O dia amanheceu ensolarado. Identificava-se o céu como um imenso plano,
azulado em toda a sua extensão, que se findava no horizonte. Amorfas
nuvens brancas tornavam a abóbada celeste num teatro de reconhecidas
formas humanas. Fachos tênues do rei dos astros penetravam pela janela,
que dormira parcialmente aberta, tocando a cama do casal. Lufadas suaves de
um vento primaveril compeliam as cortinas do quarto de Berenice a um bailar
mudo. Ela despertou com o ronco do marido, que dormia de costas para ela. E
como ele roncava. Ela não se levantou. Seus olhos fixaram-se na transparência
dos vidros da janela, captando a claridade e o fulgor do dia bonito que emergia
lá fora. Mas bonito apenas para os outros. Há pouco mais de um
par de meses tornara-se avó, mais uma vez. Nascera seu quinto neto. Uma
criança que trouxera felicidade a todos. Berenice estava feliz perante
a família, mas triste na intimidade. No instante que sua consciência
sentava-se diante do espelho e começava a refletir, aparecia sua angústia
secreta.
Ela era uma mulher de quarenta e poucos anos de idade. Alegre e sempre disposta,
agia impelida por um dinamismo contagiante. Seu rosto apresentava discretas
vertentes do tempo, que não denegriam sua inequívoca beleza. Os
cabelos sedosos e curtos tinham um corte que a tornava mais jovem e atraente.
Caminhadas ao ar livre e a assiduidade à academia de musculação
sincretizavam-se na fórmula que a mantinha com as curvas sedutoras que
lhe renderam o título de rainha das piscinas do clube. Sua sensualidade
era incontestável com roupas justas ou esvoaçantes. Convertida
em objeto de disfarçados elogios do segmento masculino, sentia-se envaidecida
pela perturbação que causava. Em verdade, submetera-se à
ação de um par de mãos divinas que lhe subtraíram
excessos de gordura localizada e ascenderam os seios, outrora tão admirados
pelas amigas nos tempos áureos de sua vida. Embora os anos tenham passado,
ela não perdera o espírito jovial. Sentia-se viva. Sentia-se mulher.
Entretanto, o marido não gozava do mesmo ânimo. Orlando aposentara-se
com pouco mais de cinquenta anos de idade e da data que abandonou sua atividade
profissional nunca mais voltou a fazer nada. Dominado por uma manifesta frouxidão,
adotara o pijama como traje diário e vivia sentado diante da televisão,
assistindo a todas as partidas de futebol que o canal por assinatura proporcionava-lhe.
Transformou-se numa "boca nervosa", assaltando a geladeira até
mesmo durante a madrugada. O crescente aumento de peso obrigou-o a adotar o
tamanho GG, que evoluiu para o XG. Passou a transpirar em abundância,
pelas gorduras que desabrocharam. A barriga foi tornando-se protuberante, escondendo
o sexo que ele diminuiu de usar ou que passou a usar de forma ineficiente. Na
proporção que passou a engordar, o desejo foi aos poucos arrefecendo,
e as relações com Berenice tornaram-se esporádicas e depois
uma rara obrigação mecânica. Ir ao teatro, ao clube ou a
festas na casa de amigos, era atividade de lazer constantemente recusada por
ele. Orlando isolara-se do mundo e de sua mulher.
O dia reconhecidamente amanheceu ensolarado, mas para Berenice estava nublado.
Ela sentou-se na cama e seus olhos marejaram quando seu olhar recaiu sobre a
massa corpórea que ronquejava ao lado. O desmazelo subjugara o marido.
E ele não enxergava o que estava acontecendo com o casamento ou não
queria enxergar. Não percebia que ela adorava fazer sexo e, para ela,
sexo era algo candente, que precisa de vigor, de disposição. E
a cada nascimento de um neto, o marido adquiria as feições de
um paquiderme. Entristecida, ela levantou-se e foi para diante do espelho do
banheiro. Ficou olhando para a pessoa que estava ali. Era uma mulher bonita
e radiante, não por seu julgamento pessoal, mas em fato atestado pela
opinião alheia. Não era chata a confirmação de ser
avó pelo nascimento do neto. Era terrível dormir com o avô,
um homem que deixou de ser macho. O coração doía-lhe por
sentir que o corpo ainda vicejava e que sua libido era arremessada à
sarjeta, pela falta de estima do próprio marido. Atormentada pelo espectro
da infelicidade, era a hora de tomar uma decisão.
"Vou à luta, quero um homem de verdade", pensou Berenice.
Jorginho era um homem bonito e rico. Casara-se com Odete, há quinze anos
atrás. Nem precisava dizer que o nome pertencia a uma gorda e feia. Em
várias oportunidades, Berenice olhara para o empresário com uma
malícia evidente e ela imaginava a atração que exercia
sobre ele. Embora atraído, ele nunca tentou conquistá-la, e segundo
ela, também devia ser infeliz, afinal era casado com um barril de banha.
Trair Orlando com Jorginho, um homem rico e viril que devia estar desperdiçando
suas caras energias com aquela montanha de gorduras saturadas, seria uma infidelidade
maravilhosa. E quem sabe, se a traição de Berenice fosse prazerosa,
ela poderia propor uma dupla separação ao novo amante e viveriam
felizes em alguma mansão à beira-mar.
Berenice não esperou uma oportunidade. Criou a sua.
Ela sabia que durante a semana, sua vítima frequentava o clube,
exercitando-se nas quadras de tênis com amigos. Esporte de rico é
tênis. A mulher, que era avessa a qualquer modalidade de exercício
físico, permanecia em casa, fazendo sei lá o quê. Berenice
produziu-se, vestindo uma roupa justa e discreta, mas sensual. E foi assistir
a uma das partidas de Jorginho. Ficou na arquibancada, observando-o, apresentando
uma beleza perturbadora. Em seus pensamentos deleitava-se com as fantasias sexuais
que ocorreriam entre os dois. Ela executaria tudo o que sabia fazer bem e que
há muito não fazia com o marido. Jorginho não resistiria
a seus encantos. Era casado com uma mulher sem atrativos e não devia
ser feliz. Não tinha o sexo que merecia. No porta-malas do carro, Berenice
acomodou um arsenal de acessórios eróticos que resgatou do fundo
do armário do closed. Aqueles artefatos eram providenciais à performance
que planejava. Depois da partida convidaria Jorginho para um drinque e tudo
terminaria no motel mais luxuoso da cidade. Ela pretendia levá-lo à
exaustão, mostrar-lhe o que era ter uma mulher de verdade nos braços.
Esse era o plano.
A partida terminou. O convite foi aceito e na mesa do restaurante, Berenice
atacou. Disse o quanto se sentia atraída por Jorginho e que desejava
ter um momento de amor com ele.
"Certamente, ele não recusará", pensou ela.
Após ouvir palavras sedutoras e o convite ao amor, o empresário
fitou-a nos olhos e disse:
- Você é uma mulher bonita, atraente, que pode fazer qualquer homem
feliz, de todos os modos e sentidos...
Berenice ficou radiante e envaidecida.
- Mas, eu sinto dizer... amo minha mulher e não vou traí-la.
Espantada, ela retrucou:
- O quê?! Você está recusando fazer amor comigo?!
- Amor não, sexo.
- Sim, sexo - disse a caçadora.
Jorginho ficou calado, olhando para Berenice.
- Sim.
- Mas a tua mulher é uma gorda e o teu casamento é morno, sem
sal!
- Eu não penso assim...
- Você está me desprezando, Jorginho?!
- Berenice, você é uma tentação de mulher, mas eu
amo a minha esposa, como ela é... um dia ela foi bonita e magra, como
você, por mais incrível que pareça, mas devido a problemas
de saúde e à perda de filhos em gestação, ela ficou
como está... minha mulher não perdeu a autoestima, foi a vida
que a desgastou... nosso amor não mudou, amo-a como sempre a amei...
- Não, eu, eu não acredito!
- Acredite, amo como sempre a amei...
- Não, você não pode gostar de uma mulher, daquele tamanho!
O empresário balançou a cabeça e encarou Berenice.
- Vejo que você vive problemas com o Orlando... ele engordou muito desde
que se aposentou... tente compreendê-lo... às vezes, nossa autoestima
entre em declínio e somos levados a mergulhar num poço escuro
e profundo... abandonamos o que mais amamos e a pessoa que nos acolheu o coração
um dia, acha que não atendemos mais aos seus anseios e desejos... volte
para casa, retire o manto que cobriu o lado bom de seu casamento e veja sua
vida de uma outra forma... tente ser feliz, como eu sou...
Jorginho pagou os drinques e despediu-se, deixando Berenice sozinha. Ela ficou
pensativa e raivosa. Os minutos foram passando e as palavras que ouviu foram,
aos poucos, desvelando as sombras que cobriam sua vida. Mais calma e conformada
com a decepção que sofreu, ela retornou para casa. No decorrer
do caminho, seus pensamentos levaram-na a concluir que a monotonia e falta de
beleza da vida, muitas vezes, depende apenas do ângulo sob o qual observamos
os fatos.