A Garganta da Serpente
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Sweet Pimenta

(Samantha Abreu)

Da série "Mulheres sob Descontrole"

- E essa aqui?
- Ah não, não combina com a minha.
- Ah meu Deus! Pode parar!
- Uma vez namorei um cara que só usava cores fortes. Aí eu, pra equilibrar, tinha que vestir preto ou branco, sempre cores neutras. Depois namorei o... ah, você não conhece, que me deixava usar a cor que eu quisesse, mas em compensação ele não usava nada, saía pela rua com o peito cabeludo à mostra. Eu tinha uma raiva, acabava ficando em casa só pra ele não sair daquele jeito. Cansei negligenciar a mim mesma.
- E eu é que pago por isso?
- Eu só quero que você vista essa camisa verde. Fica uma coisa meio latina, eu gosto assim.
- Argh!
- Acho que vou de peruca. O que você acha?
- É... fica uma coisa assim meio ridícula, mas eu gosto.

Ela falou por mais uma hora sobre toda sua experiência com caras que a impediam de se evidenciar, de todo o tempo em que não pode usar as roupas que queria, nem o tipo de cabelo que estava na moda. Ele procurava um meio de usar todas aquelas histórias de uma maneira divertida. Passou a imaginar todas as crises de nervo que ela deveria ter tido e como ficava engraçada quando estava nervosa. O rosto deformado pela raiva, pálido como só ela conseguia ter. Segurava o riso de canto. Ela falava, desabafava toda sua mágoa com a falta de cores no seu passado e como queria viver com ele uma vida diferente. Sentiu uma vontade louca de tomar a peruca da mão dela, só pra vê-la berrar.
- Você está me ouvindo?
- Imagino como deve ter sido difícil pra você. Mas essa peruca vai ficar ridícula com essa camisa florida.

Assunto para mais meia hora de monólogo, enquanto ele viajava em subdimensões do passado constrangedoramente traumatizante que pra ela era motivo para novas experiências e pra ele, motivo de sarro. Ela ia e voltava pelo corredor, parava em frente ao espelho e gesticulava. Até que ficava bonita assim, de camisa florida, calcinha de algodão e meias. Tanta mulher preocupada em se arrumar demais, até peruca compra e ela bonita daquele jeito, quase nua.
- Não levanto dessa cama hoje se você colocar essa peruca.

O rosto pálido começava a ficar vermelho e ele divertindo-se mais a cada provocação, vendo-a desesperar-se pela falta de argumentos em tentar convencê-lo e o cansaço já chegando.
- Beto. Por-ra. Custa você colocar essa droga de camisa verde?
- Você desiste da peruca?
- Não é justo eu ter que deixar de lado uma vontade tão antiga.

Ai que delícia vê-la fora de si, quase entregue, falindo frente à total calma e serenidade com que ele parecia irredutível.
Ela se sentou na cama, ficou de cabeça baixa e muda por alguns minutos. De repente, ele até ficou preocupado. Não parecia mais a sua pimenta.
Assustadoramente, ela se virou jogando os cabelos pra cima e berrou:
- Eu vou colocar essa droga de peruca e você essa merda de camisa. Agora! Agoraaaa! Ou eu vou sozinha nessa festa! ... Tá duvidando?

Com os olhos arregalados, ele foi se arrastando devagar até a beirada da cama, pegou a camisa do chão e vestiu.
Nervosa era engraçada, mas louca ele tinha medo.

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