A Garganta da Serpente
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Da chuva ao poeta

(Roberta Tostes Daniel)

(para Teófilo Tostes, ou simplesmente Téo, meu irmão querido)

Poderia chover de novo, como tem feito São Pedro à moda mineira, calado, um pouco resoluto demais - pra não dizer teimoso; os destinos dessa terra molhada lá fora que eu cheiro como se o passado fosse. Cheiro como quem sorve da terra seus nutrientes, e apresenta raízes improváveis que se assemelham com as raízes das plantas. Observo o cenário que avistei semana passada da janela do ônibus: canteiros alagados pela submissão à chuva; eu salva das marés, porém embriagada, a inalar o odor de terra misturada com água, com tudo que brota de dentro da terra e que ajuda as plantas a crescer. Colhido como se fossem flores, eu retiro da atmosfera esse cheiro único que eu só sou capaz de sentir quando chove. Como se fossem Canteiros na voz de um Raimundo Fagner! Na voz infantil do meu irmão a cantar memórias perdidas. Um menino que passa parte da infância se apaixonando por música e fazendo poesia, só poderia ser o que é hoje: um homem de bem. Um menino que passa a vida aos risos ,quando o mote de suas primeiras horas foi tão trágico, poderia ser tudo nessa vida! Um menino renascido. Bastasse escolher: 'quero ser mágico' ; e sua força de criança irmanada à força de alma, correriam de mãos dadas pelos labirintos das leis da natureza, que é feita de razoável dose de magia quando se quer viver muito. Poderia ser o que quiser! E choveria pela manhã, para que a poesia desabrochasse à tarde. Deve ter sido um dia de chuva, o dia em que algum médico trouxe meu irmão à vida e percebeu que o menino devia ser batizado às pressas, para que Deus não o levasse pagão. Deve ter chovido muito lá pelo céu também enquanto decidiam em reunião diviníssima se o menino voltava, ou se o menino vivia. E o menino viveu. Passou por uns perrengues, mas viveu. Jogou bola, brincou tudo e brincou tanto! Arremessou a bola da vida com tanta força, que hoje é homem feito. E seu sorriso é essa pérola linda. E sua vida é essa graça que ensina. E sua força de viver me arremessa de volta à vida. Como quando arremessou o menino na terra. E fez dele mais frágil. E fez dele o mais forte. Amanhã poderia chover de novo assim que o sol despertasse. Para que eu também despertasse, para que eu chovesse junto com as flores, para que o cheiro da terra molhada me embriagasse de novo no trajeto pra casa, e as pétalas dos meus dedos se abrissem na oferenda do carinho. Assim que amanhecesse, o menino que canta Pavarotti de manhã e desabrocha poeta à tarde, ganharia as cores faiscantes do arco-íris. E os pingos d'água seriam gentis com as nossas lágrimas. Também com os sorrisos.

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