A Garganta da Serpente
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Feche os olhos, Neli. Feche os olhos

(Severo Brudzinski)

Noite fria. No inferno de gelo, meias e cobertores não bastavam para esquentar os pés. Diante do silêncio das horas mortas, a casa gemia vez por outra como quem se encolhe sob o peso opressivo do céu fechado. Neli acordou com um sopro nítido e contínuo qual um estertor macabro:

"Aaaaaaaaaaaaa..."

Estranho é que não havia sonho precedente, nem ideia fixa, nem medo sem nome, somente o quarto escuro.

Passada a letargia, ela percebeu o tique-taque do despertador marcando as horas de forma lenta e soturna. Não bastasse a sensação de iminência, escutou novamente a voz, agora mais próxima:

"Docinho... Docinho..."

O pânico se instalou.

Neli ficou na escuta, antevendo um ataque, uma violência; mas nada, somente o frio e uma presença inoportuna eram fato.

A vigília se deu embalada pelo madeirame do telhado que rangia, sinistro. Mais tarde, o cheiro repugnante de enxofre invadiu o cômodo. Temendo o pior, ela chutou as cobertas e foi ver a criança.

Ao ser acionada, a lâmpada que pendia nua sobre o corredor calou-se para sempre. Xingando em pensamento, a mulher tateou até o quarto do enteado.

O abajur lançava luz mortiça no ambiente. Se aproximando do berço, ela percebeu o pequeno de lado. Ao passar-lhe a mão nos cabelos foi tomada por um horror indescritível, vertiginoso. Na ponta dos dedos, a rigidez dos tecidos, a total e completa imobilidade.

Instantaneamente, Neli levou as mãos ao rosto, cobrindo os lábios.

Seria aquele um sonho ruim? Uma alucinação? Uma prova?

Desnorteada, abriu as cortinas e percebeu que além da vidraça, reinava a escuridão. Uma nuvem espessa como petróleo envolvia a casa.

"O bebê está morto, a casa isolada e ele vem me buscar" - pensou, retornando ao corredor que pareceu-lhe estranhamente deformado.

Ao fundo, uma cena irreal. Flutuando na direção da personagem, um castiçal com três velas acesas pairava no ar. Estática, a penitente aguardou o desenlace da trama.

Bem próximas, as chamas revelaram a mensageira. Era uma velha com os cabelos grisalhos amarrados num coque, vestindo um traje de lã cinza. Na mão direita, a senhora trazia o símbolo da trindade; na esquerda, um punhal de lâmina fina e afiada.

Ela se aproximou lentamente e disse de forma calma e reconfortante:

"Não se preocupe, minha filha. Está tudo bem. Vai ser muito rápido. Você não vai sentir nada. Coisa bonita, no meio de uma cerimônia."

Neli deu um passo atrás e a velha tornou:

"Não tenha medo. Agora é só fechar os olhos. Isso... Feche os olhos. Feche os olhos, Neli. Feche os olhos."

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