A Garganta da Serpente

Mara Ferreira

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Gallo Ciego (Clássico)

(Mara Ferreira)

A discussão estava acalorada. Ele afirmava que Gallo Ciego (de Bardi) tinha letra, e eu jurava que não. Ele afirmava que Piazzolla a tinha gravado em Forever Tango Vol-I , eu dizia que estava em Tango Argentivo / El Motivo. Amigos tentavam mudar de assunto, mas nós parecíamos estar numa rinha de galos. Aos poucos, as tabernas de Puerto Madero cerravam as portas e nós ali, ávidos por uma bebida, acabamos tomando genebra com água tônica Schwepps. A mistura da bebida trazia um gosto de fel à boca. Encontramos um resto de noite em um cabaré de quinta que, em geral, são os melhores. Uma mulher com 900 gramas de pancake e outro tanto de rouge, passada do setenta, cantava "Sombras nada más" de Jose Contursi e Francisco Lomuto.

Quisiera abrir lentamente mis venas
Mi sangre toda vertida a tus pies
para poder demostrar que más no puedo amar
y entonces morir después


A esta altura parecia que cantava para mim. Olhava dentro dos meus olhos e dizia:

Sombras nada más, acariciando mis manos
Sombras nada más, en el temblor de mi voz
...
Sombras nada más entre tu vida y mi vida
Sombras nada más entre mi amor y tu amor


Que breve fue tu presencia en mi hastio

Não conseguia conter as lágrimas ... e chorei. Chorei tanto que tive que ir ao banheiro para me reconstituir. Sentei no vaso sanitário e depois de alguns minutos reparei num cantinho um envelope vindo da Nova Zelândia e dentro dele um selo comemorativo do 50º Aniversário da morte de Antoine Saint-Exupery. Aí, chorei de vez. Na juventude tinha lido quase todos os livros dele e nunca me esqueci de um trecho no Terra dos Homens que dizia: " ... os náufragos são os que ficam" ... e era exatamente assim que me sentia.

Deixei o envelope onde estava e saí dali direto para rua. Meu amigo já estava lá me esperando, pois imaginava que eu não teria coragem de voltar para dentro. Cruzamos rapidamente a Avenida e tomamos uma das pequenas ruas transversais que sobem em direção à Florida. Na Calle Paraguay, Hotel Waldorf nos hospedamos.

Por economia tomamos apenas um quarto para os dois. Se arrependimento matasse ... !!! Ele roncava como um urso (se é que urso ronca) e eu levantei umas tantas vezes para ir ao banheiro. Sempre achava que estava incomodando, além do que não me saía da cabeça a música e principalmente a letra daquele tango. Para me distrair, fazia tudo para lembrar a letra do Gallo Ciego, embora tivesse a certeza de que não tinha letra. Os primeiros raios de sol me encontraram de olhos pregados no teto. Conversas baixas de pessoas que circulavam pelo corredor, talvez hóspedes que estariam abandonando o hotel naquela hora. Exausta, fui tomada pelo sono e, aproveitando que meu amigo havia virado de lado e já não roncava, dormi.

Acordamos tresnoitados, nada de almoço, já passava das cinco e as confeitarias da Florida já começavam a ficar movimentadas; entramos numa de esquina, que já não lembro o nome. A boca com gosto de cabo de guarda-chuva só pedia algo doce. Seria a boca ou o fígado? Ressaca no corpo. Ressaca moral.

Ficamos ali comendo o que se podia, aproveitando a diferença do dólar que neste momento era favorável aos brasileiros. Saímos olhando vitrines, entramos numa pequena mas excelente livraria, com grande variedade de títulos de fazer inveja a qualquer um de nós. Aproveitei e entrei também na IVONE para comprar alguns presentinhos para mamãe e para o pessoal da redação do jornal. Era um creme feito de óleo de tartaruga, que naquela época ainda não era considerado politicamente incorreto.

Voltamos para o hotel e dormimos mais um pouco e depois, um banho de banheira com sais e tudo mais que tínhamos direito. Ainda cheia de preguiça, fui me arrumando aos poucos, vesti as peças de baixo e me joguei outra vez na cama. Meu amigo, enjoado de ficar no hotel. me animava ... Vesti uma calça Lee e uma T-shirt branca. Pensei que poderia mais tarde sentir frio e escolhi um xale comprado em priscas eras em Lisboa. Ficou bonito, mas faltava alguma coisa para firmá-lo. Fuxiquei na frasqueira e encontrei um broche de família solto no fundo. Coloquei-o como se fosse um alfinete e, pronta, saímos. No final da tarde, que para os argentinos começa às nove da noite, fomos, antes de comer a famosa parrillada, dar um giro pela Ricoleta tomar uns drinks em La Biela, cuja especialidade são os aperitivos (a quem se interessar Av. Quintana, 596).

Quase intuitivamente fomos em direção a Puerto Madero. Alguém no Brasil tinha nos indicado o Hereford, e o nome já diz tudo, especialista em carnes e que ficava bem ali na Av A. Moreau de Justo, que é a principal.

Algo me dizia que aquela noite, que mal se iniciava, seria rara.

Pedimos apenas uma da dita parrillada para nós dois e, naturalmente, vinho. O maitre executivo nos sugeriu o vinho Malbec Shiraz safra1998. Bela pedida! Confesso que nos entusiasmamos e exageramos um pouco. Afinal a noite recém começara!

Saímos do restaurante depois da meia-noite. E parodiando Chico Buarque: "Que a noite é criança e o Tango é menino" . Só nos esquecemos de incluir a frase seguinte: "Que a dor é tão velha.Que pode morrer Olê, olé, olê olá".

Com a barriga cheia tinha me esquecido daquela sensação de que a noite seria rara. A segunda parte da música me remeteu ao velho pressentimento.

Afinal, o que é um pressentimento senão o ato de sentir antecipadamente, mais pela emoção do que pela razão, a ocorrência de um fato futuro, o que gera muitas vezes suspeita e desconfiança? Não comentei com meu amigo. Sinto-o muito sugestionável! E eu, muito racional, não confiava quase nada nesta informação que me vinha de dentro, portanto de difícil confirmação científica. Procurei tirar esta ideia da cabeça e segui. Entramos por pequenas ruas que se formavam como se fosse parte de um tabuleiro de xadrez. Guardavam entre si a segurança de ângulos retos e formavam quadras simétricas. Isto me acalmava. Estava segura. A qualquer momento que justificasse uma fuga, encontraríamos um caminho de saída. Passamos em frente ao cabaré da véspera, trocamos olhares e, para grande alívio, seguimos em frente.

De repente, de uma forma inusitada nos encontramos, à nossa revelia, num conjunto de pequenas ruas que, longe da simetria anterior, eram terrivelmente escalenas e todos sabemos que escaleno significa 'coxo, manco; ímpar (número), de lados desiguais (triângulo); tortuoso, oblíquo'. Na insegurança do traçado, puxei meu amigo pela manga e entramos na primeira porta que apareceu. Era uma espécie de café-concerto. Parecia que a função ainda não começara. Sentamos numa mesa de pista bem pertinho de um tablado que fazia as vezes de palco. Preferi não tomar nenhuma bebida forte e nem de longe água tônica; então pedi uma Quilmes - a deliciosa cerveja Argentina. Ali ficamos esperando que o show iniciasse. Começa ainda com a casa quase vazia e aos poucos foram chegando, em geral casais, mas também pessoas sozinhas que ocuparam os bancos altos junto ao bar.

Chamou-me mais atenção as piruetas do barman do que propriamente a música que ia se arrastando entre milongas e velhos Tangos. Dizem que estes locais só começam a ficar bom mesmo depois da três da manhã... não perguntei por quê ... Aos poucos vai diminuindo a luz, os turistas retornam aos hotéis e o processo de seleção natural permite apenas que restem aficionados, rufiões, chinas e otários. Só eles desfrutarão do que irá rolar por ali.

Nós éramos a exceção que confirmava a regra e, como disse minha amiga em sua tese de mestrado, esta é a hora instável que se impõe. Trocam o pianista e o que se apresenta é um viejo em smoking mais surrado que nunca. Ora martela as teclas, ora las acaricia. Os acordes me parecem familiar. Começo a sentir um certo arrepio. O spot vira-se de um golpe sobre a cantora que no mesmo instante começa a cantar "Sombras nada más". Os mesmos olhos de ontem fixos em mim. Eu pensava ter escapado deste olhar ao passar direto pela porta do cabaré. Mas o destino me atraiu mais uma vez em direção a ele. Decidi aceitá-lo agora como parte de mim. Não fugir era então um desafio. Acolhi o olhar e neste momento vi que aquela mulher era quem chorava. Percebi que devolver-lhe o olhar simplesmente seria leviano, teria sim que acolher o dela. E assim fiquei todo o tempo do show. Recebi em seguida um bilhete seu convidando-me ao camarim. Estremeci levemente, o pressentimento me veio a cabeça num lampejo. Achei que não deveria aceitar o convite. A razão dizia que não, mas o coração achava que sim.

Ressabiada me dirigi ao camarim. O amigo quis me acompanhar mas eu declinei da companhia. Ela me esperava sentada vestida com um peignoir de nylon branco. Colocando minha mão entre as suas perguntou: "Eres de Herrera hija?" Sim, respondi espantada.

"Entonces eres mi nieta". Fiquei pálida, e antes que pudesse responder, retirou com delicadeza o broche que prendia o xale e falou: "Soy tu abuella que pensavas muerta". Ainda não podendo crer na verdade, insisti: " Hija de Pablo Herrera? Que vive em Brasil?". "Si. Este mismo", respondeu emocionada. Não falamos mais nada. Nos abraçamos e de repente tudo ficou raro ... e o que era presságio se confirmou.

(26/28 fevereiro de 2005 - modificado em 20/4/2005)

 

sombraS nadA maS

Quisiera abrir lentamente mis venas
Mi sangre toda vertida a tus pies
para poder demostrar que mas no puedo amar
y entonces morir después
Y sin embargo tus ojos azules
azul que tiene el cielo y el mar
viven cerrados para mi sin ver que estoy aquí
Perdido en mi soledad.
Sombras nada mas, acariciando mis manos
Sombras nada mas, en el temblor de mi voz
Pude ser feliz y estoy en mi vida muriendo
y entre lagrimas viviendo el pasaje mas horrendo
de este drama sin final
Sombras nada mas entre tu vida y me vida
Sombras nada mas entre mi amor y tu amor
Que breve fue tu presencia en mi hastío
que tibias fueron tu mano, tu voz
Como luciérnaga llego tu luz y disipo
las sombras de mi rincón
y yo quede como un duende temblando
sin el azul de tus ojos de mar
que se han cerrado para mi
sin ver que estoy aquí
Perdido en mi soledad

Letra - Jose Contursi
Musica - Francisco Lomuto

Vaso Alqímico?

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