou em sair, mas ela a conteve...

Maria Tereza morreu ao dar a luz a uma menina linda. Não teve tempo de contemplar aqueles olhos amarelos, nem sentir aquela pele macia como veludo ou mesmo ter em seus braços aquele montinho cor-de-rosa de gente, não pôde dar o seu leite materno e tampouco ouvir a palavra mãe.

Augusto Bernardino estava desesperado no salão frio do hospital, as unhas encravadas na carne, fazendo um filete de sangue escorrer pelos braços, gritando e blasfemando: - "Deus miserável! Você é um invejoso, roubou de mim o meu maior tesouro, levou o meu amor, e agora eu O desprezo!" As palavras do jovem marceneiro eram duras e extravasava todo o ódio que saía de sua alma calejada de infortúnios.

Augusto recebera a notícia que seria pai, numa sexta-feira, meia hora antes de sair do trabalho. Maria Tereza chegou usando seu melhor vestido. Era um vestido de cetim rosa com uns riscos verdes e azuis, ela sabia que Augusto adorava aquele vestido e só o usava em ocasiões especiais.

- Oi meu amor! - disse Tereza com um largo sorriso.

- Que surpresa é essa? - perguntou Augusto, meio atrapalhado.

- Tenho que lhe contar uma coisa...

- O quê é ? Fala logo mulher! - Augusto estava impaciente.

- Eu não aguentei esperar você chegar... é que... - Ela fez uma pausa, fazendo um certo mistério.

- Fala logo! - Augusto era extremamente ansioso, não suportava joguinhos de mistério.

- Estou grávida! - Respondeu rispidamente.

Augusto sentiu os pés deixarem o chão, parecia estar flutuando, os pensamentos divagaram e ele quase sofreu um acidente com a serra.

- Eu vou ser pai?! - Ele não acreditava - Meu amor... obrigado, agora sou o homem mais feliz do mundo, sou um homem completo. - Augusto chorava.

E agora, no salão frio e pálido do hospital, ele brigava com Deus.

Augusto relutou em ver sua filha, ela não era sua filha, era um monstro, uma assassina, a assassina do seu amor... Eram esses seus pensamentos, mas ao fim de muita insistência, acabou cedendo e foi ver a "assassina".

Como poderia uma coisinha tão pequena ser chamada de assassina? Ela não tinha culpa, era inocente, e o culpado era o invejoso do Deus... - Pensou.

A menina recebeu o nome de Evelin. Augusto tentava ser amoroso com a pequena, mas não conseguia. A lembrança da morte de sua amada Tereza o fazia tremer e um sentimento inexplicável apossava do seu corpo, transformando-o em um monstro de feições sombrias. Ele havia se trancado num mundo particular, num mundo de sombras e tristezas.

Augusto não conseguia mais viver sozinho e cinco anos após a morte de Tereza, amasiou com uma cozinheira gorda que trabalhava no restaurante da esquina. Era uma mulher muito feia, um corpo sem formas, uma pele branca e encardida, tinha poucos dentes e ainda eram podres e o pior, exalava um cheiro insuportável de polvilho azedo, seu nome era Ivone, e conquistou o sofrido Augusto não se sabe como.

Augusto havia se transformado numa espécie de ser mecânico, acordava às seis horas ainda embriagado, ia para o trabalho e chegava às oito horas da noite bêbado, tomava um banho e ia dormir. Daquele homem forte de outrora não sobrara nada, era apenas um vulto cadavérico que insistia em brigar com Deus.

A rotina da pequena Evelin aos cinco anos de idade era desgastante. Era obrigada a fazer todo o serviço da casa, limpava, varria, lavava, enquanto a gorda ficava debruçada sobre o umbral da janela, matraqueando sobre a vida alheia e esperando os inúmeros homens que vinham visitá-la.

Um dia ela recebeu um "amigo", era um tal de Zé João, um negro de quase dois metros de altura e a fama de ser um animal na cama.

A gorda Ivone estava no quarto com o tal Zé João, ela gritava obscenidades, enquanto a pequena Evelin varria o chão imundo da casa. Ao passar pelo quarto, a menina parou em frente à porta. Aqueles gritos ecoavam de uma maneira estranha que ela não sabia o que era, foi quando empurrou a porta e viu uma cena que jamais sairia de sua cabeça. Ivone estava nua, a cabeça apoiada no colchão e aquela bunda enorme sendo montada por um homem imenso que batia com força, fazendo as nádegas tremerem como se fossem feitas de gelatina, a mulher gritava, urrava e o homem gritando e batendo. Evelin ficou paralisada, as mãozinhas escoradas no marco da porta, e aquela carinha angelical assustada, tomou-se de um pavor ainda maior, quando o homem virou e fitou-a nos olhos. Aquele monstro nem sequer se importou com a presença da pequena, segurou seu membro em riste, era algo assustador o tamanho daquela "coisa", e veio em sua direção, com uma voz rouca, disse: - "Oi fofinha! Vem brincar com o tio!" A menina sem saber o que estava acontecendo, começou a chorar, chorava silenciosamente, sem emitir um ruído sequer, então, o homem parou ao som do grito da gorda:

- "Seu porco! Que diabos pensa que vai fazer? Você vai me trocar por este pedaço de gente? Saia daqui! Saia agora!"- A mulher estava histérica.

O homem vestiu suas roupas, resmungou alguma coisa e saiu.

Ivone não se deu nem ao trabalho de vestir suas roupas e foi logo agarrando a menina pelo braço e espancando-a, batia com violência, mas a menina não emitia nenhum ruído, ela intensificou a surra, e foi batendo, batendo até que percebeu que aquele corpinho estava mole, não esboçava nenhuma reação, a menina estava inconsciente. Ela sacudia o corpo pálido e gritava:

- "Não morra, sua peste! Você precisa viver! Acorda sua vagabunda!"

A pequena estava deitada na cama, o corpo com manchas roxas e vermelhas, um fio de sangue escorria pelo canto direito da sua boquinha infantil, as pernas tremiam, o corpo todo tremia. A gorda Ivone estava ao lado, com uma bacia d'água passando um pano pelo corpo da pequena.

Augusto não se dava conta das barbaridades que ocorriam em seu lar. As surras que a gorda aplicava na pequena eram constantes, os serviços domésticos eram cada vez mais pesados, seu pequeno corpo carregava cicatrizes e sua alma inocente um grande vazio. Mesmo assim, ela não reclamava de nada, nem das surras, nem do serviço pesado, nem das bebedeiras do pai.

Na época das chuvas seu tormento era ainda maior, o telhado velho não impedia a chuva de alagar toda a casa, e um exército de baratas, ratos e escorpiões infestavam a casa, o fedor era insuportável e o trabalho para limpar era doloroso, mas ela o fazia sem dizer uma palavra, sem fazer uma reclamação sequer.

A pequena Evelin estava voltando da escola, os pezinhos descalços correndo e pulando pelas ruas de terra batida, os lindos cabelos fulvos balançando com as lufadas do vento carregado de poeira vermelha. Ela cantava uma musiquinha de criança, quando viu uma coisa brilhando no monte de lixo. Ela chegou próximo, agachou e viu um broche dourado com formas de uma maçã mordida, o broche estava amassado, então, com a ajuda de uma pedra desamassou-o, prendeu-o ao vestido de retalhos, soltou um suspiro de felicidade. Aquilo era a coisa mais bonita que ela já havia possuído e foi para a casa cantarolando de felicidade.

Havia um grande movimento em frente a sua casa, ela estranhou, pois nunca havia gente por perto, seu coraçãozinho bateu acelerado como que pressentisse algo.

Ao entrar pela porta da frente, viu a mais monstruosa de todas as cenas, parecia um cenário de Edgar Allan Poe. O corpo gordo de sua madrasta estava debruçado sobre uma enorme poça de sangue, a cabeça decepada do pescoço, ao lado, o corpo de um homem que ela não conhecia, também sobre uma poça de sangue, os corpos estavam nus e acima, pendurado pelo pescoço por uma corda amarrada ao caibro do telhado, o corpo cadavérico de seu pai, as mãos sujas de sangue, o rosto com uma expressão horrorizante. Estava acabado. A pequena Evelin estava segurando o broche torto, a mãozinha sobre o peito, um olhar vazio, o corpo imóvel, e de seus lábios vermelhos saiu apenas um suspiro, era um misto de alivio e dor.

A menina foi morar com uma tia, mas seus parentes não a queriam por perto. Certo dia, sua tia lhe disse:

- "Você não deveria ter nascido! Matou sua mãe, fez seu pai sofrer e depois o matou. Você é amaldiçoada! Não a queremos mais aqui!"

Os insultos eram constantes, as pessoas a ignorava, chamando-a de "amaldiçoada", "filha do demo", e outras coisas do gênero. A menina vivia jogada pelas ruas, até que um dia uma mulher elegantemente vestida, tomada de uma grande compaixão, levou-a para sua casa e resolveu adotá-la. Essa mulher era conhecida como: Amélia Olhos de Serpente.

Amélia era uma mulher linda, corpo carnudo, pele morena, longos cabelos negros, sobrancelhas fechadas realçando seu rosto fino, um nariz arrebitado e uma boca que fazia os homens arrepiar de prazer. Seu grande poder estava em seus olhos, era um par de olhos amarelos, iguais aos da pequena Evelin, que intrigavam, enfeitiçavam, hipnotizavam, atraindo suas "presas". Eram olhos de serpente, eram mortais!

Sua primeira vez, foi com um sargento magrelo e narigudo, pai de uma menina da sua idade. Sua família passava fome, a miséria fez da bela Amélia uma puta, era uma puta escrota, que nas noites da vida comeu o pão que o diabo amassou...

Agora, aos trinta e poucos anos, era sofisticada, sabia usar as palavras, era comedida em seus atos, conhecia intimamente os segredos dos homens, sabia que eram fracos e não resistiam ao poder dos seus olhos e foram estas fraquezas que a tornaram rica. Ela tinha o poder e o adorava, mas sua alma de mulher era triste. Amélia era infértil. E a pequena Evelin veio preencher aquele vazio, a menina de olhos de serpente, era sua filha.

Evelin vivia um conto de fadas, era amada e mimada, agora já não era mais a menina triste, era uma moça linda, os cabelos eram ainda mais fulvos, os olhos amarelos ganharam um brilho intenso, emitiam uma luz que seduzia, enfeitiçava, o rosto cheio era uma perfeição, parecia obra do mestre Da Vinci, corpo esculpido, pernas grossas da cor de mel, seios firmes que apontavam para o firmamento... era perfeita, deliciosa...

Aos dezesseis anos, conheceu o amor. Era um rapaz bonito, forte, filho de um grande fazendeiro da região, o temido Coronel Afonso Menesguetti. Um aristocrata, que com mãos-de-ferro triplicara o império deixado pelo pai. Era um homem severo e implacável com seus inimigos. Ao contrário do Coronel, o jovem Eduardo Afonso Menesguetti Neto, era a generosidade em pessoa, educado, caridoso, humilde, além de possuir o dom da poesia. Ele amava a vida, as pessoas e os versos, não se importava com o império latifundiário do seu pai, era avesso às luxuosas festas que constantemente eram oferecidas na fazenda. Gostava de sentar sob a sombra do grande Ipê-amarelo e lá, escrevia seus poemas.

Evelin era péssima em matemática, então, resolveu ter aulas de reforço. Ao entrar na sala 101, viu um rapaz. Era um pouco mais velho, devia ter uns dezenove anos. O rapaz era alto, forte, a pele queimada pelo sol, cabelos negros como uma noite sem lua, um rosto bonito que emanava uma onda de benevolência. Seu coração adolescente disparou, ela queria voltar, mas uma voz forte como trovão, fê-la recuar.

- Ei! Volte por favor!

Suas pernas tremeram, seu corpo todo estremeceu.

- Eu... Eu... - Ela não conseguia articular uma frase.

- Você é a menina que vai estudar matemática, não é?

- Sim. - A voz estava engrolada.

- Eu sou Eduardo, o diretor incumbiu-me do cargo...

- Você é o professor? - Ela estava assustada.

- Sim, algum problema? - perguntou sorrindo

- Não! É que ...

- Eu sou muito novo. - concluiu a frase.

- É...

- Qual o seu nome?

- Evelin... - Ela estava corada. Dois sentimentos brigavam em seu interior: a vergonha e o desejo.

- Então, Evelin vamos começar? - Disse ele brincando

- Vamos. - O corpo dela tremia.

No começo, ele pensou que ela era só igual às outras que só se interessavam pela sua fortuna, pelo seu nome. Mas ela era diferente, não falava de coisas materiais, era simples, apesar de se vestir com elegância, era inteligente, compartilhavam dos mesmos gostos e sonhos, foi então, debaixo do pé de Ipê-amarelo que o jovem Eduardo descobriu o amor, descrevendo-o assim:

"O amor"
Diz que o amor é fogo que arde.
Digo: é chama que invade.
Diz que o amor rima com a dor.
Digo: rima melhor com sabor
Diz que o amor é saudade.
Digo: é a mais pura verdade.
Diz que o amor e um tormento.
Digo: é o mais nobre dos sentimentos.
Diz que o amor humilha.
Digo: quem ama, compartilha.
Diz que o amor enlouquece.
Digo: ele engrandece.
Diz que o amor é ilusão.
Digo: é real, pois vem do coração.
Diz que o amor é chuva passageira.
Digo: é eterno, é pra vida inteira.

Ele percebeu que abaixo do ultimo verso, que havia escrito o nome da sua amada Evelin. Ele estava amando e descobriu que seria eterno.

A menina não conseguia mais esconder seus sentimentos e por fim, chegou próximo a Eduardo e falou num sussurro engasgado:

- Eu te amo! - As palavras saíram de uma vez, e ela abaixou a cabeça, envergonhada.

Ele sorriu, seu coração estava disparado, e quase sem fôlego, respondeu:

- Eu também te amo! - Ele estava flutuando, cavalgando nos cirros do céu-azul.

Um beijo de amor aconteceu.

O romance estava no auge, e o amor era ainda maior. Faziam planos e mais planos para o futuro, Eduardo lhe trazia um novo poema a cada dia, mas o poema que o fez descobrir seu amor, estava guardado, ele a entregaria no dia do casamento. Ele mudou sua rotina, passou a se interessar pelos negócios do pai, trabalhava arduamente, juntando cada centavo que lhe era dado.

Eles já estavam juntos há um ano e a vontade de casar era enorme, pois haviam feito votos de castidade, e só se entregariam completamente na noite de núpcias. Eduardo trabalhava sem parar, não gastava um tostão sequer, vivia suspirando pelos cantos da casa, foi quando Afonso Menesguetti desconfiou que havia algo estranho com seu filho. Ele dirigiu-se ao capataz da fazenda e ordenou:

- Quero que você siga o meu filho, quero saber de todos seus passos.

Como de costume, Eduardo foi ao colégio encontrar-se com a bela Evelin, ele já havia se formado, mas todos os dias ele ia buscá-la e depois iam para o local secreto onde ficavam até o cair da noite. Amélia no começo ficou preocupada, mas por fim cedeu a vontade da "filha", sempre recomendando: "Cuidado com a sua virgindade, ela é seu maior tesouro". E a menina respondia: "Eu sei mãe, sei muito bem"...

No outro dia bem cedo, o capataz fazia o levantamento de toda a vida da bela Evelin. Ele voltou radiante para a fazenda e no caminho, veio pensando: "O Coroné vai ficá feliz e quem sabe me dá até um armento". O capataz foi direto ao escritório:

- Coroné eu discobri tudo sobre a tár mocinha...

- Então vai desembuchando! - Berrou o Coronel.

- A tár moça, é fia daquele corno do Augusto Bernardino que matô a gorda e o amante e dispois se enforcô. Diz o povo que a menina é fia do "cão", que quando ela nasceu, matou a mãe e desgraçô o pai, agora ela mora com uma puta de luxo, aquela tár de Amélia Olhos de Serpente...

- Chega! Já ouvi o bastante. Vá chamar o meu filho.

- Sim, sinhô! Dá licença ..."E o meu armento, véio filho da puta". - Pensou.

Eduardo estava em seu quarto, descansando, quando o capataz deu-lhe o recado.

- O senhor mandou me chamar?

- Mandei, sente-se. - O Coronel estava possesso de ódio.

- O quê aconteceu, meu pai? - Perguntou Eduardo.

- Tudo! Tudo o que não poderia acontecer... - Ele bateu com o punho cerrado na grande mesa de carvalho.

- Tudo o quê? - Eduardo estava assustado.

- Eu sei de tudo, sei que você está namorando uma putinha...

- Não fale assim dela! - Gritou, Eduardo.

- Eu falo como quiser, seu moleque! Até entendo que você precisa de uma mulher para dar umas "trepadas", mas querer se casar com uma puta, isso eu não aceito! Ele estava furioso.

- Ela não é puta, e se quer saber, eu não "trepei" com ela, fizemos um juramento que isso só iria acontecer na noite de núpcias.

- Quanta ingenuidade! Você acha que uma puta...

- Já disse para não chama-la assim! - Gritou , levantando-se da mesa.

- Senta aí moleque! - Gritou o Coronel. - Você não pode continuar com essa besteira, esqueceu-se que tem um nome a zelar? Esqueceu-se que é um Menesguetti?

- Eu renego! Renego nome, fortuna, renego tudo...

- Cale a boca! Você não sabe do que esta falando...

- Eu sei sim, sei que o senhor matou, roubou, fez o diabo para conseguir esse tal poder, mas eu não quero, não quero nada que venha de suas mãos imundas...

O Coronel levantou-se num sobressalto.

- Eu te mato, desgraçado! - Berrou.

- Prefiro morrer! Ninguém neste mundo, nem mesmo o senhor será capaz de interferir em minha vida...

Eduardo levantou-se, os punhos fechados, e uma expressão de fúria, brotou em seu rosto sereno.

- Ninguém, vai me impedir de ser feliz!

- Cale a boca! Berrou o Coronel, empunhando uma 45.

- Então, vai ter que me matar, pois vou me casar com a Evelin! - Disse com convicção.

- Eu te mato, desgraçado! Eu te mato! - O Coronel aproximou-se do filho.

Eduardo sentiu um medo que nunca sentira antes.

- Eu o enfrentarei meu pai, o enfrentarei com isso!

Ele levou a mão direita no bolso de trás de sua calça, e naquele instante sentiu sua pele queimar, alguma coisa em brasa dilacerava sua carne, e uma nuvem sombria caiu sobre seus olhos. O Coronel estava desesperado:

- Meu filho, meu filho, fale comigo... me perdoe...

Os olhos semicerrados se abriram e Eduardo já envolvido pelo abraço da morte, balbuciou:

- Perdoe-me, meu pai... perdoe-me por amar...

Os olhos se fecharam para sempre, e na sua mão direita estava um pedaço de papel manchado pelo seu sangue, onde o poderoso Coronel Afonso Menesguetti leu:

"O Amor"
Diz que o amor é fogo que arde.
Digo: Amor é chama que invade...

Afonso Menesguetti sequer leu todo o poema, encostou o cano da pistola 45 em sua fronte e puxou o gatilho, um estampido forte e estrondoso ecoou pela imensidão do seu império. Ele era orgulhoso demais, só Afonso Menesguetti poderia matar Afonso Menesguetti.

A notícia da tragédia correu a cidade como um relâmpago e na porta de sua casa a bela Evelin a recebeu de um moleque que passara na rua:

- Cê tá sabendo da história que aconteceu hoje de tarde na fazenda "Império"? O Coroné Afonso, matô o sinhozinho Eduardo e depois se matô...

Ela acordou, o lugar era estranho, um silêncio assustador, as paredes brancas e um forte cheiro de cloro invadia seu nariz.

- Onde estou? Perguntou com voz sonolenta.

Amélia deu um pulo.

- Graças a Deus! Meu anjo... pensei que nunca mais ia ouvir sua voz...

- Eduardo... onde ele está? Tive um sonho horrível...

Amélia abaixou a cabeça.

- Mãe ... não me diga que é verdade...

- Infelizmente minha filha, foi uma tragédia...

Dois anos haviam passado, Evelin era ainda mais linda, o corpo havia tomado suas formas definitivas, era uma mulher fascinante. Mais uma vez, o passado estava guardado na memória, Eduardo era apenas uma lembrança, apenas uma vaga lembrança.

Depois do trágico fato, Amélia mudou-se com Evelin para Belo Horizonte, comprou uma confortável casa na Savassi, onde promovia seus encontros de "negócios". Na casa, haviam mais quatro lindas moças que Amélia recrutara para expandir seu empreendimento. A casa vivia cheia, as moças e a Amélia não conseguia dar conta da demanda. Amélia proibira qualquer homem de chegar perto de Evelin, era a única que não estava disponível.

As "brigas" com Deus eram cada dia mais frequentes, Evelin estava seguindo os mesmos caminhos do pai, e num dia de revolta, decidiu: - serei puta!

Vestiu um longo preto decotado que realçava roda a sua beleza, maquiou-se, usava um batom vermelho que fez os homens da "casa" lamberem os lábios de desejo.

- O que é isso? - Perguntou Amélia.

- Agora serei uma de vocês! É o que quero!

- Mas...você não pode...

- Amélia, o destino traçou o meu caminho e a Evelin que você conheceu, está morta! Agora serei apenas Olhos de Serpente. - Disse a bela com um ar de desdém.

No fundo, Amélia vibrou com a notícia, mais cedo ou mais tarde, ela iria descobrir sua verdadeira vocação, e ela havia aprendido, seus olhos eram mortais, eram olhos de serpente.

Amélia espalhou a notícia por toda Belo Horizonte, e no dia seguinte havia uma grande fila para o leilão.

Os lances começaram, a virgindade daquela bela mulher tinha preço e era alto. Ao final de quase uma hora de lances, sua virgindade foi arrematada por um importante político mineiro que apregoava a importância da família, pela bagatela de U$ 15.000,00. Era um homem de cinquenta e poucos anos, cabelos cor de chumbo, corpo atlético e uma libido animal. Foram para o quarto especialmente decorado para a ocasião, Amélia pediu ao homem que tivesse cuidado com sua menina, e ele apenas balançou a cabeça, mordendo os lábios.

Ela estava deitava sobre a cama redonda, usava uma lingerie branca, demonstrando sua pureza, aquele corpo maravilhosamente esculpido, aos dezenove anos, fez nascer no homem que estava em sua frente um desejo incontrolável. Ela o olhou, e seu olhar o atraiu, do mesmo modo que a serpente hipnotiza e atraí suas presas. O homem tirou as roupas apressadamente, e começou a percorrer aquele corpo cor de mel. Ela fechou os olhos, estava usando um lindo vestido de noiva, ao seu lado, Eduardo usava um terno preto com riscas de giz, ele estava ainda mais lindo e a carregava em seus braços fortes. Ela estava deitada e Eduardo fazia-lhe carícias, umedecendo seu sexo e a inundando de prazer e paixão. Agora ela estava nua, as mãos hábeis de Eduardo percorriam todo o seu corpo, encontrando seu sexo úmido, e sedento de paixão. Então, ela sentiu seu membro rijo penetrando seu sexo, num misto de dor e êxtase, e ele entrava, rasgando sua carne, sangrando seu corpo, inundando-a de prazer. Ela gritou: -" Ah! Eduardo eu te amo! Como te amo..." Abriu os olhos e viu aquele estranho ao seu lado, com um sorriso nos lábios a perguntar:

- Como sabe o meu nome? Isso não importa, eu também te amo...

Agora, vinte anos depois, ela estava sentada no banco de couro do seu luxuoso carro, os vidros pretos escondiam aquela figura, a figura de uma mulher madura, extremamente bonita e triste. A mão direita sobre o peito, onde estava preso o broche dourado e torto com formas de uma maçã mordida. O filme de terror que fora uma vida, havia acabado de passar, outra lágrima teimou em sair e ela deixou-a rolar por sua face, e num breve e triste sussurro, disse:

- "O amor escolhe seu par, e eu não fui escolhida".

(Bela Vista de Minas, 15 de outubro 2002)

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