A Garganta da Serpente
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Eclipse

(Severo Brudzinski)

- Morreu feito um passarinho... Um passarinho... - balbuciou a irmã a um grupo de parentes recém chegados ao velório.

O velho estava lá, deitado, morto.

- Como é que foi? - perguntou um vizinho ao sobrinho-neto.

- Ele deve ter se levantado da cama pra ver a lua. No corredor, sentiu o coração e caiu. Quem descobriu o corpo foi a Rachel. Ainda estava quente quando a gente acudiu. Foi coisa rápida, não houve o que fazer. Todo mundo estava no terreiro vendo o eclipse.

***

Rachel entrou na casa e escutou os passos característicos da filha correndo descalça pela enorme sala de visitas. Ela sorriu da traquinagem e colocou-se diante da pequena, pronta para lhe dar uma falsa reprimenda, mas a filha a abraçou com tanta força que ela desconfiou:

- O que foi que aconteceu, Flávia? O que foi, filha? Por que é que você está tremendo?

- Eu tive um sonho ruim, mamãe. Sonhei que o vô Neno estava tentando me afogar. Daí eu fugia e ele ia atrás de mim. Daí ele tentava me pegar pelo pescoço, mas eu fugia de novo - relatou a menina de sete anos, agarrada às pernas da mãe.

Rachel levou a menina até o quarto do casal e a examinou lentamente. Não havia nada de anormal na criança, a não ser que no lugar da correntinha com o pingente de Nossa Senhora que pertencera a sua mãe, havia, na garganta, entre o queixo e o pescoço, uma linha contínua de pele lacerada.

- Mamãe, cadê o vô Neno?

- Não se preocupe, filha. O vô Neno deve estar descansando. Agora eu quero que você deite e durma, querida. Durma!

Rachel esperou cinco minutos para que a menina ressonasse novamente. Ela sabia que havia algo de errado. Lembrou um diálogo recente entre o marido e a sogra:

- Você nem parece que é cristão, meu filho! O homem só quer passar uns dias aqui no sítio. Ele se criou aqui... Ele está pra morrer...

- Se ele criar um problema que seja, e você sabe do que é que eu estou falando, eu ponho o velho pra fora a chute e pontapés. Não quero nem saber se ele é meu tio ou se é o papa. Dois ou três dias... Depois do eclipse o velho toma o rumo dele.

Que o marido não gostava do tio era evidente, mas qual! O homem era um amor de pessoa. Fala mansa, sorriso franco. A doença e o enfraquecimento tornavam-no ainda mais simpático e merecedor de afeto.

- Dois ou três dias e ele vai embora! Só falta a praga morrer aqui! Era só o que me faltava... - disse o marido, como palavra final.

A menina dormiu. Rachel se encostou na porta e pôs-se a escutar atentamente; contudo, não havia nada além de silêncio. Ela saiu do quarto e seguiu pelo corredor de paredes centenárias. Ao entrar na saleta, que dava acesso aos quartos da frente, encontrou o hospede caído no chão, tentando em vão se arrastar novamente para o quarto. Ela se desesperou, chegou-se junto do velho e o virou de barriga para cima. O homem era o retrato da dor. Ele pedia em meio a sua agonia:

- O remédio! O remédio!

Sem demora, ela entrou no quarto e prontamente encontrou o frasco branco sobre o criado mudo. Voltou e se debruçou sobre o velho senhor, buscando posicioná-lo para poder medicá-lo, mas quando retirou o comprimido do frasco, teve um choque: enrolado entre os dedos enrugados e ressequidos do agonizante, estava o cordão que pertencera à sua mãe. O velho levava a mão ao peito e gemia. Rachel retornou o medicamento ao frasco, retirou da mão do outro a corrente e a observou com atenção. A peça de família estava arrebentada próxima do fecho. Aquela lembrança havia adornado o colo de mãe e filha por mais de quarenta anos e estava no pescoço da neta havia dois dias. Num segundo ela ligou a ojeriza do marido, às lamúrias da sogra e o ferimento da filha.

O velho não conseguia dizer palavra, mas ergueu as mãos na direção de Rachel numa súplica final. Esta se levantou, foi até o quarto de hospedes, deixou o frasco sobre o criado mudo e tornou ao velho que sentia o coração se rasgar e, logo depois, parar em definitivo. Ela ficou observando as caretas de dor, o baixar das pálpebras e o cessar dos movimentos. Quando tudo era calma no corpo do velho diabo, ela saiu ao terreiro para avisar aos outros que o vô Neno estava passando mal.

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