A Garganta da Serpente
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Chato não é ser avó, é dormir com o avô

(Robert Thomaz)

O dia amanheceu ensolarado. Identificava-se o céu como um imenso plano, azulado em toda a sua extensão, que se findava no horizonte. Amorfas nuvens brancas tornavam a abóbada celeste num teatro de reconhecidas formas humanas. Fachos tênues do rei dos astros penetravam pela janela, que dormira parcialmente aberta, tocando a cama do casal. Lufadas suaves de um vento primaveril compeliam as cortinas do quarto de Berenice a um bailar mudo. Ela despertou com o ronco do marido, que dormia de costas para ela. E como ele roncava. Ela não se levantou. Seus olhos fixaram-se na transparência dos vidros da janela, captando a claridade e o fulgor do dia bonito que emergia lá fora. Mas bonito apenas para os outros. Há pouco mais de um par de meses tornara-se avó, mais uma vez. Nascera seu quinto neto. Uma criança que trouxera felicidade a todos. Berenice estava feliz perante a família, mas triste na intimidade. No instante que sua consciência sentava-se diante do espelho e começava a refletir, aparecia sua angústia secreta.

Ela era uma mulher de quarenta e poucos anos de idade. Alegre e sempre disposta, agia impelida por um dinamismo contagiante. Seu rosto apresentava discretas vertentes do tempo, que não denegriam sua inequívoca beleza. Os cabelos sedosos e curtos tinham um corte que a tornava mais jovem e atraente. Caminhadas ao ar livre e a assiduidade à academia de musculação sincretizavam-se na fórmula que a mantinha com as curvas sedutoras que lhe renderam o título de rainha das piscinas do clube. Sua sensualidade era incontestável com roupas justas ou esvoaçantes. Convertida em objeto de disfarçados elogios do segmento masculino, sentia-se envaidecida pela perturbação que causava. Em verdade, submetera-se à ação de um par de mãos divinas que lhe subtraíram excessos de gordura localizada e ascenderam os seios, outrora tão admirados pelas amigas nos tempos áureos de sua vida. Embora os anos tenham passado, ela não perdera o espírito jovial. Sentia-se viva. Sentia-se mulher.

Entretanto, o marido não gozava do mesmo ânimo. Orlando aposentara-se com pouco mais de cinquenta anos de idade e da data que abandonou sua atividade profissional nunca mais voltou a fazer nada. Dominado por uma manifesta frouxidão, adotara o pijama como traje diário e vivia sentado diante da televisão, assistindo a todas as partidas de futebol que o canal por assinatura proporcionava-lhe. Transformou-se numa "boca nervosa", assaltando a geladeira até mesmo durante a madrugada. O crescente aumento de peso obrigou-o a adotar o tamanho GG, que evoluiu para o XG. Passou a transpirar em abundância, pelas gorduras que desabrocharam. A barriga foi tornando-se protuberante, escondendo o sexo que ele diminuiu de usar ou que passou a usar de forma ineficiente. Na proporção que passou a engordar, o desejo foi aos poucos arrefecendo, e as relações com Berenice tornaram-se esporádicas e depois uma rara obrigação mecânica. Ir ao teatro, ao clube ou a festas na casa de amigos, era atividade de lazer constantemente recusada por ele. Orlando isolara-se do mundo e de sua mulher.

O dia reconhecidamente amanheceu ensolarado, mas para Berenice estava nublado. Ela sentou-se na cama e seus olhos marejaram quando seu olhar recaiu sobre a massa corpórea que ronquejava ao lado. O desmazelo subjugara o marido. E ele não enxergava o que estava acontecendo com o casamento ou não queria enxergar. Não percebia que ela adorava fazer sexo e, para ela, sexo era algo candente, que precisa de vigor, de disposição. E a cada nascimento de um neto, o marido adquiria as feições de um paquiderme. Entristecida, ela levantou-se e foi para diante do espelho do banheiro. Ficou olhando para a pessoa que estava ali. Era uma mulher bonita e radiante, não por seu julgamento pessoal, mas em fato atestado pela opinião alheia. Não era chata a confirmação de ser avó pelo nascimento do neto. Era terrível dormir com o avô, um homem que deixou de ser macho. O coração doía-lhe por sentir que o corpo ainda vicejava e que sua libido era arremessada à sarjeta, pela falta de estima do próprio marido. Atormentada pelo espectro da infelicidade, era a hora de tomar uma decisão.

"Vou à luta, quero um homem de verdade", pensou Berenice.

Jorginho era um homem bonito e rico. Casara-se com Odete, há quinze anos atrás. Nem precisava dizer que o nome pertencia a uma gorda e feia. Em várias oportunidades, Berenice olhara para o empresário com uma malícia evidente e ela imaginava a atração que exercia sobre ele. Embora atraído, ele nunca tentou conquistá-la, e segundo ela, também devia ser infeliz, afinal era casado com um barril de banha. Trair Orlando com Jorginho, um homem rico e viril que devia estar desperdiçando suas caras energias com aquela montanha de gorduras saturadas, seria uma infidelidade maravilhosa. E quem sabe, se a traição de Berenice fosse prazerosa, ela poderia propor uma dupla separação ao novo amante e viveriam felizes em alguma mansão à beira-mar.

Berenice não esperou uma oportunidade. Criou a sua.

Ela sabia que durante a semana, sua vítima frequentava o clube, exercitando-se nas quadras de tênis com amigos. Esporte de rico é tênis. A mulher, que era avessa a qualquer modalidade de exercício físico, permanecia em casa, fazendo sei lá o quê. Berenice produziu-se, vestindo uma roupa justa e discreta, mas sensual. E foi assistir a uma das partidas de Jorginho. Ficou na arquibancada, observando-o, apresentando uma beleza perturbadora. Em seus pensamentos deleitava-se com as fantasias sexuais que ocorreriam entre os dois. Ela executaria tudo o que sabia fazer bem e que há muito não fazia com o marido. Jorginho não resistiria a seus encantos. Era casado com uma mulher sem atrativos e não devia ser feliz. Não tinha o sexo que merecia. No porta-malas do carro, Berenice acomodou um arsenal de acessórios eróticos que resgatou do fundo do armário do closed. Aqueles artefatos eram providenciais à performance que planejava. Depois da partida convidaria Jorginho para um drinque e tudo terminaria no motel mais luxuoso da cidade. Ela pretendia levá-lo à exaustão, mostrar-lhe o que era ter uma mulher de verdade nos braços. Esse era o plano.

A partida terminou. O convite foi aceito e na mesa do restaurante, Berenice atacou. Disse o quanto se sentia atraída por Jorginho e que desejava ter um momento de amor com ele.

"Certamente, ele não recusará", pensou ela.

Após ouvir palavras sedutoras e o convite ao amor, o empresário fitou-a nos olhos e disse:

- Você é uma mulher bonita, atraente, que pode fazer qualquer homem feliz, de todos os modos e sentidos...

Berenice ficou radiante e envaidecida.

- Mas, eu sinto dizer... amo minha mulher e não vou traí-la.

Espantada, ela retrucou:

- O quê?! Você está recusando fazer amor comigo?!

- Amor não, sexo.

- Sim, sexo - disse a caçadora.

Jorginho ficou calado, olhando para Berenice.

- Sim.

- Mas a tua mulher é uma gorda e o teu casamento é morno, sem sal!
- Eu não penso assim...

- Você está me desprezando, Jorginho?!

- Berenice, você é uma tentação de mulher, mas eu amo a minha esposa, como ela é... um dia ela foi bonita e magra, como você, por mais incrível que pareça, mas devido a problemas de saúde e à perda de filhos em gestação, ela ficou como está... minha mulher não perdeu a autoestima, foi a vida que a desgastou... nosso amor não mudou, amo-a como sempre a amei...

- Não, eu, eu não acredito!

- Acredite, amo como sempre a amei...

- Não, você não pode gostar de uma mulher, daquele tamanho!

O empresário balançou a cabeça e encarou Berenice.

- Vejo que você vive problemas com o Orlando... ele engordou muito desde que se aposentou... tente compreendê-lo... às vezes, nossa autoestima entre em declínio e somos levados a mergulhar num poço escuro e profundo... abandonamos o que mais amamos e a pessoa que nos acolheu o coração um dia, acha que não atendemos mais aos seus anseios e desejos... volte para casa, retire o manto que cobriu o lado bom de seu casamento e veja sua vida de uma outra forma... tente ser feliz, como eu sou...

Jorginho pagou os drinques e despediu-se, deixando Berenice sozinha. Ela ficou pensativa e raivosa. Os minutos foram passando e as palavras que ouviu foram, aos poucos, desvelando as sombras que cobriam sua vida. Mais calma e conformada com a decepção que sofreu, ela retornou para casa. No decorrer do caminho, seus pensamentos levaram-na a concluir que a monotonia e falta de beleza da vida, muitas vezes, depende apenas do ângulo sob o qual observamos os fatos.

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