A Garganta da Serpente
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O dinossauro

(Severo Brudzinski)

É tarde, passa das duas, manhã de domingo. Miraflores está sentada em sua poltrona predileta assistindo à tevê. Há dias ela não consegue dormir, algo a incomoda. Miraflores é solteira e não tem namorado. Ela gosta mesmo é de estar sozinha em companhia de si mesma. Miraflores tem a aparência fresca e agradável. Apesar dos quarenta e dois anos, seria injustiça atribuir-lhe trinta e oito.

Ela veste um pijama longo de flanela que ganhou de sua mãe. A cor é azul, azul céu. Miraflores gosta de usar este pijama, pois assim, não precisa recorrer ao uso de manta ou cobertor. As noites são muito frias em Curitiba, além disso, não é difundido o uso de calefação na capital.

Miraflores muda de canal, zapeia constantemente. Não há muitas opções na tevê aberta, principalmente naquele horário. O pastor diz palavras sinceras, incisivas. Ele fala sobre a desarticulação da família e do uso de drogas como uma das principais causas do sofrimento no mundo contemporâneo. O pastor está certo. Ele relata casos impressionantes de curas espirituais em seu templo e combate de forma clara as práticas de outras religiões onde, segundo ele, o misticismo impera.

Não que ela não compartilhe daquele discurso, acontece que por maior que seja o talento retórico do líder religioso e sincero seu apelo, suas palavras parecem ocas e sem sentido diante da realidade da ouvinte, principalmente nos últimos dias, onde um distanciamento tomou conta de suas vontades e ações.

No outro canal um leilão de joias. Miraflores se interessa por um relógio com caixa em ouro e 24 rubis presos na máquina. Mas onde ela iria com uma joia daquelas? Miraflores não sai de casa. Sair por aí com todo aquele ouro no pulso não é algo que se possa considerar como inteligente. No entanto, neste caso, dinheiro não é problema. Por ser solteira e filha única, Miraflores recebe do governo uma pomposa soma mensal, referente a pensão vitalícia de seu pai, militar condecorado morto em serviço. Em outros tempos ela já investira grandes quantias em joias e viagens, no entanto, ela vê naquele relógio, por sinal muito bonito, um investimento fútil e sem sentido.

Miraflores não é depressiva, ao contrário é espirituosa, ativa. Nunca foi dada a especulações metafísicas e por seu caráter apegado à vida, não se deixou iludir pelo álcool, pelas drogas ou por outros vícios. Ela gosta de ler livros técnicos e biografias de pessoas famosas. Porém, nos últimos dias, a biblioteca se manteve intacta, tal o alheamento que se seguiu.

Próximo canal. Assassino sanguinário persegue vitimas indefesas. As mortes ocorrem após perseguições sem fim. Faca, foice, serra e ancinho são usados no delírio de sangue.

A dona da casa se levanta e vai até a cozinha. No armário, limpo com esmero pela empregada, estão duas bandejas, uma de brigadeiros, outra de camafeus. Dúvida cruel diante da dieta rígida. Miraflores experimenta um doce de cada bandeja. Deliciosos, sem dúvida, contudo, não é aquilo que ela quer, ela quer outra coisa. Ela está incomodada, "mas com o que?", questiona. Outro brigadeiro e o retorno à poltrona.

O ministro de uma seita oriental, discorre sobre a essência da liberdade, a multiplicação da bondade e a transcendência do Criador. Miraflores acredita em Deus. Ou, melhor, ela acredita num Deus. Mas naquele momento, acreditar ou não em/num Deus, não faz a menor diferença diante da sensação de vazio que se apossa da mulher com insônia.

Súbito, um barulho furtivo do quintal da casa. Miraflores dá de ombros imaginando que algum mendigo remexe o lixo. Ela escuta as palavras do missionário e imagina que o que não lhe serviu ajuda a alimentar alguma alma de Deus. Novamente o barulho, só que desta vez, ouve-se nitidamente a lata de lixo ser arrastada e lançada para o outro lado da rua. Miraflores corre até a janela e espia pela fresta da cortina. Lá fora, uma surpresa inacreditável: um lagarto imenso, um dinossauro, propriamente dito, vasculha o lixo em busca de sobras. O monstro é descomunal, de um tamanho horroroso, impensável. Miraflores não acredita em seus olhos. Ela retorna à segurança da sala e se encosta na parede, não sabendo o que fazer.

Primeiramente, corre ao telefone. Com o aparelho na mão, não sabe para quem ligar. Polícia, prefeitura, bombeiros? Quem iria acreditar num dinossauro remexendo o lixo às duas da manhã? Miraflores fica indecisa, devolve o aparelho à base e volta a espiar pela janela. O bicho está lá com seu tamanho ofensivo, imoral. Sua cabeça é tão grande que lhe é impossível enfiar a bocarra dentro das latas. A pele do lagarto brilha sob a luz do poste.

Miraflores sente o coração acelerado. Estranhamente excitada, ela entende a oportunidade como única. Quando dá por si, vê-se abrindo a porta e saindo para o jardim. Ela tem o olhar vidrado diante do brinquedo de sangue frio.

Próximo, o monstro se revela ainda mais ameaçador, mais terrível, mais sanguinário. Em seus olhos vermelhos não se pode perceber o menor traço de bondade, alegria ou respeito à humanidade; ao contrário, o clamor é de hostilidade, fúria, sangue e destruição. No entanto, apesar do iminente perigo, Miraflores se aproxima mais e mais do lagarto.

O animal, imediatamente, levanta a cabeça e cheira o ar, buscando... Até que encontra. Num movimento lento, como quem se prepara, o monstro se aproxima lentamente de Miraflores, sem fazer barulho. Ela está vidrada diante da brutalidade, da força. A baba escorre por entre os dentes do predador, formando poças na calçada.

"Que desejo é este?" - questiona a si mesma, diante do enorme carniceiro.

O bicho lentamente torce o pescoço para o lado e desfere um golpe certeiro, abocanhando Miraflores pelo tórax. O lagarto levanta-a do chão e a sacode no ar com extrema violência, lançando-a ao solo a uns cinco ou seis metros de distância. Enquanto o monstro mastiga o braço esquerdo, envolto numa manga de pijama em flanela azul, Miraflores se arrasta como pode pelo gramado em direção a casa. Ela consegue chegar até a cobertura da garagem e, exausta, deita de barriga para cima.

"Estrelas!" - murmura entre dentes, sorrindo.

O lagarto se aproxima e termina seu jantar.

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