A Garganta da Serpente
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O beco

(Robert Thomaz)

Não foi a tosse que o acordou. A dor em assalto ressurgiu no peito, presente como no período de vigília. Ainda zonzo pelo sono que o abateu no limiar da noite, a mão macia transitou insegura pelo cenho que porejava. Eram remanescentes suores noturnos. Sentou-se devagar na beira do colchão e os olhos enevoados mal distinguiram as formas ao redor. As reminiscências do sonho o deixaram assustado por breves instantes, que desapareceram numa aspiração longa, profunda. Depois de detalhada análise dos exames, o médico lhe disse que a tuberculose voltara, devido à interrupção leviana do tratamento. O diagnóstico trouxe dores, por todas as partes do corpo. Seus ouvidos pareciam ainda escutar em eco as palavras que o doutor proferira categórico. Ele não as gravara na mente confusa, mas sabia que a recorrência trazia mais sofrimento e mortalidade do que muitos julgavam. Pequena percentagem escapava ao fim. Temia não estar inserido na parcela ilesa. Sentiu as entranhas tremerem. Talvez fosse o medo a arrepiar. Por que medrar? Não seria o fim, ainda não, assim pensava ele.

O alvor penetrava luminoso pelas seteiras ordenadas e alinhadas das janelas do quarto. Levantou-se e caminhou até uma delas. O pijama corrugado cobria a alma agônica, que sustentava com dificuldades o corpo avesso a esforços físicos de qualquer natureza. Abriu a janela cujas dobradiças rangeram, assinalando o longo tempo que estavam ali. Aguardou um vento brando e agradável que não penetrou no quarto e não tocou seu rosto macerado. Balançou a cabeça, movimento que o lembrou do motivo da ausência da brisa marítima. Apoiou as mãos no parapeito e esticou o pescoço para frente, girando a cabeça para a esquerda. Seu olhar taciturno colidiu com a muralha de prédios, muito mais altos do que aquele em que morava, que impediam há muito que as brisas do mar chegassem até ali. Recordou-se do mar, de suas águas escuras e espumosas, afagando as areias da praia, provocando um murmúrio indelével na mente de quem presenciava aquele espetáculo. Desolado, recolheu o torso para dentro e debruçou-se no peitoril da janela, ficando a olhar para baixo.

Apesar de o apartamento localizar-se no quinto andar do prédio, a janela do quarto permitia, sem dificuldades, a vista do beco. Ele não era escuro, mas vivia tomado por sombras. As paredes que se confrontavam eram cobertas por uma camada escura, ora limosa, ora fuliginosa. Poucas latas de lixo. Tortas, enferrujadas, com ou sem tampas. Acondicionavam restos, oriundos da padaria ou dos bares e restaurantes das ruas adjacentes. Pedaços de jornal e papel ascendiam em voos sinuosos, para depois cair suavemente, indo depositar-se na superfície gordurosa e escura do piso. A energia misteriosa que os movimentava era o vento que invadia o estreito sem saída. Lufadas causadas pelos veículos que passavam rapidamente na rua em frente, percorriam as paredes, acarinhando-as com seu dorso frio e leve, para finalmente desfazer-se no fundo. O silêncio que habitava o beco era rompido pelo ruído das surdinas em passagem ou pelos roncar dos exaustores de uma padaria que expulsava seus odores. Os rumores vindos de fora não desassossegavam a população que ali vivia. Ela era reduzida, nada mais que uma plêiade de gatos. Num primeiro instante lhe pareceu que apresentavam uma pelagem preta-e-branca, mas concluiu que a distância e o efeito das madrugadas insones traíam sua visão. Ficou absorto pela celebração que lá embaixo se desenvolvia. O grupo de felinos disputava avidamente os restos mortais de um grande peixe, descartado possivelmente por um dos restaurantes das cercanias. A anarquia e a voracidade com que dividiam a carcaça, talvez mais avermelhada pelos molhos que a cobriam do que pelo sangue que golfava a cada dentada, determinava a escassez de alimentos no beco. Um ou outro miava em desalento, no instante que era arrebatado da divisão por um concorrente mais afoito. Nacos de carne mais volumosos quando arrancados eram levados para longe dali, para que o felizardo se regozijasse isoladamente. A fome manifestada pelos felinos foi evidenciada também por alguém, que seus olhos viram avançar pelo estreitamento do beco. O homem, ou o que restara dele, caminhava com dificuldade, fato que lhe chamou a atenção. Andrajoso, ele arrastava uma das pernas, certamente sequela de algum grave acidente que o aleijou. Com a crescente, porém lenta, aproximação, seus piedosos olhos se fixaram no semblante do esmolambado. Os cabelos eram grisalhos apesar da fuligem e densa sujeira que os enegrecia. A barba estava crescida e cobria boa parte do rosto que parecia triangular. A pele era branca, embora estivesse coberta por sujeira e feridas. O nariz adunco aparentava fungar todos os odores do beco, puros e impuros, doces e amargos, saudáveis e fétidos. A boca de lábios fendidos pelo frio noturno estava entreaberta, não para num momento expressar sua dor visceral imposta pela penúria que vivia, mas para aspirar o ar com dificuldade. Os olhos eram azuis, não maculados pela imundície que o circundava, e no espelho deles era possível ver a fome e o desgosto que o combalia. Ele se aproximou da partilha felina que ainda se desenvolvia e parou de repente. Olhou ao redor. Os restos de comida eram poucos e diminutos, insuficientes para saciar a apetência que oprimia seu estômago. A boca entreaberta gritou, esbravejou, causando temor e afastando os gatos do animal carcomido. O homem agachou e passou a comer avidamente o que restara da carcaça despedaçada. A voracidade demonstrada por suas mãos enroladas em trapos que, em gestos mal articulados, apanhavam a comida e a empurravam goela abaixo, comoveu aquele que do alto, observador e mudo, contemplava a atmosfera sombria do beco. Ainda debruçado no peitoril, sentia uma dor lancinante, causada por duas vertentes. Uma delas era o isolamento promovido por todos que sabiam ou desconfiavam que era portador de doença contagiosa. A outra era a solidão em que mergulhara, devido ao divórcio exigido pela mulher que não admitia o ofício de escritor. Ainda podia ouvi-la vociferar: "... escrever não enche barriga de ninguém!". As admoestações da esposa em relação ao ofício causavam-lhe um forte desagrado. A escrita era seu maior prazer, e por não compreendê-lo, a mulher o desprezou. Depois do divórcio passou a morar sozinho naquele apartamento de apenas um quarto. A faxineira vinha uma vez por semana retirar a poeira, que penetrava pelas frestas das janelas, e arrumar aquilo que ele não desarrumava. Em alguns momentos, a solidão o oprimia tanto que pensava em recrutar os serviços sexuais de alguma jovem da Praça da Bandeira, mas estava muito velho e cansado para isso. Havia o desejo, entretanto, era desarticulado pelo comedimento e pelo despreparo físico. O devaneio se dissipou num piscar de olhos, no instante em que o homem se levantou e foi acomodar-se junto a algumas latas de lixo que se amontoavam em uma das paredes. Nacos esbranquiçados do peixe ainda flutuavam entre a boca ressequida e a barba imunda quando ele ergueu a cabeça e fitou aquele que o observava em silêncio. O mendigo levantou o punho num gesto irreverente e esbravejou, xingou. A ofensa lhe causou tão forte impacto que o levou a fechar a janela.

Infeliz, ele caminhou até a escrivaninha que ficava ao lado da cama. Sentou-se na cadeira de estofamento rasgado e murcho e ficou a olhar para o teclado da máquina de escrever. Passou as mãos pelos cabelos, que contornaram a nuca e voltaram para o rosto, amparando os maxilares. Ficou olhando para as teclas da máquina e para o papel em branco. Podia ouvir sua própria respiração. Buscava há anos a inspiração que talvez lhe trouxesse o reconhecimento desejado. Escreveu contos, crônicas e romances policiais de qualidade, mas nenhum deles fora enaltecido pela sociedade literária ou acolhido como sucesso pela imprensa nacional. Súbito, a mente precipitou-se num turbilhão e a imagem do beco e seus matizes ressurgiram claramente diante de seus olhos. Algo visceral o inquietou e a vacuidade passou a estruturar-se. Ele puxou a cadeira para mais próximo da mesa e movimentou os dedos. A respiração acelerou-se e ele ajeitou os óculos no rosto. Passou a datilografar freneticamente. Letras, palavras, frases surgiam e ideias emergiam de suas mãos. Um discreto sorriso, há muito esquecido, estampou seu rosto, identificando o alcance de uma vitória.

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