A Garganta da Serpente

Serpente de Bronze

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Metanoia

(Serpente de Bronze)

Tenubre é o negrume mais denso que as trevas. Tenubre só houve uma vez e as trevas tremeram. Foi tão denso, tão escuro que as trevas brilhavam. Confundidas com a sua própria luz, sem entenderem que tenubre era mais negro, mais escuro, mais preto, mais denso e mais poderoso. As trevas não souberam como apagá-lo, e nem poderiam, ele era muito mais apagado. Acostumadas a lidar com a luz, tentaram usar o mal. O mal de Tenubre era maior, era bem pior. Tenubre engolira vários buracos negros de sete galáxias próximas. Chamou a experiência de tira-gosto, e agora queria jantar. As trevas, antes de Tenubre nascer, se prepararam, se escureceram da hora sexta a hora nona. Fenderam-se as rochas e abriram-se os sepulcros. Demônios graniam e diabos se excomungavam. Tenubre vai nascer morto, ou fraco, ou oco. Foi como se toda a treva se entrevasse sem trégua, com mêdo do inesperado, sei lá no que vai dar.

Abandonado, cuspido, escarnecido, despresado, sozinho, Tenubre surge além do véu. Ele é mal. Muito mal. A personificação de toda a massa malígna. Hora do Big-Bang. Toda massa do mal incontido está alí, densa, pronta para explodir. Tenubre escurece as trevas amedronta o mêdo, apavora o pavor, faz tremer o forte. É a hora que não foi esperada, talvez espreitada em dúvida, mas por ainda ser inexistente, o mal pensava, a gente dá conta. O Bang vai acontecer. Tenubre apareceu, olhou em volta, tudo apagou. A luz apagada, queimada, desconectada, descobriu que estava meio acesa, meio rubra. Quem sabe resto da incandescência do passado. Seria um tição tirado do fogo, brasas no seu último suspiro, centelha acinzentada, só mei morna. Se achavam um carvão molhado. Agora tenubre estava lá, parado, olhando para eles, nunca piscou, nem engoliu seco. Eles se entreolharam. Eram milhões. Nós contra ele, pensaram, apaguem o sol, desliguem os multiversos, escureçam os infernos. Foi como se todos os assassinatos, latrocínios, genocícios, guerras, extermínios, pestes, desastres, estupros, traições, coações, despotismos, injustiças, perfídias, chantagens, rebeldias, vinganças, holocaustos, invejas, calúnias, ódios, descriminações, ardis, armadilhas, imoralidades, blasfêmias, infidelidades, amarguras, sadismos, desesperos e mentiras se juntassem desde o início desse kairos, kronos finito, e a uma se concentrassem num ponto negro, malígno, de peçonha crotálica, botrópica, araquinídea, sicuta pura, veneno letal, radiação fatal, para encarar Tenubre. Ou vai ou racha, essa é a hora. Tenubre não é um ser, é o resultado desse nascimento, ou melhor, dessa morte. Tenubre é o tipo, a sombra, a interface de duas eras marcadas por essa cruz. E lá estava ele, olhos fitos nos répteis, imóvel. Imóveis se interpensaram, dava para se ouvir o som dos bufos, ventas dilatadas, iris verticais, focetas lacrimais secas, línguas bifurcadas apegadas aos palatos. Isso era para estar acontecendo com ele. O terror deveria ter feito morada nele, ele é um, nós milhões. Serpente por um momento, deu o bote certeiro em todos. Da lagartixa ao T-rex, quem era reptil dançou. Digeriu a própria morte que perdeu seu aguilhão. Era tão mal que se riu do que eles pensavam ser o poder das trevas. Foi um fiat lux invertido, a morte começou então a reverter seu ciclo, e andar ao contrário, virou do avesso, quem nasce agora é o morto. De barriga cheia Tenubre se dá por satisfeito. Olha ao redor e tem todas as chaves, abre qualquer porta. Seus inimigos não passam de passado, até o inferno lhe pertence. Olha no relógio e kronos está a seu favor. O kairós se eterniza sem oposição. É o único. Por um tempo e um prazo os animais terão uma prolongação de vida, mas uma vida morta, distante, marcada para a pena final, sem fiança, sem perdão, sem apelação. Tenubre não precisa mais ser. Agora sim, está consumado. Fiat lux.

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