A Garganta da Serpente
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Em Preto e Branco

(Suzana Bertuol)

Um forte cheiro de fumaça impregna a cozinha mal iluminada. A janela deixa entrever pequena fração da tarde colorida de outono, desenhada do lado de fora da velha casa de madeira. Como ela gostaria de correr pelo pátio ao redor das árvores e fazer cambalhotas na grama gelada ou escorregar nos galhos mais baixos das plantas! Mas a velha mão a segura firme! A pele vincada forma estranhas figuras no rosto da avó. Os ossos parecem perfurá-la. As carnes flácidas desprendem-se cada vez mais deles e balançam a cada gesto. Apesar de trêmula e magra, é com força que a mão aperta seu braço.

A imundície das moscas, sobre os vidros, dificulta a visão da menina do que acontece do outro lado. Ela não gosta daquela casa. Dentro dela, parece não mais existir vida. As paredes de grandes tábuas, nunca pintadas, apresentam furos de cupins de alto a baixo. Foram erguidas pelo seu bisavô. O teto, sujo e mofado, dá a impressão de desabar a qualquer instante. Sem cores e brinquedos, tudo ali remonta um tempo que não mais existe, um passado remotíssimo.

Até as bonecas de pano que a avó costura nas intermináveis tardes de inverno carregam uma expressão de tristeza e saudade. Não entende por que a mãe a obriga a fazer companhia para a avó, ela nada tem a dizer que a interesse ou a faça sorrir. Além do mais, não leva o menor jeito para lidar com pessoas mais velhas.

Sobre a mesa de madeira, a charmosa xícara de porcelana branca, com as pinturas à mão a descascar e as bordas trincadas, exala um agradável cheiro de chá de cidreira. A velha traga o chá, devagar, numa estranha cerimônia para a qual se arruma, penteia os longos cabelos e prende-os num coque. Veste suas roupas mais bonitas e põe na mesa os encardidos guardanapos bordados com suas iniciais e as do falecido.

A menina quer sair, trouxe a corda para pular e lá fora, a tarde está linda, com flores e borboletas, passarinhos de toda espécie, plantas grandes e pequenas com galhos para escorregar - um mundo a pesquisar. Aquele estranho ritual está longe de sua compreensão, não quer participar dele. Entretanto, a simples presença torna-a parte do jogo. Tenta levantar-se, mas a mão puxa-a de volta para a cadeira no assento de palha, desgastado pelo tempo e uso.

Como de costume, a nona espalha as velhas fotografias sobre a mesa, escondendo os buracos dos cupins. Engole mais um pouco de chá. A mão trêmula derruba algumas gotas sobre os retratos. Com o guardanapo, seca-os cuidadosamente.

- Tá vendo questo retrato? Eu tinha tua idade... La prima comunhão...

Muitas crianças enfileiradas mostram uma vela branca e um santinho, esboçando algumas um tímido sorriso contido nos olhos amedrontados.

A velha olha o retrato por vários minutos, depois, num suspiro, murmura quase imperceptivelmente.

- Ancoi... Todos... - sacode a cabeça e conclui apenas para si própria, como se estivesse a rezar. - Tutti... Tutti morti!

Uma pequena lágrima rola sobre as rugas vincadas de seu rosto. Ela a enxuga, enquanto o vento zune frio e triste nas plantas do quintal e faz ranger as folhas de zinco enferrujadas do telhado.

Um arrepio perpassa o corpo da menina. Sem que a vó perceba, ela bate sua mãozinha três vezes por baixo das tábuas da mesa e esboça um desajeitado sorriso amarelo.

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